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A Scavengers Studio está de parabéns naquele que promete ser um dos títulos mais emblemáticos do ano.

Perdi a minha avó em 2010. De 1987 a 2010, podemos contar os 23 anos em que pude conviver com ela. Cresci com a minha avó, aprendi com a minha avó, fiz-me como sou com o apoio da minha avó – defeitos incluídos – e segui em frente com a vida, a carreira, o amor e a família porque a minha avó assim me permitiu que o fizesse. Sempre senti que a deixara para trás. Saltar do berço é uma aceitação do futuro, mas também uma interrupção do passado. O ensino secundário chegou, transformou-se no superior e depois numa espécie de carreira que desenvolvo desde então. A minha avó sabia que a minha mente estava no futuro e ela no passado. Um dia tentei filmá-la, para guardar uma memória comigo, que pudesse recordar, mas ela recusou. Disse: “se me queres contigo, recorda-me e não dependas de fotografias”. E assim o fiz. Hoje estou arrependido. Os álbuns de fotografias estão mais vazios, as folhas têm lacunas de anos, tantos momentos que ninguém os recordará porque uma máquina de metal e químicos não os imortalizou: e a memória é tão pouco de fiar. A minha avó quis levar tantas histórias consigo e agora sinto apenas o calor da saudade. É difícil pensar que, na melhor das hipóteses, vou ver mais tempo sem a minha avó do que aqueles em que vivi ao seu lado. É duro. É a vida.

No início da sua demanda, a protagonista de Season: A Letter to the Future vê-se perante a mesma situação. O mundo vai mudar, a atual estação vai terminar e levar consigo a realidade que conseguir. A sua mãe, familiares, amigos e locais de infância serão esquecidos por todos. No centro desta realidade, existe um museu onde o tempo não entra, onde nada é esquecido. Para a protagonista, a ideia de perder tudo o que conhece é errada, cruel e injusta. Ao contrário de mim, ela vai contra a vontade da sua mãe e decide partir pelo mundo enquanto regista o que está à sua volta. Desenhos, fotografias, relatos, gravações. Por onde passar, irá imortalizar a realidade que está prestes a desaparecer. Para tal, é preciso um sacrifício. Recordar envolve paradoxalmente esquecer algo, perder algo. Para ver o mundo, tem de abandonar o seu e nunca mais voltar atrás. Para registar os relatos que todos irão esquecer, ela própria será esquecida, a única pessoa cuja memória manter-se-á intacta. Adeus, mãe. Adeus, Caro. Adeus, eu.

O problema filosófico de Season: A Letter to the Future constrói-se em torno desta necessidade de registar o passado num mundo que é obrigado a esquecê-lo constantemente. Pelos olhos da protagonista, vemos uma realidade que não é a mesma no final da campanha, não porque existe uma transformação física e permanente, mas porque os seus habitantes a esqueceram, agora sem memória do que viveram antes ou de quem eram. A estação muda. Esta presença constante da mudança e de fim dá a Season uma interessante sensação de urgência, mas também de carinho. Apesar de não conhecermos o mundo da nossa protagonista, apesar das suas semelhanças com o nosso, sentimos que o devemos proteger e registar o melhor que conseguimos. Queremos imortalizá-lo com dignidade. O que é interessante, pois Season, fora alguns momentos narrativos, não nos exige atenção, cuidado ou dedicação. Somos nós, à medida que nos integramos no seu mundo, que criamos esta relação de pertença como se a nossa própria cidade, aldeia, comunidade estivessem prestes a desaparecer.

O registo é feito através da câmara, do gravador de som e do caderno da nossa protagonista. À medida que viajamos, temos a oportunidade de parar quando e onde quisermos para simplesmente observar o mundo à nossa volta. Podemos encontrar uma zona de distribuição abandonada, um navio encalhado, uma casa no meio de um prado, um cemitério antigo, um campo de flores. Quando encontramos algo que sintamos merecer o registo, basta pararmos a bicicleta e retirar a máquina de fotografia ou o gravador. Com os registos realizados, temos, de seguida, a oportunidade de decorar o nosso álbum de recordações da forma que quisermos. Fotografias, sons, citações ou até objetos que recolhamos à medida que exploramos as zonas deste mundo. Cada caderno é individual, único ao jogador, e é também um portal para o futuro que queremos construir através da nossa protagonista.

A sensação de liberdade é sentida pelas escolhas que podemos realizar dentro e fora da jogabilidade, seja no registo da fauna e flora do mundo, ou pela forma como interagimos com as personagens que encontramos pelo caminho, e tomamos decisões que influenciam a sua própria caminhada. No entanto, a estrutura de Season: A Letter to the Future é tudo menos expansiva e muito mais linear do que qualquer trailer antevia. O que prometia ser uma viagem por várias fases de um mundo à beira do fim transformou-se numa aventura muito mais introspetiva e pessoal. Presumo que a receção a Season: A Letter to the Future tenha sido prejudicada por esta escala mais reduzida, mas a sua narrativa fala mais alto. Começamos em Caro, a aldeia da nossa protagonista, e partimos em busca de um novo mundo, com a nossa viagem a culminar em Tieng Valley. Este vale é o centro emocional de Season. Um vale que irá desaparecer por completo com o rebentamento de uma barragem. Os seus moradores obrigados a mudarem-se para uma nova cidade, longe do seu passado e raízes, para abraçar a próxima estação do zero. Ao chegarmos a Tieng Valley, temos a oportunidade de registar os últimos momentos de uma região anteriormente rica em vida, cultura e amor. A força deste momento não seria possível se não ficássemos tanto tempo restritos à sua dinâmica e às pessoas que a sobrevivem.

O segundo ato de Season: A Letter to the Valley fecha-se nesta localização, mas a liberdade de explorarmos mantém-se intacta. Apesar de defender que a campanha é linear, a verdade é que Tieng Valley pode ser descoberto pela ordem que quisermos. Com um mapa na mão, temos acesso a várias zonas de interesse – como uma escavação, templos, campos de cultivo, até o armazém de uma antiga artista – e aos seus moradores. O facto de podermos explorar livremente este vale transmite-nos uma sensação de paz e pertença. Podemos escolher qual o melhor caminho a seguir, se devemos ou não parar para gravar o som de pássaros e se podemos deixar a nossa imaginação viajar enquanto observamos uma estrutura de metal abandonada ao longe. É um contraste eficaz entre Caro e a caminhada da protagonista até ao vale condenado, abandonando as zonas vazias e frias pelo calor de uma comunidade cujas histórias ela recordará para sempre – tal como nós.

Tieng Valley constrói-se como um cenário circular, onde todos os seus caminhos estão interligados por estradas principais e secundárias. Não existem exigências maiores ou contadores de tempo para vermos tudo. O ritmo é nosso. Penso que esta é a melhor solução para Season: A Letter to the Future e para a sua mensagem. É a hipótese de nos banharmos no passado sempre com os olhos no futuro e conseguirmos fazer parte de algo que irá desaparecer em breve. Se o jogo fosse composto por listas enormes de objetivos e tarefas secundárias, a sua ambiência desapareceria. A campanha é curta, talvez até muito curta para os sentimentos que é capaz de transmitir, mas é tão certa e segura; como a memória, deixa saudade. Não se torna cansativo e é uma delícia descobrirmos Tieng Valley pelos nossos olhos, encontrar algo no mapa ou à distância e pedalarmos até lá para conhecermos mais sobre esta realidade tão familiar. Como funcionam as flores de memória, que cantam as recordações das pessoas? E os cristais que nos colocam presos em sonhos? Ou o que é o Day Zero para este mundo? Tudo tem uma resposta, se quisermos.

Apesar da sua eficácia, também podemos considerar Tieng Valley como uma solução rápida para um problema maior. A campanha dá-lhe o devido valor, e a sua história complementa muito bem a temática do jogo, mas é possível sentir que havia muito mais para mostrar que não foi possível. A história da nossa protagonista pedia uma caminhada mais profunda. É difícil não sentir que a Scavengers Studio não pôde mostrar o que queria e que o foco nesta única zona foi apenas uma necessidade e não uma escolha, quando existe tanto cuidado em preparar a viagem da nossa protagonista e o peso da sua decisão em nunca voltar atrás. É também em Tieng Valley que sentimos mais os seus problemas técnicos. O slowdown, os bugs visuais, a rigidez dos controlos – nomeadamente na bicicleta, ainda que aprecie os sensores hápticos no ato de pedalar – e até a repetição das ações e mecânicas que nunca evoluem. É aqui que sentimos as limitações da jogabilidade e o seu “scope” torna-se evidente.

Mas de que outra forma seria possível dar atenção e valor aos seus momentos narrativos? Apesar de ver os alicerces para um jogo mais ambicioso, Season: A Letter to the Future nunca me pareceu completamente incompleto ou vazio. Antes pelo contrário. Se Tieng Valley fosse apenas uma paragem numa viagem muito maior, o que teria sentido pela história de um filho, que perdeu o seu pai? E que ajudamos a recolher lembranças para se despedir da sua memória antes de partir para o seu novo futuro? Ou de um monge que pondera ser levado pelas águas da barragem para ficar ao lado dos seus? Eu respeito o foco da Scavengers Studios, seja ou não motivado por limitações de produção, tal como o seu final, que poderá parecer abrupto para muitos.

season a letter to the future echo boomer 2

Mais do que uma análise, este texto é uma recomendação pessoal. É por esse motivo que vos contei parte da minha história e expressei a mágoa que sinto pela forma como a vida nos obriga a avançar sem olharmos para trás. Season: A Letter to the Future é um jogo com problemas, longe de ser perfeito, mas é também uma experiência que me manteve emocionado, com o coração cheio de tantos sentimentos que nem sempre consegui compreender o que estava a passar pela minha cabeça. Não se trata de uma experiência sensorial inovadora ou algo nunca antes visto. É, acima de tudo, um videojogo que olha para nós, não para quem somos, mas para o que já fomos e para quem seremos no futuro, e diz-nos: respeita o teu passado, abraça-o. Todos nós temos mágoas, arrependimentos e incertezas. Muito ficou para trás, memórias foram esquecidas. A minha avó colocou sobre mim o peso de gerações, de histórias perdidas e que nunca conhecerei, mas continuo em frente. Pronto para passar as minhas memórias para o futuro e para quem as quiser ler, ver e ouvir. Assim é Season: Letter to the Future: o conforto da recordação, a tristeza da saudade.

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Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Scavengers Studio.

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