Fujam do submundo num dos melhores títulos deste final de ano.
Não é a primeira vez, e nem será a última, que me deparo com um novo roguelike em 2020. O género, que se assenta na dificuldade e na repetição constante da campanha, é uma aposta arriscada para as produtoras. Contudo, aos poucos, e muito apoiada por lançamentos de peso – como Dead Cells, em 2018 –, temos encontrado cada vez mais videojogos que elevam a fasquia e nos trazem experiências inovadoras dentro da sua estrutura tão rígida. Hades, a nova aposta da Supergiant Games – que sai agora de Early Access – é talvez o melhor roguelike que jogarão este ano. Não só pela arte ou a jogabilidade, mas pela junção exímia entre todos os elementos desta experiência tão cativante.
A adaptação da mitologia grega, aqui fortemente estilizada, é um dos pontos fortes de Hades. A Supergiant Games já nos havia habituado ao seu amor pela narrativa, fosse pela narração de Bastion ou a progressão surreal de Transistor, mas Hades eleva esta paixão pelo ato de contar uma estória através de diálogos muito bem escritos e uma campanha que se revela entre tentativas dos jogadores. Em Hades assumimos o papel de Zagreus, filho de Hades, e seguimos a sua viagem à medida que tenta fugir do Submundo e juntar-se aos deuses no Olimpo. Zagreus está decidido em deixar tudo para trás e agarrar o seu lugar junto da mitologia grega, mas, para tal, terá de superar todos os desafios do Submundo e fugir ao seu destino.
A morte e a repetição constantes são, assim, adaptadas à própria narrativa e servem de condutores para alguns dos momentos mais importantes da campanha. À medida que tentamos fugir, encontramos figuras incontornáveis da mitologia grega, como o herói Aquiles, e deuses como Zeus, Athena, Ares, entre outros, que tanto tentam parar o nosso progresso, como nos ajudar a sair do Submundo e a agarrar o destino que tanto procuramos. A repetição parece ter sido equacionada pela produtora até ao pormenor, com a campanha a apresentar novos elementos narrativos entre tentativas e de forma espaçada.
Desta forma, a Supergiant Games criou uma campanha que nunca está estagnada pelo jogador, mas que acompanha as suas tentativas constantes sem prejudicar a narrativa em si. E mesmo com esta aposta, sentimos uma alegria palpável sempre que desbloqueamos um novo diálogo ou zona que avançam efetivamente a estória. Zagreus não deixa de ser um dos destaques desta aventura e é através das suas reações e monólogos que criamos uma imagem mais presente e fixa deste Submundo perigoso, com o jovem deus a demonstrar uma personalidade cativante, algo convencida, mas sempre carismática e humana.
O mundo de Hades não é tão expansivo como merecia ser, mas há uma constante sensação de profundidade sempre que exploramos as suas salas e conhecemos as várias partes deste reino. Esta proximidade seria impossível sem o tremendo trabalho de arte e de som, que dão vida ao mundo e constroem este novo universo de deuses e demónios. Os retratos são um festim visual, muito detalhados e expressivos, com as cores a realçarem o trabalho de adaptação para o mundo de Hades. É sempre uma surpresa encontrar um deus do Panteão e ver como foi adaptado a esta nova realidade, muito suportado pelo excelente trabalho de voz dos atores.
No entanto, não consegui evitar um certo cansaço no design dos cenários em si, especialmente nas zonas de ação, onde a repetição mata qualquer surpresa visual. É fácil reparar onde a equipa dedicou mais tempo de produção e é impossível não verificar o quanto é difícil manter a surpresa e a fidelidade gráfica num jogo assente na repetição constante.
Fora este entrave, Hades mantém a qualidade onde mais precisa: na jogabilidade. Com uma visão isométrica, o novo título da Supergiant Games divide a campanha por zonas – todas elas inspiradas na mitologia grega – e foca a ação em várias salas que surgem de forma aleatória. Apesar do destino ser sempre o mesmo, onde encontramos um dos bosses do jogo, o caminho é escolhido pelo jogador, com cada sala a dar vantagens e acesso a novos itens, lojas e outros recursos que permitem evoluir permanentemente os atributos de Zagreus. Hades dá-vos, desta forma, a possibilidade de escolherem os itens que querem recolher e qual querem destacar na vossa campanha, existindo ainda a possibilidade de encontrarem novas habilidades – dadas pelos deus que vos tentam ajudar ao longo da campanha – e a opção de evoluírem as armas e ataques.
Em combate, Hades não é inovador, mas é incrivelmente viciante e intuitivo. Zagreus tem a possibilidade de atacar, de utilizar habilidades especiais, atirar projéteis, desviar-se e defender-se à medida que navega por níveis repletos de hordas de inimigos e armadilhas. Existe uma fluidez impressionante em Hades, onde todos os movimentos se encaixam uns nos outros e nos sentimos em total controlo do príncipe.
A jogabilidade está tão limada e os níveis estão tão bem desenhados que é quase impossível sentirmos que perdemos por culpa do jogo ou por um elemento mais injusto: assim foi a minha experiência. É fácil atacar, ripostar e utilizar as habilidades, com o desvio a ser imprescindível para evitar armadilhas e ataques mortíferos. Há uma aposta na ação constante, na rapidez e na destreza, e as habilidades apresentam tempos de espera tão curtos que somos motivados a usar constantemente o arsenal de Zagreus.
Mas Hades não se foca apenas nas habilidades especiais – permanentes ou temporárias – e dá-nos a possibilidade de desbloquear novas armas. Estas armas, novamente inspiradas por lendas gregas, mudam por completo a nossa abordagem aos níveis e determinam não só a velocidade e alcance dos ataques, como alteram as habilidades especiais. Apesar de começarmos com uma espada, a arma mais equilibrada de todas, podemos rapidamente desbloquear um arco, que é perfeito para ataques à distância, mas também um escudo, uma lança, entre outros. As armas só podem ser acedidas se recolherem chaves especiais, o que significa que terão de fazer essa escolha dentro da campanha e na navegação dos níveis. Existem vantagens e desvantagens para todas as armas, mas senti-me em casa com qualquer uma delas, encontrando rapidamente métodos perfeitos para todas. Fosse com o escudo, que protege e ataca, ou com a lança, Hades compensa todos os estilos de jogos através da sua jogabilidade clássica, mas sempre viciante.
Penso que já compreenderam que adorei o meu tempo com Hades. Se são fãs do género ou do trabalho da Supergiant Games, não pensem duas vezes: este jogo é para vocês. Se têm algumas reticências, posso dizer-vos que é dos roguelikes mais apelativos e acessíveis dos últimos tempos, ainda que mantenha um foco mais acentuado no desafio do que exemplos mais recentes – como Going Under, que também analisámos. Apesar de não ser fã do trabalho da Supergiant Games, vejo-me rendido a Hades e mal posso esperar para voltar.
Plataformas: PC e Nintendo Switch
Este jogo (versão Nintendo Switch) foi cedido para análise pela Supergiant Games.