Crítica – Alice, Darling

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Alice, Darling aborda de forma brilhante o tema sensível de abuso em relações amorosas.

Frequentemente, Hollywood tenta lidar com tópicos muito sensíveis de maneira exploradora, mesmo que, por vezes, a intenção do cineasta esteja longe disso. Desde filmes altamente divisivos como Blonde e The Son, sem esquecer como até Joker foi recebido por alguns espetadores, todos os temas ligados a traumas reais, tragédias ou condições de saúde devem ser tratados com respeito e com uma mensagem clara, informativa e significativa. Realizado por Mary Nighy na sua estreia em longas-metragens e redigido por Alanna Francis, Alice, Darling é o filme mais recente a abordar relacionamentos amorosos abusivos.

Costumo encaminhar os leitores lentamente para a minha opinião sobre os filmes, mas, desta vez, sinto alguma urgência em partilhar a razão pela qual o argumento de Francis é tão brilhante logo de início, apesar deste não ser capaz de evitar as fórmulas típicas do subgénero. Não vai surpreender quem está acostumado a este tipo de storytelling, mas Alice, Darling destaca-se pelo tratamento bonito que oferece a todas as personagens normalmente envolvidas em situações como a de Alice (Anna Kendrick), ou seja, alguém preso numa relação claustrofóbica e sufocante com um parceiro tóxico que remove toda a vontade, liberdade de escolha e alegria da sua contraparte.

Permitam-me começar com o namorado, Simon, interpretado por Charlie Carrick (Hidden Assets). Muitos filmes optam por focar a sua história na violência física dentro do casal, daí os comentários sobre como os problemas sérios da vida real são, infelizmente, dramatizados em demasia, explorando a dor da vítima em prol de entretenimento barato. Alice, Darling não faz isso. Não só raramente retrata o que causa tanta angústia a Alice – flashbacks curtos e rapidamente editados são a única fonte de informação durante praticamente todo o filme – mas também destaca o quão dolorosa e traumática a violência emocional e psicológica é comparada com pancadaria.

Existem várias linhas de diálogo memoráveis e de vital importância espalhadas por Alice, Darling. Uma delas é “mas ele não me magoa” por parte da protagonista. Alice não acredita verdadeiramente nisto, nem acha que a violência só pode ser alcançada por meios físicos. No entanto, todo o seu ser já está tão afetado por níveis inacreditáveis de manipulação e controlo que é difícil pensar racionalmente. “Porque não se separa e vai embora?” é uma das reações mais incompreensíveis e hipócritas que se pode encontrar sobre este assunto, pois é relativamente simples entender que essa decisão/ação não é algo fácil.

Espaço e tempo longe da fonte tóxica podem ser uma “solução”, mas é sempre necessário um apoio sólido, especialmente de amigos e familiares. Aqui, entra uma demonstração belíssima de sororidade com duas prestações fantásticas do elenco secundário. Kaniehtiio Horn (Possessor) e Wunmi Mosaku (Call Jane) unem forças na interpretação de dois tipos diferentes daquilo que se pode considerar uma verdadeira amiga. Enquanto a primeira fala sempre, partilha a sua opinião honesta e não ignora o elefante na sala, a segunda desempenha um papel de moderadora, tentando entender e respeitar todas as perspetivas, mas também batendo o pé quando as coisas vão para lá de um ponto razoável.

alice darling echo boomer 2

Ambas as personagens são cruciais para o arco previsível, mas emocionante de Alice em redescobrir-se. Alice, Darling é bastante detalhado ao mostrar as distintas maneiras pelas quais a protagonista é psicologicamente perturbada. Puxar o próprio cabelo, verificar constantemente o telemóvel, colocar maquilhagem assim que acorda, tirar fotos sexuais de si mesma para enviar a Simon, isolar-se de qualquer atividade conjunta com as suas amigas, enlouquecer por deixar cair um brinco no lago… tudo o que Alice diz ou faz é de alguma forma manipulado pela forma como Simon a trata.

A cinematografia de Mike McLaughlin encontra-se repleta de close-ups de reações de Alice a cada pequeno pormenor que pode não ser do agrado de Simon, mesmo que este esteja a quilómetros de distância, criando uma atmosfera tensa e stressante. A banda sonora de Owen Pallett também aumenta os níveis de ansiedade. Ainda assim, este é o palco de Anna Kendrick (Pitch Perfect). Estamos todos acostumados a ver a atriz em papéis mais leves e cómicos, mas aqui exibe um tremendo potencial dramático. Sem dúvida, a melhor performance da sua carreira que eleva imenso Alice, Darling. Só podemos desejar que continue por este caminho.

Pessoalmente, o único grande problema está relacionado com uma história secundária de uma jovem desaparecida. Para além de ocupar demasiado tempo de ecrã, este enredo não acrescenta nada à narrativa principal, possuindo apenas uma conexão temática com o arco de Alice que simplesmente reforça ligeiramente uma mensagem clara que os espetadores já haviam captado. Felizmente, Alice, Darling termina com uma cena final não tão subtil, mas deslumbrante e cheio de significado, fechando o arco da protagonista com um momento catártico e notável que deixarei intacto para o público ver por si mesmo.

VEREDITO:

Alice, Darling aborda de forma brilhante o tema sensível de abuso em relações amorosas. O argumento de Alanna Francis destaca-se com um olhar profundo e respeitoso sobre a protagonista emocionalmente perturbada – interpretada por Anna Kendrick na sua melhor prestação da carreira – mas também sobre o melhor da amizade feminina. Uma abordagem não-interesseira sobre como a violência psicológica tem a capacidade de ser tão traumática quanto qualquer outro tipo de abuso físico, bem como a dificuldade tremenda de deixar um relacionamento tão tóxico. Mary Nighy não consegue escapar aos limites formulaicos do subgénero, mas deve sentir-se orgulhosa de uma estreia tão instigante e impactante.

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