NOS Primavera Sound 2018 | Dia 3: por fim, a chuva (também de emoções) para enaltecer o rock

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Andámos dois dias a tentar passar entre os pingos da chuva no recinto do NOS Primavera Sound – vá, mais no primeiro, já que ao segundo até chegou a surgir a esperança em como o pior já teria ficado para trás –, para ao terceiro dia se abater sobre nós um verdadeiro temporal sem dó nem piedade. Ora mais forte ora menos picada, a precipitação mostrou-se ininterrupta e, por muito que tentássemos adiar o inevitável, até na expetativa que abrandasse um pouco que fosse, lá tivemos invariavelmente de nos fazer ao festival de céu aberto, onde praticamente só havia escapatória na zona de restauração.

Todos tivemos de nos render aos guarda-chuvas, gabardines, capas de plástico ou pelo menos um qualquer capuz para, de alguma maneira, evitar o que, mesmo assim, seria a realidade para muitos ao fim deste dia: estar completamente encharcado.

Nota positiva para, como viemos a saber, o facto de a organização ter precisamente distribuído alguns desses exímios meios de combate à ensopa, numa tentativa de salvar o máximo possível da experiência deste dia. Com o firmamento macambúzio e as indumentárias, em geral, a não puxarem muito à cor, a alegria só poderia vir dos concertos. Felizmente, foi exatamente isso que aconteceu. Pasmem-se até, tamanho é o poder da música, que em muitos casos o constante dilúvio até haveria de os engrandecer.

Por todo este drama, a entrada fez-se já relativamente tardia, com os Public Service Broadcasting a surgirem no Palco SEAT. Os londrinos, liderados por J. Willgoose, Esq. – personagem que parece um professor de História de há algumas décadas atrás –, não eram estreantes em Portugal, embora tenham editado desde a sua última visita mais dois álbuns a seguir Inform-Educate-Entertain, de 2013, e The Race For Space, de 2015. Do primeiro ouviu-se “Signal 30”, entalada entre “Progress”, do mais recente Every Valley (2017); do segundo escutou-se “Go!”, numa miscelânea de sons que nos transportaram algures entre um post-rock cinemático, com a ajuda das imagens que viamos por trás dos músicos, uma estrutura rítmica bem krautrock e um apoio de electrónica meio synth-pop que culminava na utilização de samples de velhos anúncios de radiodifusão, ao qual a banda foi até buscar o seu nome. Estava a ser um belo concerto mas a sobreposição de horários – também culpa da nossa curiosidade e dos bons nomes sorteados pelos vários palcos – voltou a fazer das suas, o que nos levou a atravessar todo o recinto em direção ao Palco Super Bock.

Joe Goddard, membro dos Hot Chip, já se apresentava ao comando da sua mesa de mistura, acompanhado pela vocalista Valentina e o seu longo vestido amarelo. Munido do seu primeiro longa-duração a solo, Electric Lines, editado no ano passado, competiu ao autor de “Truth Is Light”, “Home” e a já mais antiga “Gabriel” a dura missão de colocar a dançar uma plateia que se via apreensiva quanto à ideia de transformar a relva molhada em lama. Verdade é que se o ambiente não parecia o mais propício, já não só pela queda de água mas também pela antecipação que se fazia crescer sobre o espetáculo do maior cabeça de cartaz deste festival prestes a acontecer no palco logo ali ao lado, a jovialidade de dançar à chuva, como garotos que adoram chapinhar nas poças, acabou por vencer e fazer jus ao celebrado refrão de “Music Is The Answer”: a música foi realmente a resposta para tudo.

Tempo para mais uma corridinha para tentar apanhar um pouco que fosse de Kelsey Lu, que isto de estar parado é para quem está debaixo da terra – ou quem se fia que em movimento se foge à molha. Abrigados por um guarda-chuva já de si partilhado, graças à caridade alheia, conseguimos observar a reta final do set da violoncelista americana, praticamente dedicado ao seu EP Church, que se exibiu ao vivo sem o seu instrumento – ao fundo viu-se uma guitarra, a que eventualmente já tinha recorrido – e primordialmente se dedicou às vozes sobre (e com) os efeitos provenientes do seu sampling pad. Toda a imagética também era digna de se vislumbrar: um volumoso fato branco que fazia lembrar os balões de santos populares e um chapéu de penas pretas, a trazer à memória a excentricidade da sueca do dia anterior, embora com um pouco mais de requinte, até também pela generosa distribuição de flores. Falando nessa nacionalidade, o trabalho vocal invocou um pouco de Lykke Li, talvez num registo relativamente diferente, partilhando até um pouco daquela aura infausta. Neste aspecto, foi um bom enquadramento para o turbilhão que se seguiria.

Foi precisamente há cinco anos a última vez que Nick Cave & The Bad Seeds pisaram solo português, justamente neste mesmo festival (mas com uma ligeira alteração no seu nome). As circunstâncias, no entanto, não podiam ser mais dispares, pautadas pela ainda contínua assimilação da tragédia que o artista australiano sofrera em 2015: a perda de um filho.

Para quem sempre lidou com o lado mais negro da vida nas suas composições, foi através do último álbum Skeleton Tree, de 2016, que conseguiu com a arte expor toda essa mágoa, desconstruí-la em palavras que ecoam essas emoções e, de certa maneira, purgar-se do maior desgosto que um pai pode algum dia vir a sentir. Desse disco foi possível ouvir, na abertura, “Jesus Alone” e “Magneto”, e, sensivelmente a meio do set, a comovente “Girl In Amber”, com o seu refrão “And if you want to bleed just bleed” acompanhado por coros quase angelicais, capazes de sensibilizar até quem não reconhece o trabalho do grupo e se deixou ficar a ver por mera hipnose.

Além do pesar, é por exemplo no equilíbrio da compassada “Do You Love Me?” com as cáusticas “From Her To Eternity” e “Loverman” que o carisma arrebatador de Nick Cave, devidamente apoiado na mestria dos seus Bad Seeds, prevalece naquela mescla de post-punk com rock alternativo que lhes é tão única.

Depois de “Red Right Hand” – há fãs de Peaky Blinders? – seguiu-se “Into My Arms” cantada ao piano, numa prestação que arrancou as vozes de todos os presentes e se tornou num dos momentos mais bonitos da noite. Ainda haveria tempo para uma adequada “The Weeping Song”, com os céus a chorarem veementemente enquanto o maestro sintonizava as nossas palmas, até ao finalizar de “Push The Sky Away”, com o contacto mais íntimo e privilegiado que poderia ter com o seu vasto público. No fim, tudo se resume a uma palavra: libertação. Se a melancolia consegue roçar a tristeza e a empatia nos leva a sentir comiseração, o que Nick Cave conseguiu nesta partilha com aquele mar de gente ascendeu a muito mais do que a sua e a nossa redenção.

Para aligeirar um pouco, pelo menos em comparação, chegou a hora de The War On Drugs no Palco SEAT – uma vez mais a sobreposição de horários, já aliada ao desgaste do clima impiedoso, dificultaria que se pudesse ir ver Nils Frahm no Palco Super Bock ou até ABRA no Palco Pitchfork.

O indie rock de Adam Granduciel, ora com toadas quase psicadélicas ora na sua raiz de recheio americana, estava de volta depois de algumas aparições nos anos anteriores em outros festivais portugueses, desta feita para uma nova aclamação muito devida ao novo A Deeper Understanding, de 2017 – tendo em conta os seus quatro discos, o concerto seria dividido apenas entre os temas deste e do seu antecessor, Lost In The Dream. O pontapé de saída deu-se com “Burning”», evidenciando logo as notáveis influências de Bruce Springsteen e Bob Dylan, umas mais musicais outras mais vocais, logo seguida por “Pain”, um dos mais recentes singles, e o seu jeito de balada auspiciosa. De “An Ocean In Between The Waves” a “Red Eyes”, por exemplo, também sobressai o gosto honesto do líder da banda pela guitarra, alcançado quiçá territórios britânicos e aproximando-o também de um Mark Knopfler e os seus Dire Straits, ora puxando-o para terrenos americanos e alcançando um Neil Young. Entre “Strangest Thing”, “Knocked Down” ou “Under The Pressure” permaneceu aquela atmosfera positiva, quase esperançosa, em que havendo ou não remedeio para a intensa chuva que se fazia sentir, o importante era sentir a música e deixarmo-nos transportar para locais só nossos.

A viagem final foi proporcionada por Mogwai no Palco NOS, para acabar com todas as poucas energias que ainda restassem. A banda escocesa, das mais influentes dentro do género post-rock e com uma existência já a ultrapassar as duas décadas, percorreu quase a totalidade da sua discografia, desde “Mogwai Fear Satan” do seu primeiro registo de 1997, Young Team, atravessando Rock Action (2001) com “2 Rights Make 1 Wrong” e The Hawk Is Howling (2008) com “I’m Jim Morrison, I’m Dead”, e, eventualmente, aproveitando para apresentar o mais recente Every Country’s Sun através de “Party In The Dark” ou “Old Poisons”.

O som expansivo e introspectivo da banda, equilibrado entre momentos de real peso carregado de distorção – chegaram a sentir-se as vibrações de três guitarras ao mesmo tempo! – com instantes mais calmos que pediam para fechar os olhos e sentir as gotas que pingavam na face, revelou-se como a escolha mais que indicada para fechar com chave de ouro o que fora uma verdadeira montanha-russa emocional – tanto de dia como de festival.

Se teríamos dispensado a chuva? Claro que sim. Se sem chuva alguns concertos se tornariam tão memoráveis? Fica a questão. Optemos assim, agora já no calor do lar, por desejar que a próxima edição seja igualmente marcante, como tantas vezes já o têm sido.

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