Mank é uma homenagem bonita de David Fincher a Citizen Kane, que deixaria o seu pai tremendamente orgulhoso. Tecnicamente perto da perfeição, mas com alguns problemas narrativos.
Sinopse: “Hollywood da década de 1930 é reavaliada através dos olhos do sarcástico e alcoólico argumentista Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman) enquanto este se apressa para terminar Citizen Kane.”
Esta última semana foi uma das mais desafiantes que tive desde que comecei a escrever críticas. Não só pelo número de filmes de David Fincher (Se7en, Fight Club, Zodiac, The Social Network e Gone Girl) que (re)assisti em preparação para Mank (mais Citizen Kane), mas também porque estes não são propriamente filmes sobre os quais costumo escrever muito rápido.
Como Zodiac foi o único que vi pela primeira vez, fui capaz de me surpreender e “despachar” o processo de escrita, conseguindo entregar cada artigo diariamente, tal como idealizei. Finalmente, tinha chegado a hora de um dos maiores “Oscar baits” da Netflix para a próxima temporada de prémios, logo assisti à última peça de Fincher ontem à noite.
Claramente, sou fã do seu estilo, como as minhas opiniões sobre a sua filmografia provam, por isso, espero sempre que um dos melhores filmes do ano respetivo resulte do seu trabalho. No entanto, tendo em mente a premissa biográfica, reconheço que este tipo de filme depende muito do seu storytelling.
No meu caso, se um filme como este não for capaz de me oferecer novas informações relevantes sobre um assunto que já possuo algum conhecimento, então vou acabar inevitavelmente desiludido. Mesmo que receba esses novos detalhes da história, a transmissão deve ser realizada de forma convincente, o que geralmente estes filmes não conseguem fazer, baseando os seus argumentos demasiado em exposição preguiçosa. Sendo assim, tentei manter as expetativas moderadamente altas, mas realistas e esperançosas.
Antes de partilhar os meus pensamentos, um disclaimer. Mank, sem dúvida, irá gerar uma resposta bastante divisiva do público em geral. Porquê? Desde algo tão simples como o facto de ser a preto e branco até ao crime de certos espetadores não saberem nada sobre Citizen Kane (principalmente nunca o ver), mas ainda assim escolherem assistir a Mank. Existirão inúmeros exemplos de pessoas a “entrarem” com expectativas terrivelmente irrealistas. Muitos irão achar este filme “aborrecido, sem nada a acontecer”, para além de comentários como “adormeci em cinco minutos” e “outro filme artístico em preto e branco desinteressante para os críticos amarem cegamente”. Alguns destes comentários terão origem inevitavelmente em pessoas que acabaram de se sentar no seu sofá e escolheram um filme aleatório que apareceu na Netflix.
A campanha de marketing nunca poderia colocar um pré-requisito para assistir a Mank, mas eu posso e assim o farei. O mais direto e honesto possível: se nunca viram Citizen Kane, ou corrigem esse erro antes de sequer abrirem o vosso serviço de streaming, ou, por favor, ignorem Mank, pois muito provavelmente não vão gostar de absolutamente nada. Acredito firmemente que apenas 1/1000 espetadores gostarão deste último, no caso de não possuirem conhecimento sobre o filme icónico de Orson Welles. Idealmente, (re)vejam e pesquisem um pouco sobre a sua história: o que levou à criação do filme, quem estava envolvido, que polémicas o rodearam… Sei o que estão a pensar: não é exatamente isso que Mank deve fazer por nós? E assim dirigo-me a um dos meus problemas com o filme.
Existem basicamente duas opções neste género: ou o realizador e/ou o argumenista escolhem ajudar o público a seguir a história, introduzindo-os ao que vão testemunhar, ou saltam diretamente para a própria narrativa. Fincher não perde um segundo a ajudar os espetadores a entenderem o que está a acontecer ou, em alguns casos, quem sequer são as personagens. Ou as pessoas sabem no que se estão a meter (como aconselho acima) ou preparem-se para uma narrativa incrivelmente intrincada, repleta com flashbacks, histórias secundárias e muitas, muitas personagens.
Esta será uma razão significativa pela qual algumas pessoas definitivamente não gostarão deste filme. Estudei e li sobre Citizen Kane até à exaustão e, mesmo assim, senti-me perdido durante alguns períodos devido à quantidade esmagadora de subplots e as suas personagens. Depois, apesar do seguinte estar ligado a um dos aspetos que mais adoro em Mank, há pelo menos algumas personagens, para além de Herman J. Mankiewicz, que gostaria de ter aprendido mais sobre as mesmas, principalmente Marion Davies (Amanda Seyfried) e Joseph L. Mankiewicz (Tom Pelphrey), irmão do protagonista. Por outro lado, isso também significa que, apesar do elevado número de personagens, a maioria é realmente bastante interessante, possuindo arcos emocionalmente convincentes.
Acabei de notar que comecei esta crítica com os meus problemas com o filme, mas não se deixem enganar: gosto muito, mas muito do mesmo. No entanto, já que estamos aqui, despejo já o meu problema restante. Portanto, Mank não se assemelha a nada que Fincher já tenha realizado. Parece imenso um projeto pessoal que certamente teria adorado partilhar com o seu falecido pai, argumentista do filme, Jack Fincher (vou-me referir ao mesmo como Jack a partir de agora, mantendo Fincher relacionado com David). Se há algo que esperava deste filme era Fincher homenagear Citizen Kane através dos aspetos técnicos, incluindo a estrutura narrativa profundamente baseada em flashbacks para justificar uma opinião particular, conversa ou evento a decorrer no presente.
Evidentemente, Mank segue exatamente o mesmo método de contar a história que Citizen Kane e, apesar de ser uma decisão brilhante de David e/ou Jack Fincher, o primeiro permite que esta técnica assuma a história em vez de a elevar. Os flashbacks são bem merecidos e bem colocados na narrativa, mas, por vezes, parece meramente um recurso técnico exclusivamente para criar a tal comparação com Citizen Kane, em vez da sua execução melhorar a história que Fincher quer contar. Contudo, estas minhas implicações estão longe de arruinar toda a experiência, muito pelo contrário.
No que toca ao requisito principal, Fincher acerta em cheio. Adorei conhecer as inspirações reais que levaram Mankiewicz a criar um dos melhores argumentos de todos os tempos, tal como as condições chocantes (e desconhecidas para mim) em que teve que trabalhar. É realmente um milagre de filmmaking conseguir escrever uma obra-prima no espaço de dois meses, estando fisicamente e mentalmente debilitado. Apesar da eficiência imperfeita dos flashbacks, a maioria desenvolve personagens impactantes na vida de Mankiewicz e não consigo negar que é uma alegria para qualquer amante do cinema ver ou mesmo ouvir a menção de alguns cineastas famosos daquela época. No entanto, uma personagem é tão boa quanto o ator que a retrata (e vice-versa).
Gary Oldman é, sem dúvida, um candidato aos prémios de Melhor Ator deste ano. Seria um snub gigante não ser exaustivamente nomeado em todas as cerimónias. Defendo que a sua atuação em Darkest Hour como Winston Churchill é mais fascinante (nunca estive tão cativado durante um drama de guerra antes), mas o seu desempenho em Mank é difícil de negar. Desde o seu retrato hilariante, mas realista, de um Mankiewicz bêbedo à sua atitude mais sóbria e sincera, Oldman demonstra uma variação alucinante, com o seu desempenho físico a ter uma influência notável no resultado geral. Não há dúvida de que carrega toda a narrativa nos seus ombros e fá-lo sem esforço.
No entanto, Oldman está longe de ser a única luz brilhante. Amanda Seyfried pode muito bem conseguir a sua primeira temporada de prémios ao interpretar a extremamente cativante Marion Davies. Seyfried entrega um equilíbrio requintado entre os maneirismos de voz propositadamente exagerados e a verdadeira personalidade de Marion. Tom Pelphrey também é extraordinário como irmão de Mankiewicz, personagem que imediatamente pesquisei mal terminou o filme. A intensidade com que Pelphrey expressa algumas frases está a tornar-se uma das suas caraterísticas principais.
Muita gente tem comentado sobre estes dois atores, mas Lily Collins (Rita Alexander) interpreta a minha personagem favorita para além do protagonista. Como secretária de Mankiewicz, Lily explora a sua personagem de uma maneira tão sincera e autêntica que, às vezes, desejava voltar ao passado não por ir aprender mais sobre o argumento de Citizen Kane realmente a ser escrito, mas devido às interações de Rita Alexander com o seu “chefe”. As suas conversas são alguns dos momentos mais satisfatórios de todo o filme e importei-me bastante com ambos.
Sei que a maioria dos meus leitores provavelmente não se importa com tecnicalidades, mas se me seguem há tempo suficiente, reconhecerão que valorizo imenso os aspetos técnicos quando estes afetam significativamente o filme. Ouso afirmar que uma grande razão pela qual tanto aprecio Mank é a homenagem técnica quase perfeita que Fincher oferece ao filme de Orson Welles. Desde pequenos detalhes como os “cigarette burns” aqui e ali (contei oito e, se não sabem o que isto significa, então claramente não viram Citizen Kane) à composição de planos semelhante, Fincher cria semelhanças impecáveis com o “melhor filme de sempre” em praticamente todas as cenas, incluindo a sua própria versão do momento “Rosebud”.
Obviamente, tal significa que a cinematografia de Erik Messerschmidt é absolutamente deslumbrante. Erik trabalhou anteriormente com Fincher em Mindhunter, provando agora que a sua carreira no cinema ainda tem muito caminho para percorrer. Kirk Baxter pode muito bem ser nomeado para Melhor Edição (ou Melhor Montagem, como preferirem) e facilmente imagino a cena exata que a cerimónia mostraria para demonstrar os cortes limpos e perfeitos que tornam os diálogos mais fáceis de seguir. Donald Graham Burt, que trabalha com Fincher desde Zodiac, oferece uma produção artistíca excecional, mas é a banda sonora de Trent Reznor e Atticus Ross que rouba os holofotes, na minha opinião. Utilizando apenas instrumentos autênticos da época, Reznor e Ross entregam um tributo rico, único e memorável ao trabalho de Bernard Herrmann.
Resumindo, a Netflix lança assim outro concorrente para a temporada de prémios, Mank. Com o perfecionista e dedicado David Fincher ao leme, o argumento do seu falecido pai acaba por tornar-se no projeto mais pessoal de Fincher até agora. É uma homenagem maravilhosa não só a Citizen Kane, mas também às décadas de 1930/40.
Tecnicamente, todos os componentes são digno de estatuetas: cinematografia, edição, produção artística e, principalmente, a banda sonora. Fincher trabalha com a sua equipa para entregar cenas icónicas e caraterísticas técnicas criadoras de precedentes impressionantemente semelhantes às do filme impactante de Orson Welles.
Temos prestações fenomenais por todo o elenco, mas pode-se esperar nomeações a voarem no sentido de Gary Oldman, Amanda Seyfried e Lily Collins. No entanto, a estrutura narrativa idêntica ao filme de 1941 parece, por vezes, simplesmente um tributo inteligente em vez de realmente elevar a história. O guião de Jack Fincher encontra-se esmagadoramente repleto com histórias e personagens secundárias, tornando a tarefa de seguir tudo compreensivamente extremamente complicada, especialmente para os espetadores sem qualquer conhecimento sobre o assunto.
Felizmente, a missão principal de representar as inspirações reais que levaram Herman J. Mankiewicz a escrever um dos melhores argumentos da história do cinema é perfeitamente cumprida, tornando Mank um filme imperdível para qualquer amante do cinema, desde que o espectador tenha, pelo menos, assistido ao famosamente apelidado de “greatest film of all-time“.
Mank estreia na Netflix a 4 de dezembro.