Crítica – Ferrari (Venice International Film Festival 2023)

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Ferrari tem o potencial para ser uma biopic memorável, mas peca pela falta de um maior foco emocional no seu estudo de personagem guiado pelo elenco.

Nos últimos tempos, filmes sobre Fórmula 1, Ford, Ferrari ou, simplesmente, corridas de carros têm, surgido com maior frequência, mas quase todos, de alguma forma, relacionados com o subgénero de biopics (biografias). 2023 já teve Air, Tetris, Oppenheimer e tem agora Ferrari para adicionar à lista de obras com o intuito de contar a origem por detrás da criação ou do(s) criador(es) de alguma invenção/marca que impactou a história da humanidade. Com Michael Mann (Heat) ao volante – perdão, desde já, pelas piadas inevitáveis – e Adam Driver (The Last Duel) no papel de protagonista, Enzo Ferrari, eis que chega um dos filmes mais antecipados da 80° edição do Festival de Veneza.

Ferrari não é a obra-prima que uma parte de mim desejava, mas é suficientemente competente para despoletar interesse pessoal, ao ponto de pesquisar sobre o seu protagonista, o que considero uma missão essencial neste tipo de narrativa. O argumento de Troy Kennedy Martin (Red Dust) segue de perto a vida de Enzo, desde a altura em que ele próprio participava nas corridas até à fundação e gestão da agora mundialmente famosa marca de carros, passando pelas fases íntimas do mesmo, assim como os momentos mais marcantes da empresa ao longo das décadas.

Obviamente, o interesse pessoal pré-visualização no desporto em si é um fator impactante na para degustar a obra, pelo que admito ter começado em ponto morto. À medida que o primeiro ato se foi desenrolando, rapidamente é possível concluir que Ferrari é uma narrativa guiada pelas prestações dos seus atores. Driver é, como esperado, extremamente cativante enquanto um ser humano repleto de complexidades emocionais e empresariais, mas é Penélope Cruz (L’immensità) como sua mulher, Laura Ferrari, que rouba os holofotes… e de que maneira!

A atriz espanhola é obrigada a carregar o maior sentimento de luto possível ao ter de lidar com a morte do seu único filho, assim como a mágoa de não conseguir ter salvo o mesmo e a angústia de viver com um marido que a trai conscientemente, para além de esconder certos gastos pessoais com a sua segunda família. Cruz chega a ser hipnotizante e os momentos mais cativantes da obra são precisamente as interações entre Enzo e Laura. Diálogos brutalmente honestos e emotivos sugam o ar da sala de cinema, mas infelizmente, Ferrari aparenta não saber em que se focar.

Com várias linhas de enredo a ocorrerem em simultâneo, Mann demonstra dificuldades em equilibrar as mesmas com o estudo de personagem principal. A morte, especialmente de pessoas desconectadas da família epónima, é abordada de forma demasiado leviana, sendo até jogada como elemento cómico no início do filme, algo que não caiu nada bem. Mesmo uma sequência trágica mais tarde é atravessada de maneira extremamente abrupta, como se a vida destas personagens – ou melhor, seres humanos – valesse menos que a do protagonista ou da sua família.

Ferrari gasta imenso tempo, por exemplo, a debater um tópico em específico relacionado com o seu segundo filho, de outra mulher, que dificilmente terá acontecido na vida real com a frequência, importância e intensidade que a obra lhe dá. Até porque a própria lei italiana da altura remove qualquer tipo de razão para a origem de tantas discussões teoricamente irrelevantes. Independentemente deste pormenor, a verdade é que é uma linha narrativa com pouco interesse, servindo mais como uma “desculpa” para Driver e Cruz terem mais uma cena brilhantemente coreografada juntos.

Dito isto, Enzo Ferrari é, de facto, um protagonista complexo. Fez de tudo para salvar o seu filho doente e não conseguiu, refugiando-se no amor de outra mulher para ajudar a suportar a sua dor que nunca desaparecerá, apesar de nunca ter abandonado a mãe do seu primeiro herdeiro. Tudo enquanto tentava fazer da sua marca o emblema icónico que hoje todos reconhecem, também lidando com o perigo de morte a cada curva por parte dos seus pilotos. Ninguém nega as suas falhas e defeitos, mas nenhum ser humano deve viver com tanta morte à sua volta…

Já a parte das corridas em si, têm os seus momentos de destaque, apesar de não alcançar os níveis de entusiasmo e adrenalina de Ford v Ferrari, Rush ou até o mais recente Gran Turismo. E são filmadas de forma muito competente, apesar do uso de bonecos para os acidentes ser demasiado percetível.

Ferrari não é um “filme de carros”, logo quem entrar na sala de cinema à espera de uma obra de ação só pode culpar-se a si mesmo pelas expetativas incoerentes com o tipo de narrativa que foi claramente publicitada. Tecnicamente, o trabalho de câmara de Erik Messerschmidt (Devotion) e a banda sonora de Daniel Pemberton (Enola Holmes 2) merecem elogios, ao passo que a escolha de atores não-italianos para representar italianos tão famosos é sempre dúbia – os sotaques não são os melhores.

VEREDITO

Ferrari tem o potencial para ser uma biopic memorável, mas peca pela falta de uma maior foco emocional no seu estudo de personagem guiado pelo elenco. Adam Driver é excelente, mas Penélope Cruz destaca-se claramente com uma performance emocionalmente devastadora. Os diálogos entre o casal principal são os pontos altos de um filme abrupto que lida com a morte de pessoas fora do núcleo familiar de maneira demasiado passageira e insignificante, para além de sobre-dramatizar uma linha de enredo em particular.

Com sequências de corrida competentes, Ferrari cumpre com o propósito básico de contar a vida de um homem complexo cuja vida é bem mais triste do que se pode imaginar.

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