Snowpiercer não é apenas um dos melhores filmes de 2014. É, também, um dos melhores da sua década.
Neste épico de ficção científica do realizador Bong Joon-ho (Parasite), uma experiência falhada para resolver o aquecimento global mata a maior parte da vida na Terra. Os sobreviventes embarcam no titular Snowpiercer, um comboio que viaja à volta do planeta através de um motor de movimento perpétuo. Quando mensagens enigmáticas incitam os passageiros a revoltarem-se, o comboio começa a ir a todo o vapor em direção ao desastre.
Snowpiercer recebeu uma adaptação televisiva (estreou hoje em Portugal), logo agora é o melhor momento para rever um dos melhores filmes de 2014. Nesse ano, Bong Joon-ho ainda não era exatamente aquele realizador que todos viríamos a conhecer. Portanto, o elenco protagonizado pelo próprio Capitão América, Chris Evans, e a premissa intrigante fizeram todo o trabalho no que toca à criação do estatuto de filme de culto que acabou por conseguir.
Ironicamente, não assisto a este filme desde o seu lançamento, ou seja, esta é apenas a segunda vez que embarco no seu comboio. Vou começar com o melhor que este filme tem para oferecer: o seu argumento.
É uma das obras mais chocantes que testemunhei relativamente a entregar twists de fazer cair o queixo, um após o outro, exclusivamente através de diálogo, algo que acabaria por tornar-se uma marca da filmografia de Bong Joon-ho. A sua escrita é tão incrivelmente complexa e cheia de camadas que é realmente um milagre os seus filmes acabarem por ter qualquer sentido. Snowpiercer (que é co-escrito por Kelly Masterson) tem literalmente dezenas de perguntas lógicas que qualquer outro filme não só deixaria por explicar, como nem sequer tentaria fazê-lo. Com quaisquer outros argumentistas, este filme seria demasiado absurdo e difícil de acreditar. Mas está longe disso.
Todas as personagens recebem um desenvolvimento extraordinariamente elaborado, repleto de revelações alucinantes e twists de fazerem abrir bem os olhos. Todas as linhas de diálogo, todas as imagens, todos os movimentos de câmara, todos os planos, todas as cenas importam. Tudo o que o espetador vê e ouve ou tem algum significado importante ou antevê um eventual payoff.
Snowpiercer é a definição de “todos os planos contam”. Não se atrevam a ir à casa de banho sem parar o filme primeiro. Sem quaisquer dúvidas, vão perder algo impactante se não o fizerem. Argumento absolutamente brilhante e personagens magnificamente bem escritas.
É, indiscutivelmente, uma história guiada pela narrativa. Snowpiercer é uma lição em exposição. Apesar de possuir muita ação (já lá chego), é um filme que confia na capacidade do espetador em ser cativado pelo simples diálogo. O conceito é único e a história é extremamente cativante, mas apenas se o espetador entender o valor de entretenimento em escutar estas personagens enquanto estas executam a sua revolução… em aprender quem estas personagens eram, são e serão.
Apenas como exemplo, existe um monólogo no terceiro ato realizado por Chris Evans que não só oferece toneladas de informação sobre a sua personagem, como também é emocionalmente arrebatador de assistir. Se alguém não sentir absolutamente nada durante esta cena, então Snowpiercer talvez não seja o filme ideal para essa pessoa.
Penso que The Platform possui um conceito semelhante. Em vez de um comboio, é uma prisão vertical, mas a alegoria de como a sociedade funciona é evidente em ambos os filmes. De como a política, a religião e a educação infantil podem controlar a Humanidade. As pessoas do topo/frente não só recebem mais do que precisam, mas ainda “usam e abusam”, ignorando completamente os humanos de baixo/cauda que precisam de lutar por restos.
Obviamente, estes filmes seguem caminhos completamente diferentes, mas Snowpiercer possui uma narrativa muito mais complexa do que The Platform. No entanto, não deixa de ser interessante analisar as comparações entre estas duas abordagens distintas a um tema semelhante.
Mesmo assim, para todos os que precisam de algum tipo de entretenimento dinâmico, este filme também se encontra repleto de ação. Tem um pouco de shaky cam a mais para o meu gosto, mas, no geral, cumpre a missão de entregar o ambiente caótico, energético e claustrofóbico que as sequências de ação necessitam. Afinal de contas, é um comboio. Não é como se pudessem produzir batalhas massivas num espaço tão pequeno.
Na verdade, o argumento até permite que a equipa técnica e de stunts mostre algumas técnicas realmente criativas e inovadoras. O uso de slow-motion (não só durante as cenas de ação) eleva o filme, gerando muito suspense/tensão e é perfeitamente cronometrado (incluindo uma sequência de um take fantástica com Chris Evans).
Já que o mencionei, mais vale falar da sua prestação impressionante. Podem não lembrar-se disto, mas, na altura do lançamento do filme, Evans demonstrou-se interessado em seguir uma carreira de realizador, deixando o papel de ator para algo secundário. Embora acredite que será um excelente realizador, estou muito feliz que tenha continuado a aplicar as suas habilidades enquanto ator. Como a maioria dos atores do MCU, sinto que é muito subvalorizado, considerando o que já demonstrou ao longo da sua carreira. Snowpiercer é apenas a ponta do iceberg. Chris Evans é um ator notável e muito mais do que “apenas” uma versão do Capitão América.
Tilda Swinton (Mason) também entrega uma interpretação bastante interessante, Octavia Spencer (Tanya) é fascinante, enquanto que a lenda Ed Harris (Wilford) pega no seu curto tempo de ecrã, mas eficaz, para provar o quão talentoso é, especialmente no que diz respeito à exposição do plot. É sempre capaz de ser cativante somente por abrir a boca.
A banda sonora de Marco Beltrami é entusiasmante e memorável. A edição (Steve M. Choe, Changju Kim) não só é perfeita, como ajuda o espetador a entender melhor a história. Finalmente, a produção e a cenografia são impecáveis, oferecendo uma sensação de ser apenas uma única localização claustrofóbica que um comboio inevitavelmente possui.
O meu único problema sério envolve o final. É bastante impactante, mas também algo underwhelming e moralmente divisivo. Uma decisão em particular que afeta todos os humanos presentes no comboio (basicamente, toda a Humanidade) não me convence de que é a melhor conclusão. De uma certa forma, tira valor a alguns esforços que as personagens tiveram de fazer para chegar onde chegaram, bem como o propósito inicial da história. Por um lado, é um final que levanta algumas questões num filme que faz um ótimo trabalho em explicar todos os pequenos detalhes até este último momento. Por outro lado, o comboio está longe de dar uma vida justa a toda a gente…
Sendo assim, Snowpiercer não é apenas um dos melhores filmes de 2014, mas um dos melhores da década respetiva. Com um argumento brilhante, Bong Joon-ho entrega uma narrativa extremamente complexa, carregada com um desenvolvimento de personagens emocionalmente chocante e com um excelente trabalho no que toca à ação. O tema subjacente de como a Humanidade é controlada pela forma como a sua sociedade funciona (desde a política à religião, passando pela educação) acompanha inteligentemente a história repleta de twists. Snowpiercer é uma lição fenomenal em exposição e a definição de “todos os planos importam”.
Com prestações de fazerem cair o queixo, especialmente de Chris Evans, todos os diálogos são notavelmente cativantes, possuindo revelações alucinantes e um esforço inacreditável em explicar todos os pequenos detalhes sobre a funcionalidade do comboio. Estaria, sem dúvida, no topo dos melhores filmes da década se não fosse pelo final moralmente divisivo e um tanto underhwelming/questionável. Tecnicamente, a banda sonora viciante, uma edição incrível e uma produção e cenografia impressionantes colocam o selo de qualidade numa peça de cinema original e bastante única.