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A narrativa suplanta os problemas mecânicos desta história sobre o legado, a cultura e o respeito pela culinária de uma família de imigrantes.

Na língua tâmil, Venba significa poesia. Um tipo de poesia clássica, na verdade, natural à cultura do sul da Índia, representada por dois a onze versos em prosódia métrica. Venba é, pela minha leitura, uma poesia cantada, fonética, onde o som das suas palavras é tão ou mais importante do que a gramática que a move. A canção, a voz, o diálogo e a sensibilidade. Tal como a poesia, Venba, que partilha do mesmo nome, é uma história sobre comunicação, mas não só através das palavras e da sua musicalidade, mas também pela cultura culinária de uma geração que se viu obrigada a abandonar o berço em busca de melhores oportunidades. É um olhar pessoal, melancólico e reconfortante sobre uma realidade que muitos desconhecem, que tanto acerta na sua mensagem, como poderá ficar mecanicamente aquém do esperado para uma história tão emocionalmente carregada como esta.

Venba e Paavalan chegaram recentemente ao Canadá, oriundos da Índia. Para trás ficaram duas famílias, mas também carreiras; ela uma professora, ele um escritor. Quis a vida que ambos ambicionassem um futuro melhor, mas também um espaço onde a sua relação pudesse florescer sem as pressões familiares. Mas a mudança não foi fácil, nunca o é. Venba não consegue elevar-se enquanto professora, apesar da sua experiência, e Paavalan não domina a língua inglesa, muito menos é capaz de utilizá-la para escrever a poesia que escrevia no seu país natal. Encontramos o casal numa encruzilhada, em vésperas de decidirem se devem desistir deste sonho e regressar a casa, quando, num dia como tantos outros, Venba acorda indisposta e a notícia da gravidez muda a vida dos dois para sempre. Vão ser pais e querem que o seu filho tenha as oportunidades que eles nunca tiveram.

Ao longo de décadas, de 1988 a 2017, acompanhamos a família ao longo de crises e mudanças inesperadas. Os saltos temporais são eficazes e suficientemente espaçados para sentirmos as alterações físicas e emocionais da família de três, com Venba cada vez mais mergulhada em saudades, Paavalan dividido entre querer um futuro melhor e proteger os seus – ao ponto de esconder à família que é vítima de preconceito, certamente para não os assustar – e Kavin, que rejeita a cultura dos pais e procura integrar-se na sociedade canadiana. Estes conflitos são retratados com uma pitada de realidade, com alguns diálogos que só podem ter nascido da experiência de quem os viveu, como Kavin não se importar que lhe chamem “Kevin”, apenas para se sentir próximo aos restantes miúdos da sua idade – ou a forma como este se esquece da língua tâmil por mais esforços que a sua mãe faça para o integrar na cultura. É uma história motivada pela perspetiva de quem se viu dividido entre o passado e o presente, entre aquilo que é e aquilo que os outros consideram que deveria ser, descobrindo finalmente as suas raízes e respeitando-as antes do desfecho desta narrativa pessoal.

A interação é, no entanto, mais limitada. Venba é um jogo narrativo e a sua vontade em contar a história de Venba e Paavalan, através de uma arte estilizada e muito harmoniosa – onde se destaca o design das personagens e os ingredientes culinários –, suplanta qualquer vontade em tornar a experiência mais imersiva e mecânica. Em Venba, estamos a acompanhar a vida destas personagens, a fazer pequeninas decisões narrativa ao selecionarmos certas linhas de diálogo, mas a nossa agência não é o foco do jogo. Não podemos descrever Venba como um “visual novel”, não acredito que seja o termo correto – e a Visai Games identifica-o como um jogo narrativo de culinária –, mas é preciso moderar expetativas, se elas existem. É uma campanha curta, mas curada, onde não encontramos elementos que desvirtuem a mensagem que o jogo procura transmitir. Os saltos temporais não mudam a estrutura e muito menos a jogabilidade, mas reforçam a passagem do tempo pelo foco na narrativa e na evolução no design das personagens. Sentimos, ainda assim, que a história é um pouco nossa através da escolha de diálogos, mas a ação centra-se no ato de contar esta vida a três.

Mas Venba não é apenas a história de uma família de imigrantes, mas também o respeito pelas nossas origens e cultura, longe do nosso berço. Se a poesia é a forma como Paavalan mata as saudades e liberta as suas frustrações, já Venba, ironicamente, não se expressa pelas palavras, mas pela culinária. Através dos sete capítulos, Venba, na companhia do marido e do filho, confeciona várias receitas tradicionais, como idlis, dosas, biriyanis, entre outras. A sua confeção é um reflexo de Venba, longe da sua família e cultura, e funciona como um escape. É assim que Venba comunica com a sua mãe à distância, através das páginas de um caderno envelhecido, cujas páginas estão a descolar-se e o texto cada vez mais difícil de ler. Mas a memória permanece.

A culinária é a cola que une a história desta família, uma forma de comunicação tão forte que suplanta gerações e culturas. De Venba a Kavin há um fosso cultural, mas no centro da sua relação encontram-se as memórias das tardes na cozinha e o jogo utiliza estes elementos emocionais a seu proveito. É difícil não sentir que podia ter ido mais longe e adicionado mais elementos mecânicos, mas a jogabilidade serve o seu propósito narrativo sem condicionar as personagens a clichés previsíveis.

Cada capítulo é representado por uma receita que temos de confecionar. Com os ingredientes à nossa disposição, temos de descobrir qual a ordem em que temos de os cozinhar para dar vida às receitas de Venba. Para tal, basta agarrar e largar os ingredientes nas panelas e formas que temos à nossa disposição, com o jogo a exigir ocasionalmente outro tipo de ações, como expandir a massa e bater o arroz triturado até darmos forma à farinha que necessitamos para cozinhar – ações que são representadas pela movimentação do analógico, sempre simples e acessíveis. Mas a jogabilidade mantém-se assim, pick, drag and drop, sem grandes variações à fórmula.

O desafio não se encontra na preparação dos ingredientes, no corte da carne, na trituração das especiarias ou na fritura dos vegetais, mas na sua ordem. Através do caderno de Venba, temos acesso às receitas, quase sempre incompletas, funcionando como ponto de partida para a sessão de culinária. O jogo disponibiliza todos os ingredientes que precisamos, dá-nos algumas ajudas e deixa-nos à nossa mercê. O caril deve ser introduzido primeiro do que a carne? E será que devemos juntar primeiro a água ou só no final? E para confecionar puttu, colocamos mais camadas de arroz ou de coco? Não são propriamente puzzles, mas as receitas de Venba bebem da sua fonte.

Existem, infelizmente, momentos menos intuitivos. Não descarto a possibilidade de ser um problema meu e não do videojogo, já que nunca preparei estas receitas fora do mundo virtual, mas algumas receitas não têm uma ordem tão lógica como deveriam ser. Por outro lado, temos também o oposto, onde a dificuldade é completamente retirada da jogabilidade e a receita é confecionada quase em modo automático. Apesar da minha dificuldade em compreender a ordem dos ingredientes em dois ou três momentos, Venba precisava de uma maior envolvência no ato de cozinhar para cimentar ainda mais a sua temática através das mecânicas que apresenta.

Venba é um poema, cujos versos iremos interpretar e sentir de diferentes formas. É uma história sincera sobre a vida de uma família, com os seus bons e maus momentos, mas existe harmonia na sua tragédia, humanizada pela união entre Venba e Paavalan – os capítulos terminam (quase) sempre com o casal deitado, ao final do dia, a falar sobre os seus problemas e dúvidas – e pelo conflito de Kavin como filho de imigrantes. Alguns momentos ficam connosco, muito pela sua honestidade e frontalidade, como Venba e Kavin à procura de Paavalan no final do dia; ou Kavin a tentar seguir as receitas da avó, depois de passar anos sem ler em tâmil. Pequenos momentos que simbolizam vidas inteiras. Venba nem sempre é acessível devido à sua resiliência em ser um jogo narrativo, mas para aqueles que se deixarem levar pelas suas personagens, é uma viagem curta, mas satisfatória. Um poema que fica connosco.

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Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela popagenda PR.

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