Uma análise sentida pelo stress do quotidiano e das dúvidas pessoais, numa narrativa com ramificações que não atinge a inventividade de The Stanley Parable e The Beginner’s Guide, mas que compensa as suas falhas com sinceridade e humanismo. Infelizmente, a jogabilidade não acompanha a narrativa e cai em clichés que desvirtuam os temas quando devia enaltece-los.
“Só mais um”. Um mantra que podia simbolizar qualquer experiência interativa. A imersão absoluta, a necessidade de continuar a jogar e a incapacidade em abandonar uma sensação de recompensa e gratificação que são naturais aos videojogos. Na verdade, “só mais um”, uma frase aparentemente tão inócua, quotidiana, até banal, representa muito mais do que a típica inabilidade em pousar o comando e desligar a consola. Na verdade, “só mais um” é uma das frases que proferimos mais ao longo do dia, nem sempre em voz alta, mas certamente para nós. Num tom e volume que só nós compreendemos, olhamos para a folha em branco, para as listas infindáveis de e-mails, as caixas por arrumar no armazém ou para a tarefa mais – supostamente – inofensiva e concluímos que “só mais um” não fará mal. Se aproveitarmos o tempo livre para avançarmos trabalho, esse mesmo trabalho será reduzido no dia seguinte e poderemos finalmente descansar quando o fluxo de tarefas abrandar – mas nunca abranda. Então ficamos à mercê da nossa saúde mental, que ignoramos até à rutura, e acreditamos – ou mentalizamo-nos – de que somos suficientemente fortes para aguentar o pior cenário possível. Se os outros conseguem, nós também conseguimos e “parar agora seria morrer na praia”. Quando menos esperamos, as luzes apagam-se, a cortina abre-se e nós não conseguimos repetir as falas que lemos tantas vezes horas antes. Tudo fica branco, tudo paralisa no tempo.
Para Alta, o momento de rutura surgiu após uma das suas primeiras derrotas. Depois de uma vida de luta e constante procura por um lugar onde pertencesse, a jovem guerreira mentalizou-se que treinaria até ser imparável. Para Alta, a ideia de treinar, estudar e lutar criaria um ritmo de trabalho que a tornaria invencível perante todos os outros guerreiros da arena. Durante anos, esse ritmo manteve-se e Alta criou uma imagem única, uma guerreira destemida, a melhor a nível técnico, ao ponto do público e dos seus adversários pensarem se alguma vez seria derrotada. Por mais vitórias que conquistasse, Alta não parou de treinar porque, no fundo, temia que o impossível acontecesse. Então treinou, limou a sua espada e continuou a lutar – até que foi derrotada. Uma primeira derrota não foi o suficiente para quebrar a guerreira e ela viu antes este contratempo como uma forma de ganhar caráter – dizem que se revela mais sobre uma pessoa durante a derrota do que através das suas vitórias. A primeira levou à segunda e depois à terceira, até que Alta compreendeu que algo se passava. As derrotas aconteciam devido a erros básicos, que ela, com a sua experiência em combate, deveria evitar com facilidade.
Para Alta, a solução foi óbvia: voltar a treinar. Se os erros continuavam a ocorrer com regularidade, então é necessário continuar a trabalhar para colmatar as falhas na defesa e ataque, e treinar com Master Winters, a melhor treinadora do reino, seria um novo início para Alta. Novamente motivada, Alta corre pela floresta em direção à casa da sua futura mestre, pronta para recomeçar, já que parar seria admitir derrota, mas quanto mais corria, mais as pernas de Alta deixavam de funcionar. Pior ainda, a sua espada ficou mais pesada, ao ponto de Alta não a conseguir erguer do chão. Então Alta deixou a espada para trás, a mesma que ela forjou anos antes, até que tombou por cansaço. Quando Alta abriu os olhos, ela já estava em Wanderstop, uma idílica loja de chá, localizada no centro da floresta e gerida pelo simpático e afável Boro. Foi ele que salvou Alta da floresta e a trouxe para Wanderstop, predispondo-se a ajudá-la com uma reconfortante chávena de chá. Mas Alta recusou, determinada em continuar a sua viagem, e voltou para a floresta à procura de Master Winters – mas o resultado foi idêntico. Mais uma vez, Alta despertou em Wanderstop, sem saída possível e incapaz de utilizar a sua espada – apesar de Boro não sentir o peso que ela sente. Então o afável dono de Wanderstop propõe a Alta uma parceria improvável: e se ela ajudasse na loja e relaxasse por momentos?
Ao contrário da vida asfixiante que Alta levava, e que considerava como normal, Wanderstop é o seu oposto. A pacífica loja de chá não tem horários. Na verdade, o tempo funciona sem controlo, onde os dias e noites não têm fim, e uma hora poderá significar dias no exterior. Os clientes vão e vêm sem amarras ou a necessidade de lhes vender chá. Antes pelo contrário, Wanderstop e Boro predispõem-se a servir pelo simples facto de proporcionar uma experiência única aos visitantes através dos seus vários aromas. Para Alta, isto é um pesadelo. A falta de ordem deixa-a mais stressada e leva-a a pedir constantemente por novas tarefas a Boro. A ausência de urgência nas tarefas levam Alta a crer que todas as suas ações são ineficazes ou descartáveis, já que não existe um propósito para o que faz em Wanderstop. E estar parada, sem treinar ou encontrar o caminho para a casa da Master Winters, deixam Alta ainda mais aflita. Mas a cada taça de chá, as camadas soltam-se e Alta aprende a apreciar o ritmo lento, ponderado e meditativo daquele cantinho especial na floresta. A cada novo diálogo, abre-se uma nova janela para a Alta e a sua ansiedade, cujos problemas são refletidos através dos visitantes de Wanderstop. Por cada chá confecionado, mais um passo em direção à autoanálise e à compreensão, relembrando-nos que temos de parar e ouvir-nos antes que seja tarde de mais.
Não é de estranhar que a narrativa e o desenvolvimento de personagens sejam os pontos fortes de Wanderstop, ambos destaques na obra de Davey Wreden, criador de The Stanley Parable, e de Karla Zimonja, que nos trouxe Gone Home, que agora unem esforços através da Ivy Road. Ao longo das várias fases de Wanderstop, com a loja a sofrer transformações entre momentos narrativos e a alterar o seu espaço exterior sempre que Alta necessita de seguir em frente, conhecemos um leque interessante de personagens que oferecem novas perspetivas sobre as pressões do quotidiano. Através da confeção do chá, nós conhecemos melhor estas personagens, compreendemos o que as move, mas também os seus receios. Como Gerald, um pai que não se apercebe que está a sufocar o filho, agora mentalizado que terá de correr riscos para que o filho volte a respeitá-lo; ou uma rapariga-morcego que fugiu da sua aldeia repleta de regras em busca de novas experiências, consciente que irá quebrar todas as leis que a moldaram ao longo dos anos; e também Ren, um guerreiro como Alta, que é incapaz de compreender a aflição que levou Alta a repousar em Wanderstop.
Através de um simples, mas eficaz sistema de diálogos, nós podemos determinar quem é Alta e como ela se comporta perante cada uma das personagens. Podemos definir que Alta não tem qualquer paciência, incapaz de ouvir os outros, ou então que é capaz de fazer o esforço para manter Wanderstop em funcionamento. De fala em fala, nós estamos a fazer escolhas, quer sintamos o seu impacto imediato ou não. Na verdade, Wanderstop molda-se perante as nossas ações e determina como avançará a viagem de cada personagem, não só de Alta. Sem a possibilidade de voltarmos atrás para escolhermos outro caminho, Wanderstop deixa a sensação deliciosa de termos de viver com as nossas escolhas, não para nos atormentar, antes para deixar-nos compreender como elas serão importantes para nós. A vida continua e Alta nunca termina uma fase sem aprender algo novo sobre si. As ramificações são interessantes, até quando são ilusórias, e a escrita tem força e pathos suficientes para nos aproximar de personagens que ganham voz e profundidade através da escrita.
Tudo culmina na partilha de chá, no momento em que Alta e os visitantes se sentam para apreciar o aroma criado através da máquina gigante no centro da loja. Esta é a base mecânica de Wanderstop, onde encontramos finalmente os ecos de uma estrutura mais familiar através de tarefas simples, que se dividem pela criação do chá e a manutenção da loja, mas sempre sem tempos de espera ou pressões exteriores. Por mais complexa que seja a ação em Wanderstop, o ritmo será sempre de Alta e do jogador, ao ponto de podermos determinar o tom do jogo através da nossa abordagem. Então temos uma loja para gerir como quisermos, onde podemos podar as ervas daninhas, limpar as folhas caídas ou então lavar os copos utilizados enquanto plantamos novas sementes e criamos os frutos necessários para confecionarmos os vários chás disponíveis.
O processo de confeção mantém-se num equilíbrio interessante entre a liberdade e a repetição, quase como se a pedir ao jogador e a Alta para terem paciência na sua abordagem. Desta forma, nós acompanhamos o processo desde o início, com a plantação da semente. Com três a quatro sementes diferentes, nós podemos criar plantas e depois árvores que nos ajudarão a alcançar os frutos necessários para os vários chás. Para tal, precisamos de cruzar as sementes para dar origem a algo novo. Com um sistema de grelhas, muito simples e acessível, podemos plantar as sementes em padrão. Existem várias combinações, todas elas disponíveis no guia de Alta, e resta-nos apenas descobrir que sementes temos de incluir. Quase todas as combinações resumem-se a três sementes em linha, da mesma espécie ou outra diferente, ou então num padrão triangular. Assim que completamos o padrão, nasce uma bolha no centro que temos de regar para dar vida à nova árvore. O processo não muda ao longo da campanha e o único elemento diferenciador que Wanderstop introduz à criação das árvores é a possibilidade de combinarmos cogumelos para afetarmos o tamanho, cor e número das árvores.
Com os frutos na nossa posse, passamos para a máquina principal de Wanderstop. Primeiro aquecemos a água, através de um minijogo pouco entusiasmante – mas eficaz na forma como imita os movimentos de Alta enquanto ateia as chamas da máquina –, depois fundimos os sabores ao atirarmos as folhas de chá e os frutos que darão sabor à infusão. Por fim, só temos de encher a chávena com o chá e depois entregá-lo ao visitante indicado. Um processo que se torna natural ao longo da campanha, muito pela sua acessibilidade e ações reduzidas, longe de ser um simulador ou algo semelhante, procurando antes criar uma maior ligação entre o jogador e o ato de criar algo novo. Nesse sentido, Wanderstop alcança o seu objetivo, especialmente quando acertamos no sabor correto – todos os visitantes fazem pedidos específicos, alguns deles menos diretos do que outros, obrigando-nos a ler atentamente as descrições das plantas para encontrarmos a combinação certa –, mas a repetição é palpável e não demoramos a sentir que o jogo é demasiado centrado naquilo que quer fazer: ao ponto de afastar aqueles que não estão dispostos a abandonar certas convenções.
Apesar da minha ligação à história e às personagens, onde posso elogiar o excelente trabalho da Ivy Road na forma como desenvolveu os temas de Wanderstop, não consegui afastar a sensação de rotina que se instalou na jogabilidade. O conceito de Wanderstop procura dar aos jogadores tempo suficiente para escolherem o que querem fazer, quando querem fazer, mas as tarefas continuam a representar uma enorme percentagem da experiência do jogo. Isto significa que a forma como jogamos, de tarefa em tarefa, não cria propriamente a aura descontraída que a Ivy Road almejava, já que, a nível mecânico, Wanderstop depende demasiado de elementos sistémicos que encontramos noutros jogos. Por maior que seja a intenção, o formato continua a ser reconhecível, o que criou, em mim, a necessidade de saltitar entre tarefas que precisava de riscar no manual de Alta antes de continuar em frente. A exploração tornou-se nula, a manutenção ficou progressivamente menos entusiasmante – fora a descoberta de brindes e outros itens variados, não somos recompensados substancialmente pelo processo – e a sensação de descanso nunca foi honesta. Na verdade, a pressão continuou presente e se essa foi a intenção da Ivy Road, então a falta de um crescendo mais satisfatório condicionou a sua leitura.
Esta reação à jogabilidade e estrutura de Wanderstop irá depender muito da vossa abordagem às tarefas e ao vosso relacionamento com as personagens. Desta forma, não censuro quem não conseguiu, de todo, criar empatia com Alta, já que a jogabilidade nunca foi além do processo de criar chá – ao ponto de termos poucas alternativas para conectar-nos com Alta através das mecânicas –, mas, por outro lado, compreendo totalmente quem consiga suplantar estes problemas mecânicos porque a história consegue manter-se forte até ao fim. Wanderstop falha, para mim, o equilíbrio delicioso entre sentir a pressão a desaparecer através da jogabilidade com o desenvolvimento narrativo de Alta, como se faltasse uma peça na engrenagem, onde as peças estão todas presentes, mas o funcionamento não é perpétuo ou natural. Um cozy game que talvez esteja a recusar a sua experiência em prol da mensagem, mas que acaba por não alcançar um meio-termo interessante.
Apesar de ter retirado pouco da jogabilidade de Wanderstop, as memórias que ficaram foram positivas. Talvez a abordagem narrativa seja demasiado óbvia em alguns momentos, faltando um certo rigor nas sequências narradas, mas a forma como Alta recusa admitir que precisa de ajuda e continua a insistir que não pode parar foi o suficiente para criar em mim uma enorme empatia. A minha história é certamente idêntica a tantas outras que vocês já ouviram, e que até viveram, mas em 2020, no pico da pandemia, quando ainda fazia parte do GLITCH Effect, fui até ao ponto de ebulição. Decidi que tinha de aproveitar o tempo livre para escrever e criar mais conteúdos para o site, fossem artigos de opinião, análises, previews, tops ou até podcasts. Ignorei todos os sinais que o meu corpo e cérebro desesperadamente tentavam comunicar. Na minha mente, eu só pensava que “os outros conseguem, eu também”. Até que me vi perante a folha em branco e nada saiu. Depois de meses a escrever sem parar, não conseguia formular uma única frase, isto já em 2021. Na verdade, nunca parei por completo, mas naquele momento, abrandei o passo e salvei-me. Ainda hoje, sinto os efeitos daquele cansaço que caiu sobre mim, até enquanto escrevo este texto, há sempre uma sombra por cima de mim. A diferença é que agora cuido melhor de mim, sei dizer que não, não há correria por números ou fama que nunca chegou. Agora há mais paz. Esta foi a lição que Alta aprendeu. No fundo, como Alta, somos todos os humanos. Somos todos como a Alta e tal como ela, todos conseguimos superar este sufoco – só temos de nos ouvir mais.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela popoagenda.