Wicked tropeça aqui e ali com um ou outro elemento técnico ou narrativo menos polido, mas brilha intensamente graças à combinação poderosa de uma narrativa envolvente, performances memoráveis e momentos musicais arrebatadores.
É muito fácil ser levado por uma antecipação exagerada em torno de uma obra, também ela, altamente antecipada. Ainda mais, nos dias de hoje onde as reações iniciais a este tipo de filmes acarretam quase sempre um tom sensacionalista, para além de se encontrarem recheadas de frase e palavras chamativas que estúdios adoram colocar em posters, trailers e afins. Realizado por Jon M. Chu (In the Heights) e com argumento de Winnie Holzman e Dana Fox (Cruella), Wicked é o mais recente exemplo desse tipo de obras lançado deste ano, sendo esta prequela a The Wizard of Oz adaptada do musical da Broadway de mesmo nome.
Wicked conta com Cynthia Erivo (Bad Times at the El Royale) e Ariana Grande-Butera (Don’t Look Up) nos papéis principais de Elphaba e Glinda, respetivamente, seguindo a história de como as bruxas de Oz se conheceram. Elphaba é uma jovem mulher incompreendida devido à sua pele estranhamente verde, cujo verdadeiro poder ainda está por descobrir. Já Glinda é uma jovem mulher incrivelmente popular, guiada por privilégio e ambição cujo coração verdadeiro também ainda está por descobrir. Após formarem uma amizade improvável na Shiz University, um encontro com o Wonderful Wizard of Oz (Jeff Goldblum) leva-as a um ponto onde as suas vidas tomam caminhos totalmente diferentes…
Com uma revisualização recente da obra original de 1939 e sem qualquer conhecimento prévio sobre a peça de teatro, Wicked surpreendeu-me de inúmeras maneiras em todos os departamentos de cinematográficos que elevam, sem dúvidas, uma narrativa igualmente imersiva com arcos de personagem belissimamente explorados e ligados profundamente aos temas ricos abordados ao longo das duas horas e quarenta de duração. Diria que o maior elogio que posso fazer a um dos filmes do ano é que conseguiu transformar-me em fã de um mundo como a Land of Oz, que antes não despertava o meu interesse ou entusiasmo.
Considero importante começar pelos dois pilares do cinema: história e personagens, pois sem estes componentes narrativos bem construídos, as proezas técnicas de Wicked – ou de qualquer outro filme na verdade – não seriam suficientes para tornar a adaptação memorável. Um dos temas centrais do musical passa pelo julgamento superficial baseado em aparências e primeiras impressões. Seja a discriminação visual perante a cor verde de Elphaba, a conclusão precipitada sobre a personalidade inteira de um príncipe bonito e rebelde, ou a assunção de que Glinda só consegue olhar para o seu umbigo devido à sua maneira de se vestir, andar e comunicar. A mensagem “as aparências iludem” é central para o desenvolvimento do enredo e de praticamente todas as personagens presentes de forma minimamente impactante na obra.
Elphaba e Glinda seguem o típico arco conjunto de personagens que não podiam ser mais opostas – diferenças de origem, postura, morais, motivações e até instinto do “bem” e do “mal” – mas que, ao longo de Wicked, aprendem a colocar os julgamentos iniciais de lado e a darem uma oportunidade mútua de se conhecerem a fundo. A confiança e auto-estima de Glinda ajuda Elphaba a enfrentar dúvidas sobre o seu potencial, ao passo que Elphaba leva Glinda a descobrir que é muito mais do que apenas “popular”. Mudança e redenção são outros tópicos significantes, mais presentes no arco de Glinda, mas com impacto geral na narrativa.
O enredo principal segue um caminho algo previsível, mesmo para quem não é familiar com a história original. Sofre igualmente com uma linha secundária romântica que, pelo menos nesta Part Um, não oferece nem conflitos emocionais, nem problemas individuais, permanecendo como um sub-enredo que, apesar de sequências musicais fenomenais, revela-se pouco interessante. Assim, Wicked acaba por não justificar totalmente a sua duração longa, perdendo algum embalo durante o segundo ato, mas nenhum destes percalços arruína uma das experiências mais cativantes deste ano.
A vasta maioria das sequências musicas destaca-se brilhantemente com letras estimulantes (Stephen Schwartz), tematicamente ricas e que avançam eficientemente com o enredo, para além de aprofundarem as personagens de maneira fascinante. “Defying Gravity” será a escolha natural da maioria dos espetadores no que toca ao número favorito – que permite uma conclusão catártica arrepiante – mas a abertura fantástica com “No One Mourns the Wicked”, a coreografia simultaneamente impressionante e hilariante de “Something Bad”, “What Is This Feeling?” e “Popular”, a tremendamente emocional “I’m Not That Girl”… qualquer um destes momentos permanece fortemente na minha memória. Mérito para a equipa de dançarinos e coreógrafos, assim como para a cinematografia e montagem exímias de Alice Brooks (Tick, Tick… Boom!) e Myron Kerstein (Crazy Rich Asians).
Algo impossível de evitar antes de conseguir assistir a Wicked, foram as críticas surpreendentes à suposta falta de cor e/ou dessaturação da obra no geral. Não podia ter ficado mais em choque à medida que o filme ia avançando, pois se há algo que Chu incutiu nesta adaptação foi um ambiente extremamente colorido. Desde os sets reais construídos para as filmagens ao guarda-roupa vibrante, não é possível compreender de onde originaram tantos comentários negativos relativamente a um dos aspetos visualmente mais arrebatadoras do filme – nota para as inúmeras queixas públicas a várias cadeias de cinema no que toca a tecnicismos de projeção.
O único problema técnico de Wicked passa pelo excesso do uso de contra-luz. Apesar de os efeitos visuais serem, na maior parte do tempo, consistentes e, em alguns momentos, genuinamente hipnotizantes, a iluminação de fundo é tão intensa que, mesmo quando os atores estão em cenários reais, dá a impressão de estarem diante de um ecrã verde. Isso acaba por se tornar uma distração desnecessária, retirando parte da beleza da obra. Os últimos minutos também dependem em demasia dos efeitos especiais, mas o clímax é tão poderoso que é difícil qualquer espetador se sentir afetado negativamente.
Elogios finais necessitam de ser obrigatoriamente entregues ao elenco. Todos, sem exceção, representam as suas personagens de forma absolutamente divinal. Seja Goldblum (Asteroid City) com o seu carisma natural, Michelle Yeoh (Everything Everywhere All at Once) com uma aura misteriosa enquanto Madame Morrible, Marissa Bode com a sua inocência genuína enquanto Nessarose, irmã paraplégica de Elphaba, Jonathan Bailey (Bridgerton) com o seu charme requintado enquanto Fiyero Tigelaar ou até Peter Dinklage (Game of Thrones) com a sua voz inspiradora enquanto Dr. Dillamond, todos têm os seus momentos debaixo dos holofotes.
Mas nada nem ninguém supera as performances inesquecíveis e recheadas de química por parte de Erivo e Grande-Butera. A primeira demonstra que já era, de facto, uma das atrizes mais subvalorizados e ignoradas da indústria, tal o enorme talento e alcance emocional que consegue incorporar nas suas personagens ao longo da sua carreira, especialmente em Elphaba. Já a pop star entrega uma das prestações mais surpreendentes do ano, mostrando um timing cómico incrível, para além de expressividade e fisicalidade igualmente notáveis. Vocalmente, nada a dizer a não ser “uau”. O melhor momento de ambas as atrizes e personagens chega perto da marca da uma hora, onde a essência de toda a história de Wicked e da Land of Oz é retratada na perfeição… e levará a audiência às lágrimas.
VEREDITO
Wicked tropeça aqui e ali com um ou outro elemento técnico ou narrativo menos polido, mas brilha intensamente graças à combinação poderosa de uma narrativa envolvente, performances memoráveis e momentos musicais arrebatadores. Cynthia Erivo e Ariana Grande-Butera entregam prestações verdadeiramente impressionantes que ancoram o filme, com uma química inigualável e uma profundidade emocional que elevam as suas personagens a patamares inacreditáveis, para além de demonstrarem um talento vocal fenomenal. Jon M. Chu constrói uma adaptação ambiciosa e visualmente deslumbrante, capaz de emocionar tanto fãs fervorosos do musical original como novos espetadores. Com mensagens intemporais transmitidas através de arcos e temas estimulantes, assim como departamentos técnicos que equilibram espetáculo e emoção, Wicked não só faz jus ao hype inicial gerado, como deixa o público ansioso pela próxima parte desta história mágica.