Shirley é, sem dúvida alguma, cinema de autor por parte de Josephine Decker, que entrega uma biopic única que quebra todas as limitações impostas pelo género.
A famosa escritora de horror Shirley Jackson (Elisabeth Moss) encontra-se no precipício de escrever a sua obra-prima quando a chegada de recém-casados acaba com a sua rotina meticulosa e aumenta a tensão na sua já tempestuosa relação com o marido, Stanley Hyman (Michael Stuhlbarg). O casal de meia-idade começa então a brincar impiedosamente com o jovem casal ingénuo à sua porta.
Esta foi uma experiência bastante incomum devido ao conhecimento que possuía antes de assistir a esta película. É o primeiro filme que vejo de Josephine Decker. Já Sarah Gubbins tem aqui a sua estreia enquanto argumentista de uma longa-metragem.
No entanto, o detalhe mais significativo é que não sabia nada sobre Shirley. Não tinha ideia sobre o que é que o enredo abordava ou mesmo a que género pertencia, para além de (tal como em todos os outros filmes) não assistir a um único trailer. Elisabeth Moss (The Handmaid’s Tale, The Invisible Man) foi a única razão pela qual adicionei este filme à minha lista há alguns meses atrás.
Não sabia que Shirley era um filme biográfico (biopic) da escritora de horror Shirley Jackson, nem me apercebi de tal no final do filme… e este é o maior elogio que tenho para oferecer. Não parece uma biopic porque quebra todas as barreiras estabelecidas pelas limitações do género.
Não é filmado (DP: Sturla Brandth Grøvlen) como uma biopic. Não é editado (David Barker) como uma biopic. O argumento não é semelhante ao de uma biopic. Até a banda sonora (Tamar-kali) está longe de ser um padrão de uma biopic. Conclusão: ao entrar “cego” para este filme, é quase impossível rotular Shirley como uma biopic normal.
Como é que isto é algo positivo? Bem, desde a primeira cena, a atmosfera desconcertante é excecionalmente estabelecida através da personagem de Odessa Young, Rose Nemser. Esta última assemelha-se a qualquer outra “wifey” (termo condescente de referência à esposa de alguém) de 1950, mas, nesta sua primeira aparição, demonstra que a sua verdadeira personalidade está escondida por detrás da sua boa educação e inteligência.
É difícil não me sentir cativado pelas interações estranhas, intrigantes, por vezes creepy entre as quatro personagens principais. A edição bruta ajuda a gerar um certo nível de desconforto como se algo não estivesse a bater certo. A relação entre Shirley e Rose contribui para a vibe inquietante que envolve o filme.
Shirley mantém-se isolada da sociedade e recusa-se a sair de casa. Os seus livros estão cheios de histórias chocantes, violentas e horríveis que as pessoas adoram ler. Mas estas são as mesmas pessoas que assumem toda a sua maneira de ser, pois para se poder ser capaz de escrever histórias tão macabras, a autora “não pode ser boa da cabeça”. Rose tem mais em comum com Shirley do que as capas dos seus livros indicam e as duas carregam a narrativa de uma maneira bastante cativante e emocional. A primeira é a personagem central, aquela que passa pelo maior desenvolvimento. A última não muda quem drasticamente quem é, mas gradualmente mostra um lado diferente, mais vulnerável, como prova a última cena (brilhante) do filme (um take longo ininterrupto).
Elisabeth Moss já estava na corrida por várias nomeações devido ao seu desempenho impressionante no seu filme anterior. Com Shirley, garante que não passará despercebida em 2020. Moss tem uma incrível gama de emoções e expressões que a fazem brilhar sempre que uma personagem de várias camadas lhe é entregue.
No entanto, Odessa Young é a grande surpresa, que prestação! Definitivamente, é uma atriz a seguir durante os próximos anos. Michael Stuhlbarg é fenomenal ao interpretar Stanley, um homem que tanto pode ser doce e gentil como se pode tornar ameaçador e assustador.
É um filme que merece ser visto mais do que uma vez. Não apenas pela narrativa complexa que mistura a imaginação de Shirley (há flashes constantes dela a visualizar o que está a escrever) com a história real, mas também porque as relações entre as personagens não são tão simples de se entender. Tudo isto pode ser encarado como um aspeto positivo ou negativo. Por um lado, nunca perdi o interesse e o foco em tentar decifrar tudo relativo à história e às suas personagens. Por outro lado, o filme dá a sensação de não ter um rumo claro durante a primeira metade do tempo de execução.
Sem dúvida, filmmaking muito intrigante. Josephine Decker entrega uma peça de autor (pelo qual já recebeu um prémio) que pode polarizar o público geral devido ao seu trabalho biográfico notavelmente único. No entanto, para alguém que não sabia nada sobre o filme, a primeira metade que menciono acima pode ser realmente difícil de analisar. Eventualmente, tudo recebe a sua respetiva explicação, umas mais eficientes do que outras, mas o caminho para lá chegar não é linear nem suave de qualquer forma ou feitio.
Além disso, a personagem de Logan Lerman, Fred Nemser, é algo deixada de fora em comparação com os outros residentes da casa, pelo que o seu arco é, provavelmente, a parte mais previsível e menos entusiasmante do filme.
Tecnicamente, cada componente é tão único quanto o outro. Da edição à cinematografia, passando pela banda sonora, produção artística e cenografia, tudo eleva o argumento de Sarah Gubbins e a realização de Decker de uma forma que nunca deixa de ser entretida e extremamente satisfatória para qualquer cinéfilo.
No final, Shirley é, sem dúvida, cinema de autor por parte de Josephine Decker, que entrega uma biopic única que quebra todas as limitações impostas pelo género. Entrando “cego” no filme, o argumento de Sarah Gubbins pode parecer estranho e sem rumo ao longo da primeira metade, mas as relações intrigantes entre as personagens principais e a narrativa estranhamente cativante são mais do que suficientes para criar uma atmosfera desconcertante mas envolvente.
As interações entre Elisabeth Moss, Odessa Young e Michael Stuhlbarg são tão fascinantes como as suas personagens, especialmente a de Odessa. Todos os atores são fantásticos, mas Moss garante que não passa despercebida este ano e Young certamente estará na corrida para a revelação do ano.
Tecnicamente, a banda sonora acaba por ser uma outra personagem, ao passo que a produção sonora é incrivelmente impactante. Por um lado, a cinematografia tremida e a edição bruta ajudam a criar o ambiente inquieto da casa; por outro, podem fazer o espetador sentir-se demasiado desorientado e desconfortável. É difícil recomendar este filme. Se são fãs de Shirley Jackson, esta é a sua biografia cinematográfica, mesmo que não pareça uma (o maior elogio que posso dar ao filme).
Se valorizam aspetos técnicos, Shirley tem muito por onde se gostar. No entanto, se não pertencem a nenhum destes grupos, não posso recomendar o filme sem antes oferecer um aviso de que pode simplesmente não funcionar para esses casos…
Shirley chega às plataformas digitais dia 5 de junho.