Crítica – Barbie

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Barbie é hilariantemente meta, recheado de números musicais espetaculares e engraçados engraçados e com um ótimo equilíbrio de tom entre os momentos de comédia exagerada e o comentário social rico e estimulante.

O fenómeno Barbenheimer marcou os últimos meses de forma exponencialmente intensa. Depois de assistir a um Oppenheimer pesado e angustiante, nada como uma Barbie leve e divertida para restabelecer o ânimo habitual… isto se Greta Gerwig tivesse, de facto, escolhido criar um filme sem qualquer substância. Com a ajuda de Noah Baumbach (Marriage Story) no argumento, a cineasta responsável por obras memoráveis como Lady Bird e Little Women aproveita o alcance mediático da boneca mais popular da história, assim como um elenco invejável, para entregar um dos filmes mais surpreendentes do ano!

Uso o termo “surpreendente” porque, na verdade, a maioria dos espetadores provavelmente antecipam que Barbie não seja mais do que uma comédia tonta e inocente para um público feminino, sem grande cuidado narrativo, arcos de personagem complexos ou temas sensíveis. Afinal de contas, é um filme sobre uma boneca para meninas… certo? Completamente errado. Apenas pessoas com total desconhecimento da filmografia de Gerwig e das suas qualidades únicas que fazem da mesma uma das cineastas no ativo mais interessantes esperam que este filme nem seja merecedor de muita atenção.

Observando o que 2023 nos tem oferecido até à data, Barbie entrega, sem dúvidas, uma das narrativas mais ricas do ano. Desde o comentário social extraordinariamente instigante – que incomodará um determinado grupo de pessoas com dificuldades tremendas em aceitar o mundo como este verdadeiramente é – aos arcos profundos da Barbie (Margot Robbie) e Ken (Ryan Gosling), Gerwig e Baumbach redigem um argumento que não deixará ninguém indiferente, algo que a audiência talvez só esperasse do filme de Christopher Nolan.

A Barbie de Robbie, referida como “Stereotypical Barbie”, atravessa uma jornada de auto-descoberta ao experienciar como o mundo real funciona. Basicamente, sofre um choque de realidade que lhe provoca uma crise existencial, obrigando a protagonista a procurar o seu lugar num mundo dominado pelo sexo oposto, numa patriarquia opressiva. É aqui que o tal grupo acima mencionado se vai exaltar e atacar Barbie, cegamente acusando Gerwig de forçar agendas políticas, mensagens feministas e de transformar o homem num inimigo da sociedade.

O problema é que este grupo não só ignora o contexto da obra e interpreta qualquer diálogo minimamente crítico do mundo real como algo ofensivo e pretensioso, como, acima de tudo, “esquece-se” de que existe uma linha narrativa totalmente dedicada precisamente à experiência oposta vivida pelo Ken de Gosling. Em nenhum momento de Barbie, Gerwig sequer insinua que Barbieland é o exemplo de um mundo perfeito, muito pelo contrário. O mesmo é caraterizado como uma matriarquia utópica e é através de Sasha (Ariana Greenblatt), uma pré-adolescente do mundo real, que a influência da boneca no papel da mulher é severamente criticada.

Apressam-se para acusar Barbie de passar mensagens de poder e libertação feminina, mas é Ken quem recebe essa liberdade e poder, quando chega ao mundo real e se sente visto, escutado, respeitado e esperançoso por um futuro cheio de potencial, onde pode genuinamente fazer a diferença. Pessoalmente, considero esta a decisão criativa mais inteligente e impactante de Gerwig em todo o filme: demonstrar através do arco de Ken – e dos restantes Kens – aquilo que a Barbie – e restantes Barbies – sentem no mundo real.

barbie critica echo boomer 2

Se existem momentos de diálogo onde a abordagem à vivência feminina no mundo patriárquico sofre de uma generalização perigosa? Talvez, mas Barbie nunca interrompe a sua narrativa forçosamente para emitir qualquer tipo de comunicado. Um bom exemplo é o monólogo de Gloria (America Ferrera), mãe de Sasha, que vai inevitavelmente ser debatido durante muito tempo. Funciona tanto como comentário social honesto – a chamada “verdade pura e dura” – como exposição necessária para as restantes Barbies. Mas, como já referido, o filme de Gerwig não se remete exclusivamente a um só tópico.

Robbie é mesmo obrigada a entregar uma prestação bem mais emotiva que cómica devido aos sentimentos pesados da protagonista ao longo da obra. Barbie é igualmente um excelente estudo de personagem, não tendo receio de desenvolver temas sensíveis como identidade pessoal, depressão, amor próprio e até tocar em assédio sexual. O público-alvo é claramente feminino, mas da mesma maneira que homens interpretarem esta obra como “anti-homem” é simplesmente ilógica, mulheres saírem do cinema a odiarem o sexo oposto também peca por falta de sentido.

Dito isto, não deixem as minhas palavras enganar-vos. Barbie tem conteúdo para desatar a rir bem alto de início ao fim, sendo que os números musicais com coreografia e letra hilariantes quase me levaram a chorar de tanta gargalhada. Gerwig consegue um balanço tonal eficiente entre o enredo mais emocional e as sequências cómicas propositadamente exageradas. A banda sonora de Mark Ronson e Andrew Wyatt consiste de uma coleção de canções originais criadas por alguns dos artistas pop mais populares da atualidade – “What Was I Made For” de Billie Eilish é fantástica – mas é Gosling com “I’m Just Ken” que rouba os holofotes ao protagonizar o momento musical mais memorável do ano.

Aliás, Gosling é mesmo o grande destaque no que toca ao elenco. Robbie nasceu para representar Barbie tanto como Gosling nasceu para representar Ken. Ambos merecem todos os elogios e mais alguns, mas talvez por ter a liberdade de ser mais exagerado e “extra”, Gosling salta mais à vista. O seu timing cómico é impressionante e, para aqueles que criticaram o ator no passado de entregar prestações demasiado estóicas, não há forma de o voltarem a acusar de tal caraterística, tal são os níveis altíssimos de Kenergia espalhados pelo filme.

As restantes Barbies e Kens são igualmente notáveis. Todos os atores entenderão na perfeição como atuar no ambiente “cringe”, entregando-se de corpo e alma às inúmeras variações dos bonecos. Pessoalmente, não parei de rir com Simu Liu (Shang-Chi and the Legend of the Ten Rings) e Kingsley Ben-Adir (One Night in Miami…) do lado dos Kens, enquanto que Kate McKinnon (Bombshell) – escolha irrepreensível como Weird Barbie – Emma Mackey (Emily) e Issa Rae (Spider-Man: Across the Spider-Verse) são tão ou mais cativantes ao interpretar as várias Barbies. Existe, inclusive, um cameo de deixar qualquer cinéfilo a chorar baba e ranho de tanto rir… 

Se Barbie terá sucesso nas categorias principais da futura temporada de prémios? Difícil de prever, mas tecnicamente, chega mesmo a ser o filme candidato a vencer algumas categorias, principalmente produção artística (Sarah Greenwood), guarda-roupa (Jacqueline Durran) e maquilhagem. Admito desconhecer se a notícia sobre o filme esgotar as reservas de tinta cor-de-rosa de determinadas empresas é verdade ou não, mas sinceramente, não seria de admirar. Não só a obra é lindamente colorida, mas os sets construídos são tão fascinantes que, por vezes, perdi-me ao olhar em volta do ecrã boquiaberto.

A cinematografia de Rodrigo Prieto (The Irishman) distingue os dois mundos brilhantemente, utilizando praticamente sempre o mesmo ângulo “de frente” quando a ação desenrola em Barbieland, sem movimentações bruscas ou tremidas, ao passo que no mundo real, aplica um trabalho de câmara dinâmico e menos controlado. Assim, é possível os espetadores sentirem a diferença dos dois mundos, mesmo não tendo consciência de que algo mudou, de tal maneira subtil que são as transições. Nem todos os momentos cómicos caem bem, nem todos os diálogos temáticos são impactantes, mas no geral, Barbie não é nada menos do que excecional em todas as áreas.

VEREDITO

Barbie é hilariantemente meta, recheado de números musicais espetaculares e engraçados engraçados e com um ótimo equilíbrio de tom entre os momentos de comédia exagerada e o comentário social rico e estimulante. Inevitáveis nomeações e prémios a caminho da brilhantemente colorida produção artística, guarda-roupa e maquilhagem.

A narrativa de Greta Gerwig e Noah Baumbach surpreendentemente aborda temas bastante sérios, desde tópicos político-sociais como patriarquia e assédio sexual a questões sobre crises existenciais, identidade pessoal, amor próprio e, claro, os papéis da mulher e do homem na sociedade. Margot Robbie estava destinada a interpretar Barbie, tal como Ryan Gosling nasceu com Kenergia nas veias. Absolutamente fantásticos, tal como o resto do elenco de Barbies e Kens.

Para ver num cinema lotado!

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