Crítica – Doutor Sono (Doctor Sleep)

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Doutor Sono é a continuação da história de Danny Torrance (Ewan McGregor) 40 anos depois dos eventos aterrorizantes de The Shining (realizado por Stanley Kubrick, baseado na obra de Stephen King com o mesmo nome). Ainda traumatizado pelos acontecimentos no Overlook quando era criança, Dan tem lutado para encontrar uma vida pacífica. Mas essa paz é quebrada quando encontra Abra (Kyliegh Curran), uma adolescente corajosa com um poder sobrenatural apelidado de “shine”. Quando reconhece instintivamente que Dan tem o mesmo poder, Abra procura-o, desesperada por ajuda, contra a impiedosa Rose the Hat (Rebecca Ferguson) e os seus seguidores, The True Knot, que se alimentam do “shine” de inocentes em busca de imortalidade.

Existe uma ideia que tem vindo a ser mal concebida de que “filmes assustadores” são aqueles com demónios, monstros ou fantasmas que aparecem literalmente em sequências com jump scares, umas após as outras, acompanhadas por um som extremamente alto. É verdade que temos medo do que temos medo. Não há debate aqui.

No entanto, uma queixa comum sobre este tipo de filmes de horror é de que não “metem medo”. Não poderia discordar mais. Estes filmes são os que realmente nos atingem e ficam connosco por um tempo. Quando assistimos a um filme com sustos cíclicos, esquecemo-nos dele assim que saímos do cinema. Filmes com uma história horrível, baseada em temas relacionáveis, esses sim, deixam-nos desconfortáveis e perturbados. Escrevo este “preâmbulo” para dizer que não devem esperar um filme “assustador”. Pelo menos, não na maneira mainstream. Continuando…

Como provavelmente já descobriram (caso contrário, leiam a minha crítica a The Shining), sou um grande fã da adaptação cinemática de Stanley Kubrick do livro de Stephen King. É um clássico de culto de horror que influenciou novas gerações, especialmente no que diz respeito a técnicas de filmmaking e equipamentos.

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Dito isto, Mike Flanagan tem aqui um dos trabalhos mais difíceis de 2019. Não só necessitava de entregar uma sequela digna de ser associada a um clássico amado por muitos, como teve que lidar com todas as diferenças entre o material de origem e as mudanças de Kubrick.

Vou deixar aqui um SPOILER WARNING para The Shining, visto que o filme saiu há 40 anos e já escrevi a minha opinião sobre o mesmo. De qualquer das maneiras, SPOILER-FREE para Doutor Sono, não se preocupem.

No caso de não terem conhecimento, a grande diferença entre o livro de King e a adaptação de Kubrick é o final. No livro, Jack Torrance esquece-se de aliviar a pressão da caldeira do hotel e esta explode, destruindo o hotel e matando Jack no processo. No filme de Kubrick, Jack morre congelado no labirinto em frente ao hotel enquanto persegue o seu filho, ao passo que o hotel fica de pé. Flanagan faz o impossível: continua na perfeição a história deixada por Kubrick, respeitando os desenvolvimentos do livro de King.

Não vão ao cinema com uma mentalidade “purista”, achando que Flanagan não tem o direito de explorar e expandir o “shine”. É uma sequela, por isso, é normal esperar que existam novas adições à história (nada é removido ou corrigido, podem relaxar). Enquanto fizer sentido, estejam sempre abertos a novas ideias.

Como realizador, Flanagan prova, mais uma vez, que é muito talentoso, recriando perfeitamente algumas das cenas mais icónicas de The Shining, mas também demonstrando alguns truques da sua autoria. Com a ajuda do seu cinematógrafo espetacular, Michael Fimognari, é possível gerar níveis incríveis de tensão, caraterísticos do filme original. Como editor, junta tudo notavelmente bem. As sequências dentro da mente das personagens são brilhantemente abordadas e proporcionam alguns dos melhores momentos de todo o filme. No entanto, há uma enorme diferença no que toca à maneira como o tempo flui em cada filme.

Ambos cruzam a marca dos 140 minutos e ambos, propositadamente, empregam um ritmo lento. No entanto, The Shining dá a sensação de passar mais rapidamente que Doutor Sono (e matematicamente tem menos 5-10 minutos, mas não é esse o ponto). Porquê? Devido ao filme de Kubrick ter constantemente takes longos e diálogos extensos, enquanto que a obra de Flanagan tem uma implementação moderna com cortes regulares, além de muito mais ação. O público não vai presumivelmente pensar nisto (o “espetador comum” não repara ou nem se preocupa se uma cena já vai em cinco minutos seguidos ou se foi colada com 50 cortes) e apenas assumir que este último é mais aborrecido que o primeiro, sem realmente entender porquê.

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As pessoas irão, muito provavelmente, culpar cegamente a história, mas Doutor Sono tem muito mais “entretenimento blockbuster” do que The Shining. Este último contém praticamente duas horas passadas dentro de um hotel onde o diálogo é a principal fonte de entretenimento (as coisas só enlouquecem nos últimos 15-20 minutos) e todos nós sabemos que o público em geral normalmente não cai nessa. A sequela tem muito mais ação, subplots e personagens, então o tempo deveria passar mais rápido do que o original, certo? Não.

Doutor Sono é a prova número um que vou usar de hoje em diante para defender que as sequências de diálogo sem cortes e takes longos são a melhor maneira de controlar um tempo de execução prolongado sem este se sentir muito “pesado”, especialmente num filme de horror psicológico.

Escrevi estes últimos parágrafos não para criticar que Doutor Sono é muito lento, longo ou aborrecido. Estou apenas a tentar ajudar a entender as razões pelas quais o filme poderá dar a sensação de ser mais lento e (muito) longo, protegendo a sua história porque o argumento é extremamente bem escrito e desenvolvido.

Como no original, a exposição é tratada lindamente com escassos despejos preguiçosos, mas são as personagens de Ewan McGregor e da estreante Kyliegh Curran que carregam a narrativa sem esforço. McGregor é o casting perfeito como Danny Torrance e faz um grande trabalho ao incorporar a personalidade de Dan. No entanto, é a vida que Danny leva que me impressiona.

É um desenvolvimento excecional de personagem! A vida de Danny após os eventos no Overlook Hotel é tão realista e lógica quanto poderia ser. Flanagan faz um trabalho fenomenal em lidar com esta personagem e atira-lhe os obstáculos certos no seu caminho. A maneira como lida com as consequências de The Shining, como cresce como um homem e, até mesmo, o que acaba a fazer para se sustentar, tudo é absolutamente perfeito.

Além disso, ele não está sozinho. Abra é uma jovem badass que quer usar o seu “shine” para proteger outros iguais a ela, mas, desta vez, é a atriz que rouba os holofotes da personagem. Kyliegh Curran entrega uma das melhores estreias de jovens atores que já testemunhei. Ela é maravilhosa como Abra e o seu alcance emocional já é surpreendentemente vasto.

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Tem algumas das melhores cenas do filme, especialmente quando ela “luta” contra Rose the Hat, mas aqui é onde chegamos ao meu grande problema com o filme. Rebecca Ferguson oferece um excelente desempenho, sem dúvida alguma. Eleva inúmeras sequências, dando 200% ao seu papel. No entanto, a sua personagem e o grupo The True Knot são a única falha significativa desta sequela. Ao escrever um vilão, existem basicamente dois caminhos para o sucesso: ou fazer o “bad guy” uma personagem convincente com quem o público pode criar algum tipo de empatia e entender de onde ele/ela vem, ou transformar o mesmo numa força ameaçadora, poderosa e assustadora que nos faça temer pelos nossos heróis.

Flanagan aparentemente escolhe a última hipótese e, infelizmente, é o seu único passo em falso. Não sei se King não permitiu mudanças a Rose ou ao culto The True Knot, mas estesnão funcionam assim tão bem quando se adaptam ao grande ecrã. Não só a sua história nunca é verdadeiramente explorada (apesar de terem bastante tempo de ecrã), mas as suas motivações são muito superficiais, logo não me importei com uma única personagem do grupo, nem mesmo Rose. Se ela fosse a tal “força ameaçadora, poderosa e assustadora” que descrevi acima, isso não seria tão importante, mas a verdade é que ela não é.

À medida que a narrativa progride, esta lembra constantemente de que os nossos heróis estão em perigo e que Rose é surpreendentemente forte, mas as interações entre ela e Abra provam o contrário. Assim, também nunca me senti assustado ou afetado por ela.

Um bocado decente do tempo de execução é entregue ao grupo de Rose, mas o seu desenvolvimento não funcionou da melhor maneira. No entanto, esse é o único grande problema que tenho com Doutor Sono. Para os verdadeiros fãs de The Shining, as inúmeras referências e Easter Eggs são uma delícia (existe bom e mau fan-service, o presente neste filme apenas aparece depois de já nos sentirmos investidos na história e nas personagens, ou seja, mais uma demonstração do talento de Flanagan).

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Desde a banda sonora assombrosa e viciante que os The Newton Brothers são capazes de adaptar à sequela, ao framing influente de Kubrick, Flanagan e a sua equipa produziram algo bastante extraordinário, tendo em mente que esta é uma sequela a um dos filmes de horror mais amados de sempre.

No final, Doutor Sono pode muito bem ser a primeira sequela/remake/reboot/whatever de um clássico de culto que não diminui o original, não o copia vergonhosamente nem lhe tira a essência, enquanto realmente consegue ser um filme individualmente excelente com uma narrativa cativante e personagens convincentes, para além da quantidade certa de homenagens ao clássico.

Mike Flanagan assumiu a tarefa impossível de equilibrar tanto o livro de Stephen King como a adaptação cinemática de Stanley Kubrick, ambos de nome The Shining, e, com sucesso, acertou em praticamente tudo, criando uma conexão entre as histórias principais de forma sublime. Para além do ritmo lento não funcionar tão bem como no original, o grupo The True Knot é o tropeço num argumento bastante consistente em tudo resto.

No entanto, o elenco fenomenal (com um desempenho de estreia fantástico de Kyliegh Curran) eleva todas as cenas, ultimamente levando a sequela a um final cheio de nostalgia que vai acabar por dividir muitos fãs. Eu encontro-me do lado positivo, por isso, aprecio imenso este Doutor Sono. Se são fãs do original, não podem perder este!

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1 Comentário

  1. Se ao menos Ewan McGregor conseguisse interpretar este filme de uma forma menos apática…. e ser Jack Torrance quando é suposto que o seja (em certa altura do filme, é suposto que assim aconteça ) ! Teria feito toda a diferença! Nem todos podem ser Jack Nicholson, nós sabemos! Mas um actor deve interpretar o seu personagem e Jack Torrance com um machado na mão…. é tudo menos o que Ewan McGregor nos mostrou! ! Não será a melhor interpretação da sua carreira! Aplausos para a interpretação de Rebecca Ferguson, que aqui demonstra que “mais vale ser do que parecer”. É dela a interpretação que deslumbra neste filme!

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