Se Rockay City fosse mais do que as suas referências, a sua jogabilidade podia brilhar, mas o que sobra são modos desinteressantes e uma tentativa falhada de injetar alguma novidade ao género roguelike.
É interessante pensar na forma como os memes e a cultura da Internet evoluíram ao longo dos últimos 15 anos. Talvez não se recordem os Advice Dogs e Nyan Cats que tanto popularizaram o formato de reação por memes, mas eles existiram e sem eles não teríamos o abismo surreal em que vivemos agora. Mas antes do Socially Awkward Penguin e de Philosoraptor, acredito que existiu outro fenómeno que marcou a minha geração: os factos sobre o ator Chuck Norris. Recordo-me de estar na faculdade e ler estes factos, rir até cair para o lado, onde Chuck Norris metia medo à morte e matava cobras com uma mordidela. Piadas banais, pouco ou nada intemporais, que simbolizavam tempos mais inocentes na entrada na era da Internet.
Anos depois, Sylvester Stallone teve uma ideia de génio. Perante um novo cinema de ação, mais preocupado com efeitos especiais e CGI, Stallone decidiu voltar atrás no tempo e abraçar a alma e cultura dos filmes de ação dos 80/90s. Um primeiro piscar de olhos ao revivalismo que viria a marcar o final dos 2010s e que ainda hoje se faz sentir, um início protagonizado por Stallone e por todo os heróis envelhecidos que davam cara às capas que víamos nas prateleiras superiores dos clubes de vídeo. Assim nasceu Expendables (ou Mercenários, em português), lançado em 2010, um fenómeno cinematográfico que originou três sequelas – a última a estrear na semana em que escrevo este texto – e toda uma popularidade que ninguém consegue explicar.
Se Expendables propôs-se a ressuscitar todos os atores de ação dos 80/90s que estavam renegados ao mercado Direct to Video, a sequela teria de ir mais longe. Se o primeiro filme contou com Stallone, Dolph Lundgren, Eric Roberts, Mickey Rourke, entre outros, então Expendables 2 precisava ir aos baús e procurar as gemas raras que haviam ficado fora do primeiro filme. Seria preciso aumentar a fasquia e o nível de testosterona envelhecida e Stallone sabia onde bater à porta. Em Expandables 2, Jean-Claude Van Damme e Arnold Schwarzenegger juntaram-se ao elenco, e os fãs entraram em histeria. Mas faltava algo, uma estrela incontornável, cujos factos e memes tinham marcado toda uma nova geração de jovens a saírem da adolescência e a entrarem na vida adulta, cujos pais passavam tardes a ver filmes produzidos pela Cannon e a Carolco: Chuck Norris.
Expendables 2 estreia e a nossa geração, com ou sem vergonha alheia, queria ver Chuck Norris de regresso ao grande ecrã. O herói de Lone Wolf McQuade, Invasion USA, Missing in Action, entre tantos outros, estava de volta. Acima de tudo, o homem maior do que a vida dos memes, que era capaz de tudo, estava de volta. E esta é uma diferença importante para perceberem o impacto cultural daquelas piadas e trocadilhos fáceis. E assim foi. Chuck Norris ia marcar presença em Expendables 2 e eu queria ter a experiência completa na sala de cinema. E assim foi. Com amigos, numa sala cheia, prontos para ver aquele que já era o maior herói do cinema de ação. Ficámos à espera, até que, num momento de dificuldade para a equipa de terceira idade de Stallone, surge Chuck Norris para salvar o dia. O homem caminha por uma rua, dispara a sua arma, salva tudo e todos ao som do tema de The Good, the Bad and the Ugly, composto por Ennio Morricone (se calhar seja uma referência ao tema de Lone Wold McQuade, que não é composto por Morricone, mas é uma cópia descarada da obra do maestro italiano). Apresentação feita. Mas não termina aqui. Antes de Chuck Norris despedir-se, ele decide mencionar um dos seus factos. Sem preparação, motivo ou porquês. Stallone pergunta-lhe se é verdade que ele foi mordido por uma cobra-real e Chuck Norris responde: “Sim e depois de cinco dias de dor, a cobra morreu.” Ao ouvir o facto numa sala de cinema, a sentir o cinismo com que a fala foi escrita, a minha vontade foi de me levantar e desistir do filme. A ilusão quebrou-se ali. Tudo ficou mais claro. O problema do revivalismo, os males da nostalgia e a vontade em perseguir modas – tudo numa só fala.
Crime Boss: Rockay City é a gamificação desse momento. É um videojogo onde Chuck Norris, Danny Glover, Kim Basinger, Michael Madsen, Danny Trejo e Michael Rooker olham para a câmara e expelem memes e referências a filmes passados, cujos direitos a Ingame Studios não tem – logo estão diluídos ao longo dos diálogos -, e que pouco adicionam ao género ou servem como homenagem às personagens, carreiras e filmografias que tentam elevar ao longo de três modos de jogo e missões. E Crime Boss: Rockay City poderia não ser esta amálgama de caras conhecidas se procurasse algum foco na sua jogabilidade e na estrutura dos seus modos, mas a Ingame Studios preferiu apostar nos excessos e nas piadas fáceis sem equilibrar primeiro o que poderia ser um interessante jogo de conquista e influência.
O que Rockay City procura ser, entre os vários modos e géneros que tenta combinar sem sucesso, é uma luta por poder. No papel de Travis Baker, protagonizado por Michael Madsen – que parece estar a deliciar-se com o quão mau é o guião -, nós temos de conquistar a cidade. Para tal, precisamos eliminar e afastar os nossos rivais direitos à medida que conquistamos novos territórios, expandimos a nossa influência e encontramos aliados que podemos utilizar em combate. Esta é a base de Rockay City, uma base que é inerentemente viciante devido à forma como as missões fluem entre si e nos fazem sentir que estamos a conquistar mais bases, a aumentar os nossos lucros e a encontrar novas oportunidades de combate de dia para dia. Durante as primeiras horas, cria-se a ilusão de que estamos a querer jogar mais e a arriscar constantemente em novas missões, mas é aqui que Rockay City revela-se como roguelike e as coisas começam a desmoronar.
A campanha divide-se por dias. Em cada dia, temos acesso a um número de missões principais e secundárias, todas elas com limites temporais. Cabe-nos definir como queremos ocupar o nosso dia. Se queremos roubar um banco, se queremos assaltar uma joalharia, se é-nos benéfico eliminar um detetive – sempre que a polícia é chamada durante uma missão, a nossa percentagem de notoriedade aumenta e temos mais detetives atrás de nós – ou se queremos atacar diretamente um dos nossos rivais e roubar-lhes mercadoria ou terrenos. Para tal, construímos a nossa equipa, constituída por um grupo de NPC aleatórios ou personagens secundárias – que apresentam, inclusivamente, missões a solo e mais lineares que expandem as suas histórias –, que podemos equipar com novas armas e até aumentar o seu nível ao promovê-los entre missões.
Quando escolhemos uma missão, temos a oportunidade de construir uma equipa até quatro elementos – e é aqui que começamos a ver a natureza cooperativa do jogo, já que está pensado para ser jogado com mais pessoas – e até utilizar Travis como um dos atacantes. A diferença entre Travis e as restantes personagens é que ele necessita de pontos de experiência para evoluir de nível – e esses pontos só surgem quando ele é utilizado em combate ou quando adquirimos novas peças decorativas para a sua mansão – e a sua morte dita o final da campanha. Rockay City é um roguelike, ou tenta ser um, e isso significa que perdemos todo o progresso quando Travis é morto em combate. O jogo quer que tenhamos cuidado com a personagem e que só a utilizemos quando é estritamente necessário, mas a sua dificuldade está desequilibrada e posso dizer que é possível terminar quase todas as missões através de estratégias mais brutas e agressivas, com o mínimo de preparação possível. Só morri uma vez na campanha e foi durante a missão final do mais recente DLC.
Quando escolhemos uma missão, somos transportados para a cidade, que se encontra limitada por algumas zonas de interesse – banco, joalharia, bomba de serviço, armazéns, complexo de apartamentos/motel, entre outros –, e somos encaminhados para objetivos simples de seguir: roubar, matar, fugir. A primeira vez que assaltamos um banco, sentimos o passar dos minutos e o receio de provocarmos a atenção da polícia, então somos meticulosos: prendemos os funcionários, eliminamos os guardas, desligamos a segurança e fechamos o banco sem levantar suspeitas. O mesmo pode ser aplicado aos assaltados às joalharias ou aos armazéns dos nossos rivais, onde sentimo-nos inicialmente intimidados pelo número de inimigos e pelo próprio level design – com algumas zonas restritas, atalhos, portas fechadas, etc.
Se formos descobertos, a nossa estratégia muda e passamos ao ataque. Com a ajuda das outras personagens, aqui controladas por IA – que não é, de todo, segura ou fidedigna, até para os nossos inimigos -, temos de contra-atacar contra os gangues rivais ou as forças da polícia, que intensifica até terminarmos a missão. Então temos de equilibrar o contra-ataque com o assalto, à medida que transportamos sacos cheios de mercadoria e tentamos não morrer. Existe algum caos neste processo que tenta beber da fonte que inspirou Payday, mas os picos nunca são altos e sim funcionais. Tudo funciona, mas sem impacto e muito menos se tratam de missões memoráveis.
Mas Rockay City funciona durante as suas primeiras horas devido ao fluxo entre missões rápidas e a sensação de conquista que sentimos ao vermos o mapa a transformar-se lentamente. O problema é que a sua base não é suficientemente forte para aguentar a repetição que se instala. As missões são sempre iguais e pouco mudam entre dias, a jogabilidade é pesada e apenas funcional, a dificuldade é muito mais acessível do que deveria ser para um proto-roguelike e não existe uma história suficientemente interessante ou presente para manter-nos investidos nas personagens ou em Rockay City enquanto cenário para a suposta extravagância que está a acontecer. Crime Boss: Rockay City é um jogo que perde fôlego e não vai a lado nenhum, como se desistisse da corrida antes de a começar. É estranho.
Penso que a Ingame Studios depositou demasiadas esperanças no elenco e na sua vertente roguelike, como se a repetição das campanhas – cujas missões continuam a ser as mesmas e o sistema de contratação e melhoria do nosso exército mantém-se aborrecido, simples e inalterado – resolvesse quaisquer problemas inerentes à base mecânica com que se construiu. Talvez as suas esperanças estivessem depositadas nos modos online cooperativos, mas, para serem um sucesso, poderiam desvirtuar um pouco da campanha a solo e não ser um reflexo da mesma. É uma oportunidade perdida em todos os sentidos. Uma piada mal feita e mal adaptada a um meio que lhe é estranho. E tal como Expendables 4, que estreou recentemente, Rockay City é um flop. O equivalente a uma piada do Chuck Norris que só faz rir Millennials.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela 505 Games.