Dragon Age: The Veilguard não só honra o legado de Dragon Age, como abre possibilidades emocionantes para outras produções da Bioware – se esta conseguir manter este nível de qualidade.
Após uma década desde Dragon Age: Inquisition, a Bioware retorna com Dragon Age: Dragon Age: The Veilguard – conhecido durante a produção enquanto Dreadwolf —, que até fazia mais sentido e deslizava melhor na língua. Os anos não foram meigos para a Bioware: Mass Effect: Andromeda, Anthem e uma contínua má gestão de projetos e IP. Não obstante, Dragon Age: The Veilguard saiu contra as todas as expectativas e com muito ceticismo de que a Bioware ainda conseguia lançar bons jogos. Apesar de muitos nutrirem uma nostalgia pela Bioware de então, o estúdio é um Navio de Teseu, o que não é propriamente mau porque crescemos, amadurecemos e mudamos (temos de mudar), mas o importante é aceitarmos e respeitarmos essa mudança. Vai daí, decidi que tinha de revisitar a trilogia antes de abraçar esta nova aventura.
Para uma pessoa com escola em RPG japoneses, jogar Mass Effect e Dragon Age: Origins – épicos que oferecem agência e um controlo quase total da narrativa -, foi uma experiência surreal na altura. Entre personalizar a minha personagem e investir em relações antes de salvar o mundo, Dragon Age também conseguiu a proeza de me emergir num imaginário fantástico que só Peter Jackson havia conseguido com a trilogia de O Senhor dos Anéis, com os momentos em Ostagar a serem para sempre a minha Helm’s Deep.
Acontece que Dragon Age: Origins, e a expansão Awakening, não envelheceram com graciosidade. Apesar de a história, as personagens e alguns momentos que compõem este bolo continuarem exemplos de qualidade e imersão, achei o combate datado, lento e pesado como se não soubessem o que fazer com ele, se emulariam os Baldur’s Gate ou tentariam algo mais em tempo real, para apenas se salvar o mérito (perdido nas sequelas) da microgestão da equipa, o que me remeteu para os Gambits em Final Fantasy XII.
Dragon Age 2 continua a sofrer de síndrome de irmão do meio. É o 8 e o 80 do original, com uma direção artística única (que continua a ter o melhor design dos elfos e dos Qunari, que nunca mais foi repetido), um combate mais fluido e vistoso e uma escala de eventos mais contida e íntima, que veio cimentar a minha predileção à medida que o tempo me escapa pelos dedos e as responsabilidades de adulto aumentam.
Já o grande problema do Dragon Age: Inquisition é mesmo a sua “MMOnização” e uma crise de identidade entranhada na Bioware. Posso dizer que apenas gostei de Dragon Age: Inquisition quando o consegui modificar para remover os tempos de espera entre missões e passei a ignorar a abundância de missões genéricas e os seus mapas enormes, mas igualmente vazios e desinteressantes, porque o resto estava lá. Principalmente, a história e o bando de personagens que pintam este épico final de trilogia. E, claro, sem esquecer as expansões que estenderam tapeçarias de mitologia passada, com peso para o futuro — que é agora, em Dragon Age: The Veilguard.
Não escrevi final da trilogia por mero acaso, uma vez que Dragon Age: The Veilguard é em partes sequela e um soft reboot à franquia. Tanto que o jogo não considera o grosso das decisões das prequelas, salvo três durante a criação da personagem. Os anos também passaram por Thedas, com o regresso do velho Varric, Harding, ou o início da nossa Veilguard, que continuam na alçada de um Solas trágico que está cada vez mais próximo de rasgar o véu que separa o mundo mágico do real.
Durante um prólogo nada ameno, conseguimos impedir o ritual, apenas para libertar a dupla de vilões cthulhuescos que ameaça fazer bem pior ao mundo que viemos a conhecer durante três jogos. Se calhar, devíamos ter estado quietos…. Embora a premissa seja uma de salvar o mundo novamente do apocalipse, é a viagem até esse destino que fez com que Dragon Age: The Veilguard se tornasse num dos melhores jogos para fechar o meu ano. Ainda na análise ao Metaphor: ReFantazio, referi que não podia fechar a porta porque este já estava instalado e pronto a seguir. Agora que o terminei, posso afirmar que foi um privilégio terminar 2024 com estes dois RPG massivos, que não podiam ser mais diferentes, mas que, de igual modo, me encheram as medidas e me apertaram o coração.
Durante as minhas quase setenta horas, foi-me impossível escapar à discussão sobre a qualidade da escrita. Embora reconheça que o ato inicial seja um nada expositivo, também é necessário para situar o nosso Rook, o avatar que funciona como ponte para o jogador, do que está a acontecer em Thedas. Afinal, passaram-se mesmo dez anos, mas assim que o jogo descobre o seu ritmo, é uma viagem incrível, enternecedora e angustiante.
Sempre achei as séries da Bioware abertas e honestas no que toca a inclusão e a representação, com conversas necessárias num mundo cada vez mais enublado. Mesmo que não se aplique à nossa identidade pessoal, se houver alguém que se identifique com algum momento do jogo, então é uma vitória bonita e nós só temos de ter empatia. Se tiver de implicar um bocadinho nesta área, é apenas no que toca à escrita e à escolha de vocabulário, principalmente num jogo tão rico de mitologia e dialetos distintos. Se o uso de termos contemporâneos funcionaria num Life is Strange ou até num Mass Effect(futurista, mas grounded), não vejo a necessidade de quebrarem a imersão quando a própria cultura da personagem e as missões já traçam os paralelos da mensagem.
Reunir a nossa Veilguard segue uma fórmula muito semelhante à de Mass Effect 2, onde recrutamos especialistas e aprendemos a lidar com eles. Parte do gozo passou por reencontrar a Harding que regressa de Dragon Age: Inquisition para me roubar o coração; a Neve que é quase uma Batman dos Shadow Dragons; a elétrica Bellara que adora escrever; o necromancer Emmrich que receia a morte; o Davrin que chega acompanhado de um grifo; o Lucanis que adora café, mas precisa de terapia; e a Taash que leva tudo à frente e mal saiu da minha formação — se Dragon Age é um gelado, estes pequenos momentos são as coberturas que dão sabor às muitas horas de jogo.
Neste vácuo de anos, não dá para não comparar com outros jogos semelhantes no género e o mais recente na memória é, talvez injustamente, Baldur’s Gate 3 que cativou tanto veteranos da série como novatos em mecânicas de D&D ou RPG imersivos deste calibre. Podemos não ouvir muito sobre a campanha principal, mas vamos ouvir como o Astarion ou a Shadowheart “isto e aquilo”. No entanto, admito que me senti mais envolvido em Dragon Age: The Veilguard porque a história não só estava mais bem estruturada como as personagens sentiam-se mais envolvidas e orgânicas. Um casamento de fatores que elevavam os riscos do final.
E, caramba, se o jogo não é divertido! Com todos os meus queixumes do Dragon Age: Inquisition a irem pela janela. Bastou reduzir a dimensão dos mapas, personalizá-los e torná-los apelativos à exploração com um toque metroidvania que pedia novas voltas à medida que expandíamos a Veilguard e fazíamos uso das suas habilidades transversais. Existem alguns puzzles ambientais e outros desafios, sem esquecer os tradicionais colecionáveis – que em vez de ocuparem espaço no inventário, podiam ser logo vendidos. E se estes forem repetidos, contribuíam para a melhoria e raridade do equipamento.
O combate aproxima-se mais do segundo jogo e recupera a aquela fluidez e o festim visual do caos que é ligar combos, magias e habilidades especiais, para limpar as hordas de inimigos que acham que nos podem parar. Logo de imediato, podemos optar pelas classes de Warrior, Rogue e Mage e partir daí até às especializações. Na minha maratona, optei sempre por Mage, mas aqui quis ser básico e fui com o Warrior que combina os tradicionais combos rápidos e pesados com algum ataque à distância quando atiramos o escudo à Capitão América. Numa próxima volta, vou regressar a Mage com um toque de necromancer.
Ainda que o combate puxe para a ação pura, também pede alguma estratégia para dar a volta a inimigos protegidos ou com escudos e barreiras mágicas, mas são os bosses que nos vão fazer explorar mais as mecânicas, como o anel de habilidades que abrimos para comandar os dois parceiros ou combinar combos, que usei mais vezes aqui do que na prequela.
Dragon Age: The Veilguard também é o epítome da liberdade, para além do incrível criador de personagens que, finalmente, inclui cabelos longos e barbas que não parecem cartão! Na Lighthouse, que serve como base, podemos alterar a aparência a qualquer altura, assim como as imensas roupas e armaduras que apanhamos ou compramos — admito que trocava sempre de roupa quando voltava a casa para estar sempre em cima das tendências.
Apenas dois detalhes permanecem fixos até ao final do jogo: a nossa fação, que influencia alguns diálogos e relações, e a nossa espécie. De resto, o céu é o limite na hora de desenvolver Rook e os companheiros. Sem qualquer penalização, podemos recuperar os pontos de habilidades e seguir em direções opostas. Se comecei como Warrior Reaper, acabei como Warrior Grey Warden focado em dano directo. Idem para os companheiros que podemos ajustar à nossa maneira de jogar. Esta liberdade também se estende às opções de acessibilidade, com uma miríade de opções que podemos ajustar para personalizar a nossa experiência — desde definir o nível de dano ou a energia dos inimigos às mais básicas do tamanho das legendas e espectros de cores. O mote é mesmo sermos quem quisermos neste universo e jogarmos como quisermos.
Ainda a espelhar o segundo jogo, a direção artística de Dragon Age: The Veilguard troca o realismo por um estilo mais animado, algo que gerou alguns zunzuns injustos sobre a seriedade e o peso dos temas, quando achei que conseguiu exacerbar o terror e o grotesco de alguns momentos da história. Às tantas, dava por mim a passear e a admirar os cenários sempre belos e distintos, como a caótica cidade mercantil de Treviso, uma cidade mortuária repleta de vida ou as cascatas de Rivain de onde espreitavam dragões. Consoante as nossas decisões, o cenário poderá mudar drasticamente e depois havia uma atenção ao detalhe impressionante, como as pessoas metidas nas suas vidas a reagir aos acontecimentos ou o baque da perna prostética de Neve, entre muitas outras coisas pequenas, mas vitais para o realismo daquele mundo.
Infelizmente, a banda sonora não me cativou por aí além e depois de ter jogado a trilogia, percebi que sentia falta das influências de Inon Zur. Há um tema ou outro que se destaca, mas não podemos vencer em todas as frentes. Algo que senti que foi desapontante, considerando que a banda sonora está a cargo de Hans Zimmer e Lorne Balfe.
Dragon Age: The Veilguard não só honra o legado de Dragon Age, como também oferece novas possibilidades para o futuro da série, ou de Mass Effect! Se a Bioware conseguir manter esta qualidade, o próximo capítulo poderá ser ainda mais grandioso. Mas uma coisa é certa: a magia do estúdio não desapareceu — apenas se transformou. Este jogo divertiu-me tanto, fez-me sofrer com o peso das minhas decisões e fez-me sentir como se estivesse a descobrir o Dragon Age: Origins pela primeira vez num longínquo 2009. Até tenho receio de jogar outra coisa e estragar esta mão de excelentes RPGs, mas talvez me atire à expansão do Cyberpunk 2077 e seja o que Deus quiser.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Electronic Arts.