Mother, Couch é uma obra que desafia o espetador a mergulhar profundamente em temas complexos de família, luto e aceitação.
Aprecio todos os géneros do cinema. É verdade: não existe nenhuma maneira de contar histórias nem nenhum ambiente fictício que automaticamente me deixe de pé atrás – acredito genuinamente que todos os géneros têm as suas obras-primas. Dito isto, tal como qualquer espetador, possuo as minhas preferências pessoais e, de facto, existem alguns – poucos – tipos de filmes com os quais tenho mais dificuldades em me investir emocionalmente. O subgénero – se é que se pode chamar assim – do absurdo/surreal é um deles, pelo que Mother, Couch iria sempre ser uma visualização complicada.
Para a sua estreia em longas-metragens, o argumentista-realizador Niclas Larsson escolheu adaptar o livro sueco Mamma i soffa de Jerker Virdborg. A história começa com uma mãe de três filhos a sentar-se num sofá de uma loja de mobiliário… e a permanecer no mesmo. Os irmãos juntam-se, assim como os donos da loja, para uma viagem de auto-descoberta alucinante. Apesar de ter entrado para a sala de cinema sem qualquer conhecimento prévio da obra – o elenco foi quem me chamou mais à atenção – deu para perceber por esta premissa que Mother, Couch iria ser um filme de fazer pensar.
E assim foi. Larsson recheia a sua adaptação de ambiguidade, simbolismo, metáforas e temas complexos explorados através de humor negro, questões existenciais e, principalmente, dinâmicas familiares. É o típico filme que leva o público geral a desistir em poucos minutos por ser obrigado a interpretar à sua maneira todas as interações entre personagens e pontos de enredo durante todo o tempo de execução sem ajudas diretas, concretas ou palpáveis. Mother, Couch é pouco acessível nesse aspeto – requer constante reflexão e ponderação sobre o que vai acontecendo e o que cada momento significa – mas, pessoalmente, os tópicos estudados e circunstâncias narrativas foram feitos à minha medida.
Enquanto irmão mais novo de três filhos, era impossível não me rever nas inúmeras das dinâmicas entre David (Ewan McGregor), Gruffudd (Rhys Ifans) e Linda (Lara Flynn Boyle), assim como cada um age perante a sua mãe sem nome (Ellen Burstyn) – detalhe que, obviamente, não é por acaso. Sem recorrer aos spoilers, é deveras interessante assistir a uma história tão ambígua e, no entanto, tão relacionável. Ao mesmo tempo que algo bastante surreal ocorre, encontro uma familiaridade estranha. Sejam as relações completamente distintas entre a mãe e cada filho, os mal-entendidos não resolvidos do passado que perduram após várias décadas, ou as comparações invejosas entre os membros familiares, Mother, Couch tem muito a dizer sobre família no geral.
A ideia e mensagem de destaque passa pela análise ao conflito. A perspetiva de que conflito faz parte de qualquer família e que alguns problemas simplesmente não são para serem resolvidos, mas sim reconhecidos e compreendidos como algo que faz parte da vida e dos laços familiares atingiu-me profundamente. Perdemos tanto tempo chateados, tristes, perturbados e ressentidos com situações que, muitas vezes, aconteceram há tantos anos atrás que ninguém se recorda ao certo como exatamente ocorreram ou de onde começaram. No entanto, as emoções negativas permanecem ao invés de simplesmente seguirmos em frente e aceitar que a vida é mais do que mal-entendidos ou ações incompreensíveis espontâneas.
Larsson explora também o abandonamento familiar e a forma distinta como cada pessoa lida com o luto. Tal como em tudo o resto, Mother, Couch é extremamente ambíguo com imenso simbolismo material e desenvolvimentos de personagem e de enredo abertos a diferentes interpretações. O sofá não é só um sofá. A loja não é só uma loja. As pessoas não são apenas pessoas. Esta ambiguidade avassaladora encontra-se presente durante toda a obra até ao último segundo, o que naturalmente traz os seus prós e contras.
Um ponto positivo é o facto de ser possível criar tantas teorias que facilmente se chega a alguma que satisfaça o espetador, em adição ao poder refletivo que a história possui – goste-se ou não de Mother, Couch, dificilmente se sai da sala de cinema sem o cérebro a fumegar. Do outro lado da moeda, infundir a narrativa num mundo onde tudo e todos podem não ser reais ou simplesmente o que é suposto serem, cria confusão e demora a juntar as peças todas do puzzle – e quando completo, apesar de instigante, a conclusão não é propriamente arrebatadora ou nunca antes vista.
Tecnicamente, a banda sonora de Christopher Bear (Past Lives) destaca-se pelas suas notas e melodias cómicas, contribuindo para a camada de humor que rodeia a obra, enfatizando os pedaços ridículos de diálogo com pausas estranhas. Dito isto, muito do sucesso de Mother, Couch passa pelas prestações estrondosas do elenco, de uma ponta à outra. McGregor (Doctor Sleep), Ifans (House of the Dragon) e Boyle (Twin Peaks) partilham uma química fantástica e denota-se um trabalho conjunto fabuloso em distinguir bem as personalidades de cada irmão, mas o ator escocês entrega mesmo uma das performances mais memoráveis da sua carreira como um protagonista complexo que passa por uma autêntica montanha-russa de emoções.
Burstyn (Alice Doesn’t Live Here Anymore) é igualmente imponente ao interpretar uma mãe cuja vida encontra-se recheada de revelações chocantes e traumáticas. Taylor Russell (Bones and All) traz uma inocência e humildade enorme a Bella, filha do dono da loja de mobiliário, personagem que se vê inicialmente envolta num subenredo que, em retrospetiva, peca por relevância, mas que cria uma ligação com David importante para o desenrolar do arco do protagonista.
É algo difícil recomendar Mother, Couch a alguém que não seja um cinéfilo com um gosto particular por este tipo de narrativas. Não considero a obra de Larsson tão inacessível como, por exemplo, I’m Thinking of Ending Things, Men ou Beau is Afraid, mas estaria a mentir se escrevesse que é uma visualização leve de entretenimento barato para agradar ao espetador comum. É um filme para pensar e refletir durante e após o mesmo, por isso, se olham para o cinema como um espaço de escapismo puro e não para entrar numa sala de estudo cinemático, recomendo deixar para outros desfrutarem.
VEREDITO
Mother, Couch é uma obra que desafia o espetador a mergulhar profundamente em temas complexos de família, luto e aceitação. Niclas Larsson adapta o material original com uma mistura de humor negro, ambiguidade e simbolismo, criando uma narrativa que tem tanto de surreal como de instigante. Com prestações soberbas de todo o elenco, principalmente Ewan McGregor, o filme explora de forma aberta e contemplativa as dinâmicas familiares e os conflitos não resolvidos que perduram ao longo dos anos. Embora possa não ser totalmente acessível para o público geral, oferece uma experiência cinematográfica rica para aqueles dispostos a interpretar as suas múltiplas camadas e significados.