Tingus Goose Review: O milagre da vida

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Gansos.

A vida é um mistério. O ato de criar vida, a junção das células, o choque entre botão embrionário e o trofoblasto, a conceção de ossos, músculos, veias, órgãos é belo. Um pequeno ovo, minúsculo, aparentemente igual a tantos outros, é o epicentro da vida. Células ganham traços únicos, dentes, impressões digitais e uma personalidade. Um ovo transforma-se num ser vivo. O início é a fusão de dois corpos, duas entidades, que dão origem a algo novo. A mim, a vocês, a nós. O início é idêntico para todos. O processo é igual, imutável, até mesmo com os avanços da ciência. Um ovo é fecundado, a vida acontece. Mas levanta-se a questão. Uma questão que a Sweaty Chair e o artista Master Tingus decidiram materializar na nossa realidade. E se o mistério da vida fosse, na verdade, um ganso?

Em Tingus Goose, tudo são gansos. O mistério da vida são gansos. As pessoas são gansos. Órgãos são transformados em gansos, tornam-se sencientes, ganham asas e voam até encontrarem o local perfeito para criarem um ninho. O ninho é uma pessoa, onde nascem novos gansos. O processo de fertilização é representado como um espetáculo de horror absurdista, onde corpos são transformados em objetos e animais, fundindo-se para dar origem a uma nova vida. A vida é como uma patologia, uma infeção viral que se apodera dos corpos à sua volta, mutando-os até ficarem irreconhecíveis. Uma pessoa é literalmente feita de gansos e explode.

A realidade seria impossível sem gansos. Esta é a mensagem da Sweaty Chair e de Master Tingus. Uma mensagem clara, sem metáforas ou artifícios desnecessários, que se constrói através de cinemáticas que processam e reinterpretam o mistério da vida, o processo de fecundação e o nascimento como algo grotesco. Entre cinemáticas, entre o horror corporal e desconfortável, tão cómico como nojento, encontra-se um Idle Game. A fecundação requer tempo, as células precisam multiplicar-se para dar origem a uma nova vida e Tingus Goose necessita também de tempo para que a sua jogabilidade cresça e evolua. Tudo é tempo, dinheiro, gansos, vida.

Tingus Goose abraça o surrealismo através da sua imagética e das metáforas que ousa utilizar para representar a gestação humana e animal, muito graças ao trabalho de Master Tingus. Esta escolha é figurada através do objetivo principal do jogo, o acasalamento de dois gansos e a angariação de dinheiro. Os dois gansos estão separados pelo espaço e tempo, e para se reencontrarem, nós precisamos de dinheiro. Este é o objetivo principal. Quanto mais dinheiro utilizarmos, mais o ganso cresce, regado como uma planta que procura a vida, cujo pescoço se estende pelo céu até alcançar o seu companheiro, que se mantém suspenso no espaço como uma entidade divina. O jogo não procura ser subtil. A imagética é bastante frontal, peculiar, abstrata e bizarra, ao ponto de se tornar grosseira – e funciona.

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Tingus Goose (Sweaty Chair)

Enquanto o pescoço do ganso cresce, como uma flor a brotar, a vida acontece. O ganso vomita fetos, que caem ao longo do pescoço, à procura de repouso. Os fetos representam dinheiro, talvez numa queda livre até à morte – se a simbologia fizer algum sentido -, e é durante a sua queda que começa a nossa corrida por rentabilidade. Se prolongarmos a queda, se garantirmos que os fetos não chegam rapidamente ao solo, geramos mais dinheiro. Com mais dinheiro, podemos continuar a regar o ganso para que cresça até ao seu companheiro. Isto é o jogo. Para rentabilizarmos os fetos e suavizarmos a sua queda, numa metáfora ao capitalismo desenfreado que nos comanda – ou talvez um simples e mero acaso, quem sabe –, temos de posicionar apêndices, ou bolbos, ao longo do pescoço do ganso para que os fetos possam baloiçar até chegarem ao solo. Quanto mais baloiçarem, mais dinheiro fazemos. O nosso ganso cresce, os fetos desaparecem, a rentabilidade aumenta. Mas para onde vão os fetos? Para o interior de um mealheiro em forma de porco, que poderá não ser um mealheiro, mas um humano transformado em porco que, por sua vez, foi transformado em recipiente de bebés mutantes. A alegoria para o milagre da vida está aqui.

Para garantirmos o reencontro dos dois gansos, nós precisamos de uma máquina funcional, rentável e implacável. Uma máquina-ganso, onde crianças são o combustível para o futuro. Para que a máquina funcione, nós temos de saber utilizar os apêndices, compreender como funcionam e onde posicioná-los. Cada apêndice tem uma funcionalidade específica, seja um pescoço adicional de ganso, que saltita as crianças; uma linha de pessoas sentadas, como se estivessem na sala de espera de um hospital; olhos que podem lacrimejar; portais que movimentam as crianças entre vários pontos do pescoço; rampas e escada rolantes; gansos que devoram e depois defecam as crianças; entre outros. O que importa é saber como combinar estes apêndices, onde posicioná-los e depois manipular o seu comprimento, direção e tamanho para que possam baloiçar eficazmente as crianças que caem na sua direção.

É fácil influenciar positiva ou negativamente a produtividade da nossa máquina-ganso. Basta mudarmos a posição de um apêndice para alterarmos o ritmo, direção e rentabilidade dos bebés, se não conseguirmos prever os efeitos que um único ajuste tem na produtividade do ganso. Temos de equacionar que o tempo é dinheiro, mas também que o baloiçar aumenta a rentabilidade de cada criança. Quanto mais baloiçarem, maior será o multiplicador por criança quando chegar ao homem-mealheiro. Então é preciso posicionar os apêndices para que possam auxiliar-se ao longo do pescoço. Uma criança que baloiça, por exemplo, entre uma das escadas rolantes, o focinho de um porco ou o ganso que devorador acabará por ser mais rentável a longo prazo. A máquina-ganso tem de funcionar constantemente e ser o mais eficiente possível porque sempre que é regada, o valor da água aumenta. Sem dinheiro, a máquina-ganso não cresce e o nível nunca terminará.

Este seria um desafio interessante e mais predominante se o tempo não estivesse do nosso lado. Sem um relógio ou metas por cumprir, Tingus Goose é um Idle Game e essa faceta do seu design está presente através da forma como gerirmos o nosso tempo. Podemos jogar com uma meta pessoal ao tentarmos terminar os níveis o mais depressa possível, mas podemos deixar o jogo seguir o seu curso. É possível montar os apêndices, garantir um certo fluxo de dinheiro e deixar o jogo acumular dinheiro enquanto terminamos outras tarefas. Enquanto escrevo este texto e tento fazer sentido do mundo, imagética e temas de Tingus Goose, o jogo continua a sua marcha de vida, morte e dinheiro. Enquanto escrevo este parágrafo, dois milhões de notas foram gerados e isto com uma máquina-ganso pouco eficiente. O valor não é alto, ainda mais para uma fase final, onde precisamos de centenas de milhares de notas para regarmos o ganso, mas é demonstrativo do impacto do tempo neste género de videojogos. Um género que se quer mais relaxante, sem grandes imposições e que aqui funciona perfeitamente – ainda que dependa da mentalidade e disposição dos jogadores para que estes sistemas consigam viver sem a pressão e necessidade de metas por cumprir.

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Tingus Goose (Sweaty Chair)

O milagre da vida é constantemente desafiado em Tingus Goose. Outra faceta da existência é o envelhecimento. Se existir é um milagre, viver e envelhecer é a afirmação desse milagre. Tingus Goose representa o envelhecimento como mais uma mecânica, onde fetos podem fundir-se ao longo dos níveis para darem lugar a crianças mais desenvolvidas. Se três ou mais crianças entrarem em contacto enquanto caem, o processo de fusão inicia-se e as três passam a ser uma. Os fetos transformam-se em crianças, depois em jovens, adolescentes e, por fim, adultos funcionais. O ciclo de vida fica completo enquanto crianças caem ao longo do enorme pescoço do ganso, apenas para serem transformadas em notas que alimentam a máquina que lhes deu vida. Quanto mais crescidos, mais valiosos são. O humano cuja carne é feita de dinheiro. Um dinheiro sagrado, já dizia Michael Gira.

Apesar das mecânicas e sistemas acessíveis, Tingus Goose oferece alguma progressão ao longo da campanha. Os níveis ficam mais complexos, com plataformas, entradas e saídas que temos de equacionar enquanto construímos a máquina-ganso e posicionamos os seus apêndices. A eficiência é sempre a grande meta de Tingus Goose. Se encontramos um obstáculo sobre a forma de um buraco, que obriga os bebés a andarem até que encontrem um caminho para os níveis inferiores, uma caminhada que é pouco lucrativa, então temos de descobrir os apêndices que tornem a mobilidade mais rápida e imediata. Podemos, por exemplo, adicionar o apêndice em forma de portal, onde uma entrada e uma saída movem instantaneamente os bebés. Também podemos utilizar a escada rolante para aumentar o ritmo dos bebés e garantir que chegam mais depressa ao seu destino. Por fim, é possível construir uma escadaria com vários apêndices que saltitam os bebés entre pontos e direções diferentes, como olhos, filas de pessoas ou os famigerados gansos que devoram e defecam bebés. Os obstáculos são sempre inicialmente frustrantes devido ao tempo que nos roubam, mas não só o jogo apresenta as ferramentas certas para darmos aso à nossa imaginação, como não podemos esquecer que o tempo nunca é o nosso inimigo em Tingus Goose. A imaginação é o verdadeiro inimigo.

Também existem acontecimentos aleatórios que procuram condicionar o funcionamento da máquina-ganso. A qualquer momento podemos ser atacados por um bebé-meteorito que incapacita um dos apêndices que temos posicionados em campo. Não sabemos qual será o apêndice a ser influenciado por este acontecimento aleatório, mas sabemos que é inevitável que fique incapacitado, ao ponto de ser difícil livrar-nos dele para que possamos colocar outro apêndice mais rentável no seu lugar. Um pequeno desafio que pode afetar rapidamente a rentabilidade da máquina que construímos ao longo de vários minutos ou até horas, já que retira parte do lucro que dávamos já como garantido. Em Tingus Goose, basta um apêndice ficar incapacitado para que o fluxo de dinheiro seja condicionado até que encontremos uma solução.

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Tingus Goose (Sweaty Chair)

Menos aleatório são as aparições do médico, que servem como ponto de venda para novos apêndices e habilidades temporárias. Com gemas, que colecionamos ao longo dos níveis, podemos adquirir estas ajudas para melhorarmos o baloiçar das crianças, a rentabilidade das mesmas, a sua resistência ao toque (que nos dá dinheiro adicional) ou então termos acesso a apêndices mais raros e com habilidades únicas. Por exemplo, o famigerado ganso que devora crianças tem uma versão incomum que lhe dá a capacidade de defecar duas ou três crianças por cada criança devorada. É o milagre da vida representado através de sistemas interativos!

Também existe uma árvore de habilidades permanentes, com melhorias incrementais, muito semelhante a outros Idle Games que já jogaram. É através desta árvore de habilidades que temos acesso a algumas das funcionalidades mais importantes do jogo, como as visitas de médico ou o mordomo que ocasionalmente entrega dinheiro de bandeja, mas também podemos aumentar permanentemente a resistência das crianças, a rentabilidade mesmo quando saímos do jogo – nunca esquecer que estamos a falar de um Idle Game – ou a possibilidade de nascer um apêndice aleatoriamente e outras opções por descobrir.

A Sweaty Chair adotou o estilo peculiar, cómico e surreal de Master Tingus para dar vida a este grotesco ciclo de vida. Talvez esteja a ler demasiado e a subentender temas e metáforas que afinal procuram ser apenas absurdas e pouco mais, mas há uma mensagem, uma ideia concreta e uma visão artística que é percetível através das cinemáticas que interligam os vários níveis de Tingus Goose. O ganso que procura um companheiro, a fecundação, o nascimento de uma nova pessoa que é, inadvertidamente, transformada em ganso. Uma nova existência que continuará o milagre da vida enquanto tantas outras células são absorvidas, assimiladas e transformadas em dinheiro. A imaginação é forte e desconcertante e existe profundidade mecânica na forma como Tingus Goose gere o crescimento da máquina-ganso e concilia os seus vários apêndices. É um jogo para se jogar com calma, onde o tempo passa lentamente, sem pressões ou metas por cumprir. Podia ser mais, fazer e querer mais com a fórmula Idle, mas sabe o que é: um jogo resiliente e com mau humor, tal como um ganso. Tudo é um ganso. A vida é um ganso.

Um ganso.

Cópia para análise (versão PC) cedida pela JF Games

João Canelo
João Canelo
Crítico de videojogos, Guionista, Professor e o responsável pelo melhor mortal nas aulas de Educação Física em 2002. Um aficionado por jogos peculiares.
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