Argylle surge como uma (muito) agradável surpresa deste novo ano, fundindo o absurdo com a sofisticação para criar uma experiência cinemática verdadeiramente memorável.
Costuma-se dizer que, antes de se sequer pensar em construir uma nova franquia, deve-se priorizar o sucesso individual do primeiro filme. Foi assim com a saga Kingsman, que apenas arrancou após a confirmação do seu sucesso comercial e financeiro. O seu obreiro, Matthew Vaughn, decide agora expandir para um universo cinemático – com intenções de eventuais crossovers – ao criar uma nova trilogia iniciada precisamente por Argylle. À entrada para o cinema, as expetativas não eram propriamente altas – o debate online sobre o corte de cabelo ridículo de Henry Cavill (Mission: Impossible – Fallout) não gerou um ambiente muito positivo – mas existia uma esperança razoável por um bom serão cinéfilo.
Para além do elenco recheado de todo o tipo de estrelas, também tinha o conhecimento da intrigante premissa narrativa. Argylle conta a história de Elly Conway – interpretada por Bryce Dallas Howard (Jurassic World Dominion) – uma autora de uma coleção de livros de espionagem de grande sucesso. Porém, quando os seus enredos fictícios começam a espelhar as ações clandestinas de uma organização da vida real, as noites caseiras tranquilas tornam-se algo do passado. Acompanhada por um verdadeiro espião de seu nome Aidan – representado por Sam Rockwell (Jojo Rabbit) – Elly atravessa o mundo na tentativa de permanecer um passo à frente dos criminosos, com múltiplas revelações chocantes, reviravoltas inesperadas e sequências de luta notáveis pelo caminho.
Mas que grande surpresa! Argylle encontra-se naquela semana de transição entre janeiro e fevereiro, mas é facilmente dos melhores filmes dos últimos anos lançados por esta altura. Vaughn consegue aproveitar a sua premissa abertamente tonta e criar uma atmosfera campy – algo propositadamente exagerado e irónico que abraça a sua própria absurdez – genuinamente cativante, carregada de sequências entusiasmantes e emanando um charme quase nostálgico. O argumento inteligente de Jason Fuchs (I Still See You) encontra-se repleto de conexões minuciosas entre elementos narrativos introduzidos ao longo da obra, sendo que todos possuem algum tipo de impacto no enredo principal, no arco de uma personagem ou simplesmente contribuem para o valor de entretenimento através de um momento de humor ou ação.
Nenhuma cena é estruturada ao acaso, nem nenhum detalhe narrativo ou de personagem é atirado ao ar sem explicação – desde o próprio nome que dá título ao filme ao cabelo de Cavill, nada escapa à atenção de Vaughn e Fuchs. Argylle é um exemplo perfeito de como transformar um argumento mais complexo do que aparenta numa história tremendamente acessível para qualquer audiência. A tal natureza campy enriquece os métodos de storytelling aplicados por Vaughn e Fuchs, nomeadamente as inúmeros reviravoltas habitualmente presentes em obras deste género, onde ninguém é fiável, qualquer pessoa pode ser o verdadeiro inimigo e existe uma nova revelação ao virar de cada esquina. Acredito que muitos olhem com desconfiança para a duração de 139 minutos, mas o cuidado em fazer valer cada um destes minutos ultimamente justifica as mais de duras horas de diversão contínua.
O primeiro ato coloca as peças todas na mesa, mas suficientemente desconetadas para manter o público intrigado. No fundo, Argylle acaba por se tornar numa jornada de auto-descoberta, apenas bem mais literal do que o costume filosófico. Enquanto Conway mergulha neste mundo cheio de incógnitas, também descobre mais sobre si mesma, levando a um segundo ato surpreendentemente imprevisível, agarrando a atenção dos espetadores uma e outra vez sempre que a obra ameaça perder um bocado do seu embalo fascinante.
Comédia, ação e espionagem são os três (sub)géneros claramente em foco ao longo do filme, mas o terceiro ato é uma culminação mágica dos mesmos e de todos os elementos que os interligam. São três momentos de entretenimento a todos os níveis. Admito a potencial precipitação com este comentário, mas duvido que Argylle não apareça em listas de fim de ano no que toca às melhores sequências de luta/tiroteio. Desde uma coreografia de luta/dança simultaneamente hilariante e tecnicamente impressionante à escolha musical soberba também de fazer chorar a rir – a banda sonora de Lorne Balfe (Mission: Impossible – Dead Reckoning) também merece elogios -, não esquecendo as cores avassaladoramente deslumbrantes que preenchem o ecrã e as prestações igualmente memoráveis dos atores em questão, este momento em particular fará a maioria do público sair do cinema com um sorriso de orelha a orelha.
Argylle poderá ser “demasiado” para alguns espetadores – seja pela vertente absurda ou pelas reviravoltas infindáveis que podem tornar-se irritantes – mas a conclusão deliciosa é inegavelmente impactante – o trabalho de câmara de George Richmond (Free Guy) é um claro destaque técnico. Se quisesse ser mesquinho, diria que talvez trocasse a ordem destas três sequências que perfazem a conclusão climática do filme de forma a terminar com a mais catártica. Existe também uma pequena fase de maior redundância e menor energia na transição do segundo para o terceiro ato. Mas fora estes pormenores, Vaughn conseguiu mesmo entregar uma obra de grande satisfação.
Nota final para o elenco que tanto eleva os seus guiões individuais – escolhas de elenco absolutamente fenomenais! Uma das preocupações iniciais era mesmo sobre Argylle possuir imensos atores conhecidos, pelo menos o suficiente para justificar mais do que um papel totalmente irrelevante e facilmente esquecível de poucos segundos. O balanço entre os mesmos teria de ser sublime e, mesmo não sendo perfeito, todos contêm a sua oportunidade para brilhar à frente do palco principal com os holofotes a apontarem para os mesmos – Dua Lipa (Barbie), Ariana DeBose (Wish), John Cena (Fast X) e Samuel L. Jackson (The Marvels) não têm muitos minutos, mas ninguém se esquecerá das suas cenas.
Cavill surpreendentemente não tem o tempo de ecrã que muitos antecipam – ser o primeiro nome na lista do elenco levará a expetativas enganadoras -, mas oferece a sua presença física em muitas sequências de luta. Dificilmente se podia arranjar alguém melhor que Bryan Cranston (Asteroid City) para representar um vilão propositadamente cliché com todas as suas falas exageradas – que ator brilhante! Rockwell serve de complemento ideal à protagonista, tanto a nível cómico como de ação, demostrando todo o seu alcance e experiência enquanto ator de renome que é. Finalmente, Howard lidera com uma performance completíssima, alternando entre a sua verdadeira personalidade e aquela(s) que o enredo a força a tomar. As mudanças bruscas nas suas expressões e postura corporal identificam a versão da personagem que encarna, provando novamente o quão subvalorizada a atriz realmente é.
VEREDITO
Argylle surge como uma (muito) agradável surpresa deste novo ano, fundindo o absurdo com a sofisticação para criar uma experiência cinemática verdadeiramente memorável. A visão de Matthew Vaughn, aliada ao perspicaz e inteligente argumento de Jason Fuchs, proporciona uma autêntica montanha-russa de entretenimento que rebenta com as expetativas iniciais. Desde reviravoltas de enredo inesperadas até ao elenco incrivelmente carismático, sem esquecer um terceiro ato recheado de sequências de ação inesquecivelmente hilariantes, a história de espionagem complexa tornada simples conquista o público com o seu charme campy e energia implacável. A minha primeira grande recomendação de 2024 que não podem perder no cinema!