Crítica – Oppenheimer

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Oppenheimer é uma verdadeira masterclass de como construir tensão e suspense intensos através de diálogo rápido e detalhado, uma produção sonora extremamente poderosa e uma banda sonora de Ludwig Göransson igualmente explosiva.

Christopher Nolan é, sem dúvida, um dos cineastas mais influentes deste século. As suas obras constam regularmente em artigos sobre os melhores filmes de cada ano, década e até da história do cinema. Pessoalmente, é um dos realizadores cujo nome apenas é suficiente para me obrigar a ir ao cinema. Foi Nolan quem trouxe complexidade narrativa aos blockbusters, transformando os mesmos em histórias impactantes de deixar os espetadores genuinamente pensativos após testemunharem algo que lhes fez olhar para o grande ecrã como algo mais do que uma desculpa para se enfardarem em pipocas. E consegue-o novamente com Oppenheimer.

Os últimos dois filmes de Nolan, Dunkirk e Tenet, foram criticados – por uma minoria, diga-se de passagem – por serem demasiado confusos e difíceis de se seguir. O primeiro pelas três linhas narrativas distintas a ocorrer no céu, mar e terra. O segundo pelos visuais provocados pela premissa sci-fi sobre o recuo temporal. Para esses espetadores, não creio que Oppenheimer seja muito mais simples. É uma narrativa totalmente guiada por diálogos extremamente rápidos, complexos, científicos – imensa exposição sobre física e mecânica quântica – e com raros momentos de explicação com analogias para ajudar a audiência a perceber as ideias mais básicas.

São três horas pesadas com várias personagens com impacto significante na narrativa geral ou no arco do protagonista, assim como diversas linhas temporais, dezenas de reuniões e interrogatórios, secções a cor e a preto-e-branco… tudo a um ritmo, por vezes, tão acelerado que uma pequena distração externa pode custar a compreensão de qualquer motivação, ambição, mudança de local, nomes de personagens e, principalmente, noção de espaço e tempo. Oppenheimer justifica, e bem, a utilização da expressão “não é para todos“. Dito isto…

Oppenheimer é, tecnicamente, uma obra-prima que qualquer fã de cinema deve assistir na maior sala IMAX possível. Uma autêntica lição de como construir um blockbuster incrivelmente imersivo com menos de metade do orçamento de todos os outros. O cineasta sempre foi conhecido pela sua insistência em efeitos práticos e filmagens não-digitais, algo que se nota tremendamente na imagem cristalina e cinematografia belíssima de Hoyte van Hoytema (Nope). Desde os close-ups hipnotizantes às trocas entre cor e preto-e-branco, é uma das biografias cinemáticas visualmente mais fascinantes que alguma vez tive o prazer de assistir.

No entanto, o destaque técnico vai para a produção sonora. Tanto o som em si como a música de Ludwig Göransson (Black Panther: Wakanda Forever) transformam Oppenheimer em mais do que um mero filme. Logo nos primeiros segundos da obra, é possível sentir o chão a tremer, o corpo a vibrar e o coração a palpitar fortemente. É uma experiência de tal forma potente e raramente sentida numa sala de cinema que tenho receio que alguns espetadores mais sensíveis se sintam desconfortáveis durante alguns momentos mais… explosivos. Pessoalmente, foi um dos aspetos que mais me ajudou a concentrar no enredo e respetivas interações entre personagens. É uma camada extra que contribui excecionalmente para a tensão e suspense de cada cena num filme já por si bastante atmosférico. 

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Oppenheimer divide-se em três atos de forma clara. O primeiro segue o início da carreira de J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy) até ao momento em que se torna diretor do laboratório de Los Alamos do Projeto Manhattan. Durante este período, o público conhece vários cientistas, colegas e professores, que acompanharam o crescimento do protagonista enquanto físico teórico, assim como as mulheres que fizeram parte da sua vida. Todos – repito, todos – possuem algum impacto essencial, seja ao ajudarem a traçar o caminho que levou Oppenheimer a Los Alamos, a construírem a primeira bomba atómica ou a lidar com as consequências posteriores.

É nesta primeira hora, mais minuto menos minuto, que Oppenheimer apresenta o tipo de filme que vai ser. Um quasi-documentário que não perde tempo com informação irrelevante ou conversas aleatórias. Espetadores podem-se queixar da falta de interesse ou entretenimento, mas todas as cenas possuem algum propósito, pelo que os 180 minutos são justificados ainda que se sinta o seu peso. A rapidez com que personagens são introduzidas e com que, quase de imediato, Oppenheimer avança na sua carreira através de novos estudos em locais distintos com orientadores e colegas diferentes, é admitidamente complicada de se seguir inicialmente.

É necessário um ajuste ao ritmo frenético das cenas em si, mas também ao facto de uma linha narrativa pós-bomba estar a ocorrer simultaneamente. Enquanto continuamos a seguir a carreira do cientista Oppenheimer, também acompanhamos os vários “julgamentos” sobre o “Pai da Bomba Atómica” e as pessoas que o rodearam ao longo dos anos. Contrariamente àquilo que muitos possam pensar, a troca entre a cor e o preto-e-branco não está relacionada com tempo, mas sim com perspetivas: a primeira é subjetiva e vista quase sempre a partir dos olhos do protagonista, enquanto que a segunda é uma lente objetiva e analítica sobre os eventos que ocorreram.

O segundo ato passa pelo estudo e desenvolvimento da bomba atómica, culminando no Trinity Test. Esta sequência é uma masterclass de como construir tensão e suspense intensos. De forma muito inteligente e exponencialmente mais poderosa, Nolan relembra o público de que as ondas de som que nos atingem não são instantâneas. Uma explosão a uma determinada distância implica que o som da mesma apenas nos alcança alguns segundos depois. O momento climático de Oppenheimer obriga os espetadores a suster a respiração durante uma contagem decrescente carregada com níveis de tensão extremos e a continuar a suster durante mais alguns segundos de deixar a pessoa mais serena da sala completamente irrequieta.

É uma das sequências mais inesquecíveis do ano e é brilhantemente executada… mas cuidado com expetativas irrealistas. A conversa em volta da recriação prática da bomba atómica sem efeitos especiais gerou muita antecipação para um momento que é importante pelo seu significado, não pela potencial espetacularidade. Oppenheimer é um experiência audiovisual soberba, mas desengane-se quem espera, de facto, “ver” uma bomba atómica a detonar no grande ecrã em todo o seu esplendor e escala real, sem quaisquer obstruções ou desvios de câmara.

O Trinity Test é, sem dúvidas, o pico climático de Oppenheimer, mas o terceiro ato é surpreendentemente tão ou mais cativante que o resto do filme. Nolan escolhe abordar as consequências pessoais, políticas, militares e humanas da descoberta científica que mudou, para sempre, como o “novo mundo” olha para a guerra. Os dilemas morais que assombram Oppenheimer durante a maior parte do tempo de execução saltam – literalmente – para a realidade e a obra transforma-se num autêntico filme de horror com sequências tão angustiantes, perturbadoras e assustadoras que não vai ser fácil adormecer na noite do visionamento.

É nos minutos finais que questões que tinham ficado por esclarecer são respondidas de maneira chocante e que o estudo de personagem profundo de Oppenheimer se estende ainda mais. Nolan explora ao máximo todos os ínfimos detalhes da sua vida e demonstra, muitas vezes através de imagens curtas da imaginação do protagonista, tudo aquilo que Oppenheimer pensa das suas ações, assim como todas as pessoas que, de alguma forma, impactaram a sua vida. Chego assim a uma das razões, senão mesmo a razão principal pela qual o filme é tão bem sucedido: o elenco.

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Não há palavras que descrevam o quanto as prestações de todos os envolvidos são cruciais para o envolvimento dos espetadores na narrativa. Oppenheimer trata as suas personagens como os seres humanos reais que foram, sendo que o facto de atores altamente cobiçados e até vencedores de Óscares participarem por apenas um par de minutos numa única cena com poucas falas é um testamento à autenticidade da obra. São inúmeros atores e personagens que merecem elogios, mas prefiro focar-me nos principais, começando por Murphy (A Quiet Place Part II).

Para além das semelhanças físicas com o verdadeiro Oppenheimer, o ator irlandês representa a complexidade moral e ética do cientista com aquela que é, provavelmente, a sua melhor prestação da carreira – de relembrar que este é apenas o seu segundo papel principal. Por exemplo, nunca se chega a ver explicitamente o caos que as bombas largadas em Hiroshima e Nagasaki causaram, sendo que Nolan escolhe focar a câmara na prestação do ator ao testemunhar as fotos do horror vivido no Japão em agosto de 1945.

Murphy consegue captar o misto de emoções de Oppenheimer na perfeição. Por um lado, foi o responsável por uma das descobertas científicas mais impactantes da história da humanidade. Por outro lado, sente-se culpado pela morte de milhares de inocentes numa guerra que, supostamente, já estava dada por terminada. A sua obsessão é analisada ao detalhe por Nolan, sendo que os dilemas que marcaram a sua vida também passaram para a parte íntima, concretamente nos casos amorosos com Kitty (Emily Blunt) e Jean Tatlock (Florence Pugh).

Os eventos de Oppenheimer ocorreram durante uma altura onde mulheres não tinham o respeito, direitos e posições de poder que, com o tempo, felizmente mudaram. Logo, Blunt (Jungle Cruise) e Pugh (Don’t Worry Darling) não só possuem tempo de ecrã limitado, como frequentemente surgem como personagens femininas vulneráveis e dependentes. Kitty tem um momento incrivelmente satisfatório na parte final da obra, mas no geral, ambas servem mais para enfatizar a dicotomia presente no arco do protagonista. Pugh também aparece quase sempre nua, participando em algumas das sequências mais estranhas da filmografia de Nolan.

Ao mesmo nível de Murphy, encontra-se Robert Downey Jr. (Avengers: Endgame). Após mais de uma década a interpretar um super-herói, é refrescante e genuinamente fascinante assistir ao ator pegar no papel de Lewis Strauss, um filantropo que acaba por, no fundo, se tornar no antagonista da história. Apesar de estarmos a falar de uma biografia baseada em eventos e pessoas reais, prefiro evitar spoilers para espetadores que não possuam conhecimento desta história – e sejamos honestos, a vasta maioria da audiência nem sequer reconhece o nome.

Dito isto, RDJ é absolutamente fantástico e, tal como Murphy e Blunt, dificilmente faltará a qualquer cerimónia de prémios. Matt Damon (Air) interpreta Leslie Groves, o militar responsável pelo Projeto Manhattan e pelo recrutamento de Oppenheimer. O filme possui raros momentos de humor, praticamente todos provenientes da performance de Damon, através de comentários sarcásticos ou atitudes irónicas. Oppenheimer encontra-se repleto de estrelas do cinema, por isso, não vale mesmo a pena andar em círculos. A conclusão a tirar é de que todos são brilhantes à sua maneira no seu tempo alocado.

Para além de problemas ocasionais com o ritmo de Oppenheimer, assim como a sua estrutura narrativa não-linear, não há muito por onde pegar numa obra tão bem realizada e redigida. A montagem de Jennifer Lame (Marriage Story) encontra-se inerentemente ligada a estes aspetos menos positivos, mas também contribui bastante para o desenvolvimento envolvente e intrigante da narrativa. A falta de conhecimento geral sobre a história dos Estados Unidos da América e do mundo poderá trazer algumas complicações extras para quem deseja seguir a narrativa sem quaisquer mal-entendidos.

Nota final para o trabalho de maquilhagem soberbo. Numa altura onde se debate infinitamente a utilização de AI e tecnologia de-aging, Oppenheimer demonstra que efeitos digitais nunca conseguirão bater o realismo inigualável de elementos práticos. A caraterização visual das personagens é um dos fatores mais importantes na distinção das várias linhas temporais. Também não senti o problema de mistura de som que muitos se queixam em filmes de Nolan, mas admito que o facto de ter legendas sempre disponíveis afeta a minha perceção de se realmente o diálogo é abafado pelos sons de fundo ou se é apenas a minha incapacidade não-nativa de entender tudo o que é dito na língua inglesa.

VEREDITO

Oppenheimer é uma verdadeira masterclass de como construir tensão e suspense intensos através de diálogo rápido e detalhado, uma produção sonora extremamente poderosa e uma banda sonora de Ludwig Göransson igualmente explosiva. Sem palavras para a cinematografia belíssima de Hoyte van Hoytema. Uma história angustiante, perturbadora, traumática e genuinamente assustadora sobre como a obsessão de um homem e o poder da política mudaram o mundo. Cillian Murphy, Robert Downey Jr. e Emily Blunt dificilmente falham qualquer cerimónia de prémios… absolutamente soberbos, assim como o resto do elenco excecional.

Ritmo, estrutura e duração do filme, para além do formato quasi-documentário e complexidade narrativa, fazem desta obra uma visualização difícil e pesada que, com certeza, deixará uma parte do público desiludida, aborrecida ou simplesmente cansada. Justifica o uso da expressão “não é para todos”.

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2 Comentários

  1. Crítica perfeitamente descrita. Não é para todos mesmo. Presença mais que obrigatória no palco dos maiores prémios.

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