A Team Ninja traz-nos um dos melhores soulsborne ao limpar os excessos e ao focar-se num sistema de combate acessível, mas difícil de dominar.
A popularidade dos soulsborne é o seu pior inimigo e o género chegou a um pico tão elevado de notoriedade que é raro encontrar videojogos que se atrevam a desafiar a fórmula. Depois de Bloodborne e de Dark Souls III, a fórmula parecia estar cimentada pelo combate desafiante, mundos interligados e a narrativa visual, nem sempre acessível, onde a agência dos jogadores é o foco destas campanhas extensas. No entanto, as surpresas são cada vez mais raras e a familiaridade não demorou a ser mais prejudicial do que vantajosa para os estúdios que procuram apenas alimentar-se deste modelo e não inová-lo.
Foi precisamente a FromSoftware, que reserva para si o cunho de progenitora do género, que procurou quebrar e transformar os sistemas que popularizou ao focar-se em novas experiências. Sekiro: Shadows Die Twice foi uma primeira tentativa, um título mais assente em opções de mobilidade e no contra-ataque do que num combate mais assente na defesa, quase como uma resposta ao que a Deck13 tinha tentado fazer com a série The Surge. Seguiu-se Elden Ring e o modelo mundo aberto aplicado à fórmula soulsborne, e espera-se que a produtora japonesa continue a desafiar a definição dos soulsborne.
A Team Ninja já havia tentado a sua sorte com este subgénero dos RPG de ação através da série Nioh. Apesar de se construir sobre a mesma base, Nioh expandiu a jogabilidade para abraçar as mecânicas mais próximas aos Character Action Games, às combinações rápidas, à mestria das armas e à utilização de posturas de combate, que mudavam o tipo e distância dos golpes do nosso samurai amaldiçoado. Na minha opinião, Nioh é muito mais exigente, mais caótico e cinético do que qualquer outro título semelhante, onde é necessário compreender as suas mecânicas a fundo para conseguirmos chegar mais longe. São dois jogos que requerem quase um estudo das suas funcionalidades para termos a mínima hipótese de derrotarmos um dos seus inúmeros e opulentes bosses.
Faltava compreender qual seria o próximo passo da Team Ninja, agora longe de Nioh – que continua mais associado à marca PlayStation –, mas a mudança de IP parecia indicar a busca por algo novo. De facto, a passagem de Nioh para Wo Long: Fallen Dynasty não foi apenas cosmética ou narrativa, mas sim muito mais profunda no que toca ao seu foco enquanto RPG de ação.
Ao abraçar a história e cultura chinesa, a Team Ninja aceitou o desafio de reinventar a jogabilidade clássica. Se Nioh traduziu a cultura bushido japonesa para a jogabilidade e personagens, com ataques rápidos e assentes na destreza do primeiro golpe, já Wo Long: Fallen Dynasty é formalmente o seu oposto, ainda que familiar, com o sistema de combate a inspirar-se nas artes marciais e wushu que adicionam uma maior cadência aos golpes e combinações. Num primeiro contacto, podemos sentir que Wo Long é muito semelhante a Nioh, mas à medida que exploramos as mecânicas e conhecemos as suas exigências, compreendemos como o novo projeto da Team Ninja procurou simplificar a aposta em combinações mais complexas – Nioh deixava-nos personalizar a lista de ataques da nossa personagem – para ataques mais rápidos, quase como uma dança, onde o desvio e a mobilidade são tão importantes como o próximo golpe a ser disferido.
Wo Long é mais livre, fluído e responsivo do que Nioh porque procura separar-se da jogabilidade mais estratégica do género, procurando dar aos jogadores uma maior motivação para manterem a ofensiva e aproveitarem os ataques inimigos para encontrarem vantagens em combate. Para tal, a barra de stamina foi transformada. Apesar de estar formalmente presente, foi transformada na Spirit Gauge, uma funcionalidade que procura dar mais penso ao risco e recompensa do seu sistema de combate. Como Sekiro: Shadows Die Twice, Wo Long está mais interessado em colocar o jogador próximo dos inimigos e apostar no contra-ataque constante, e a Spirit Gauge serve esta aposta ao permitir que exista punição para todas as ações realizadas pelos jogadores. Ao contrário da tradicional barra de stamina, a nossa personagem nunca para quando atingimos o máximo de Spirit Gauge, mas basta um ataque para ficarmos atordoados (staggered) e vulneráveis. Isto significa que podemos continuar em combate se conseguirmos evitar os ataques inimigos, levando-nos a adotar uma postura muito mais agressiva do que em Nioh.
O elemento mais interessante da Spirit Gauge é que também nos permite utilizarmos habilidades e magias em combate. Wo Long não tem um sistema de magia tradicional, não temos uma barra de MP, mas sim a Spirit Gauge. Para aumentarmos os pontos de espírito, temos também de atacar. Claro que ao atacarmos estarmos a aumentar as possibilidades de ficarmos atordoados, mas a recompensa está sempre presente e é absolutamente satisfatório quando conseguimos ativar uma habilidade à última da hora para derrotarmos um inimigo sem nunca ficarmos indefesos. Se sofrermos dano também perdemos pontos de espírito, como seria de esperar, e é importante dominar os vários tipos de inimigos para que nunca nos sintamos presos ao arcaico sistema de stamina, que continua a criar flagelos a tantos outros títulos do género.
De facto, Wo Long transmitiu-me liberdade. Não é um jogo tão profundo como Elden Ring ou até como Nioh. A personalização está limitada à escolha de equipamentos, à evolução de cinco atributos e o sistema de magia é muito simples e intuitivo, tal como temos acessórios e itens que nos permitem melhorar ativa ou passivamente os atributos da nossa personagem. Wo Long substitui o foco na personalização pela liberdade em combate, pela cadência dos movimentos e pelas opções de ação que ocorrem pela combinação entre a Spirit Gauge e o fantástico sistema de defesa e desvio, ou deflect. Se a Spirit Gauge procura criar alguma punição para os jogadores que não souberem gerir as suas expectativas e o poder dos inimigos, já o deflect procura dar uma opção alternativa de defesa e injetar um maior controlo sobre a direção de um combate. Wo Long é tão um jogo de combate como um jogo de desgaste e contra-ataque e é tudo graças a este sistema supostamente tão simples.
Apesar de termos acesso a um botão de defesa, que desgasta a nossa energia espiritual – como acontece num sistema de stamina tradicional -, a verdade é que senti que Wo Long não está muito interessado em manter-vos à distância e na defensiva, mas sim constantemente em combate. Para evitarmos um ataque inimigo, basta carregarmos no círculo (na versão PlayStation) no momento certo e o nosso adversário é atirado para longe, momentaneamente indefeso e vulneráveis a ataques. Como os golpes são muito bem coreografados, ainda que nem sempre fáceis de dominar, é apetecível e até necessário contra-atacar, não só porque temos uma abertura, mas também porque cansamos mais rapidamente os inimigos desta forma. Esta aposta torna-se ainda mais incontornável quando existem ataques impossíveis de defender, mas sim de desviar. Estes Critical Blows, como Wo Long lhes chama, são ataques destrutivos, capazes de reduzir a nossa barra de energia ao mínimo, mas quando os evitamos e temos a possibilidade de devolver o ataque aos inimigos e até quebrar partes do seu corpo, entramos num ponto de equilíbrio que elevam Wo Long ao estatuto de jogo especial.
Penso que esta satisfação nasce da simpática janela de resposta, com o timing a não ser muito exigente ou injusto. O desvio é muito responsivo e é muito fácil sentirmo-nos como verdadeiros mestres de artes marciais à medida que aprendemos os padrões dos inimigos e conseguimos mantermo-nos em combate sem necessitarmos de recuar e recuperar o fôlego. Isto não seria possível com uma barra de stamina e aprecio imenso a escolha da Team Ninja em aplicar um sistema híbrido que, apesar de manter a sua funcionalidade, traz-nos uma gestão de energia mais livre e assente na destreza dos jogadores – especialmente se quiserem criar uma personagem mais focada na utilização de magias. Acredito que esta alteração não seja do agrado de alguns fãs do género, tal como Sekiro não o foi em 2019, mas sinto que estou finalmente a compreender o que a Team Ninja está a tentar fazer neste formato.
Outro sistema muito curioso é o Morale Rank. Enquanto combatemos, temos a possibilidade de aumentar o nosso nível de motivação à medida que derrotamos inimigos e disferirmos golpes poderosos. Este sistema, que representa outra quebra estratégica em relação aos títulos anteriores da Team Ninja, recompensa novamente a curiosidade e a agressividade dos jogadores ao motivá-los não só a jogar melhor – já que o nível cai quando sofremos muito dano -, mas também a dominarem os inimigos em combate. Num total de 25 níveis, o Morale Rank é único a cada zona, o que significa que começamos cada capítulo do zero, e dá aos jogadores maiores pontos de defesa e novas opções de combate à medida que evoluem. Como seria de esperar, os inimigos também utilizam este sistema de motivação e podem crer que existe uma enorme diferença entre enfrentar um guerreiro com nível 5 do que um monstro já com uma determinação acima do nível 20. Wo Long também utiliza um sistema de líderes, que influenciam o poder dos seus seguidores. Se derrotarmos o líder, o nível de confiança cai para todos e temos a oportunidade de enfrentar um combate mais acessível.
Este sistema permite-nos encontrar novas vantagens em combate e recompensa-nos pelo progresso que realizamos em todos os níveis, mas também ao avisar-nos do perigo iminente. O Morale Rank dos inimigos está sempre visível e é necessário gerir expetativas para não voltarmos ao zero e perdermos parte dos nossos pontos de experiência (ou Qi). Para evitarmos perder o nosso progresso e motivação, é necessário conquistar zonas e plantar novas bandeiras em pontos específicos, que definem um número mínimo do rank por nível. Desta forma, não sentimos que estamos a perder progresso e a voltar ao zero, antes pelo contrário, sentimos mais vontade em explorar os níveis fantásticos de Wo Long em busca destes pontos de gravação.
Outro elemento que me deixa apreciar Wo Long de outra forma é o seu esforço em ser mais exigente em combate, mas também ao tentar ser mais justo na sua abordagem à exploração e à cooperação. Como seria de esperar, temos a possibilidade de convidar outros jogadores para ajudarem nos níveis ou então invadir os seus níveis para os derrotarmos, mas Wo Long vai um pouco mais longe. Mesmo que não consigam ter acesso ao modo online, ou se não quiserem jogar com outros jogadores, o jogo apresenta um sistema de companheiros que procura substituir a experiência cooperativa. Ao longo da campanha encontramos outros guerreiros, que muitos reconhecerão da história clássica do Romance do Três Reinos, que nos podem ajudar em combate. Alguns destes companheiros estão presentes por motivos narrativos, mas a partir do momento em que criamos uma aliança com eles – o que acontece no final dos capítulos, por isso, não se preocupem –, podemos invocá-los quando quisermos. Basta utilizarmos um Tiger Seal para estarmos novamente na companhia destes guerreiros controlados por IA.
O que acho interessante é que a Team Ninja quis, ainda assim, manter a ilusão de estarmos sempre a cooperar com outros jogadores. Semelhante a Nioh, podemos vingar jogadores derrotados, mas desta vez não invocarmos versões das personagens dos jogadores, mas caçamos os inimigos que os venceram. Estes inimigos são identificados por uma aura roxa e eliminá-los garante-nos Tiger Seals, recursos e títulos adicionais. É sempre aliciante saber que conseguimos derrotar um inimigo poderoso e ajudar outros jogadores à distância. Quando alguém nos vinga, temos a oportunidade de receber novos itens de cura, algo semelhante ao que vimos em títulos da FromSoftware, mas também oferecer os nossos aos jogadores que mais precisam.
No entanto, não podemos ignorar o facto de Wo Long: Fallen Dynasty não ser um desvio assim tão radical da fórmula. Continuamos a ter um sistema de magia, um número absurdo de equipamentos e armas – ainda que longe de ser no mesmo nível disponível em Nioh –, foco na dificuldade, a aposta num sistema de vantagens e desvantagens elementais, a utilização de Divine Beasts, componentes online e as várias mecânicas que ainda associamos aos soulsborne. Wo Long é um meio termo, um ponto de entrada mais acessível para quem quer uma experiência mais linear, mas suficientemente profunda para quem quiser dominar as suas mecânicas de contra-ataque. A própria estrutura da campanha serve este propósito mais acessível, aliás, a abordagem da Team Ninja sempre foi mais clássica na sua estrutura.
Ao contrário de outros RPG de ação, que se possam integrar no género soulsborne, as campanhas de Nioh e a sua sequela seguiram um formato por capítulos isolados que se expandiam por missões secundárias. A linearidade continuava a ser o foco, mas o design da Team Ninja não estava tão centrado na criação de um mundo interligado, mas na concetualização de níveis repletos de conteúdos, caminhos alternativos e oportunidades de combates únicas, como se cada nível fosse uma campanha diferente. Wo Long: Fallen Dynasty segue essa mesma estrutura linear, com os níveis a serem selecionados num mapa, mas agora com a possibilidade de visitarmos um hub para comprarmos itens, melhorarmos as armas e equipamentos, e terminar tarefas secundárias.
Esta aposta poderá desapontar aqueles que procuram perder-se em níveis enormes e mundos interligados, mas eu defendo esta abordagem da Team Ninja porque cada nível é um micro bioma, com level design envolvente e desenhado ao milímetro, com uma aposta na verticalidade devido às habilidades da nossa personagem – aqui regressa a importância e vantagens da inclusão de um botão de salto – e com cenários exteriores enormes e ainda salas, cavernas e edifícios que podemos explorar à vontade. A leitura dos cenários é sempre eficaz e clara, e eu senti, ao contrário da série Nioh, uma vontade sincera em descobrir todos os segredos dos níveis e explorar com afinco, até porque os níveis nunca são demasiado longos ou enjoativos.
Há muito tempo que não me divertia tanto com um soulsborne. Wo Long: Fallen Dynasty é intimidante num primeiro contacto, com um primeiro boss que poderá deixar-vos furiosos se não utilizarem o desvio eficazmente, mas a experiência continua num enorme crescendo à medida que novas mecânicas são apresentadas e o seu scope aumenta. A campanha é divertida, misteriosa e desafiante quando precisa de o ser, mas é também convidativa com uma dificuldade mais acessível, ainda que longe de ser demasiado fácil. Wo Long peca na ausência de melhores opções de personalização, especialmente no que toca à variedade de equipamentos e armas, mas o sistema de combate é tão envolvente que pouco importará. Esta é uma vitória para a Team Ninja, que comprova ser capaz de inovar dentro dos moldes que ajudou a cimentar e agora resta saber o que nos espera em Rise of the Ronin.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Koei Tecmo.