NOS Primavera Sound 2018 | Dia 2: Muito girl power e a dureza do hip hop

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Segundo dia, sexta. Felizmente a chuva teimava em não cair no NOS Primavera Sound e o pouco sol até apelava à pele. Depois de passar pelo indie de Amen Dunes logo à entrada, tempo de sentar um pouco na relva, no topo da colina a descer para o Palco NOS, e ver como se portavam uns tais de IDLES, dos quais já se ouvia o ruído à distância. E que bela surpresa para começar o dia, que não durou muito para que o pé começasse a dar de si, a seguir o ritmo da música.

Não há maneira suave de o dizer e a contínua prestação – perdão, devastação – da banda só o comprovaria: post-punk com tomates, bem punk na atitude, por vezes a roçar o noise – ora não mencionassem até Steve Albini e os seus Shellac, prontos a tocar horas mais tarde.

Muita garra, bem in your face, com membros da banda a percorrerem a plataforma de extensão ao palco principal, a rebolarem no chão, a tocarem junto ao público, a demonstrarem aquela boa disposição grosseira mas afável quase de um hooligan, e até a fazerem uma cover de “All I Want For Christmas Is You” de Mariah Carey – sim, leram bem – bem avacalhada. Que mais há a dizer?

Próxima paragem no palco ao lado, no Super Bock, para ver os Zeal & Ardor, uma das bandas que seria, à partida, não necessariamente difícil de descrever o som, mas sim de dar a entender o quão bem poderia essa combinação estilística funcionar. Black metal com gospel pode não parecer a mistura mais atrativa, mas a verdade é que se a banda já conseguiu um equilíbrio interessante com o disco de estreia – Devil Is Fine, do qual a faixa homónima (e o seu vídeo) exemplifica o que se concretizaria se escravos afro-americanos venerassem antes o Diabo –, o seu novo Stranger Fruit vinca ainda mais essa junção das diferenças de uma forma notável.

De vozes melódicas e cânticos gospel, avançados pelo vocalista e guitarrista Manuel Gagneux e reforçados pelos seus dois vocalistas de apoio, a riffs de black metal pontualmente acompanhados por um ou outro grito, não deixa de estruturalmente alcançar também influências tão dispares como o blues, regado quiçá de soul, sem negar algum post-metal mas sem que a experiência fique um avant-garde inalcançável. Pelo contrário, o som foi até capaz de estimular a curiosidade de uma multidão que, sem subestimar a componente mais pesada, se deixou levar pela novidade. Para quem não conhecia ou queria comprovar ao vivo o valor, ficou certamente um nome a reter.

De volta ao NOS, seria altura de The Breeders, banda rock alternativo de Kim Deal, uma das fundadoras dos Pixies, e a sua irmã gémea, Kelley Deal. O já mencionado Steve Albini chegara a gravar-lhes Pod, em 1990, como bem relembraram ao público, no entanto, mesmo que se movam pelos meandros de uns Dinosaur Jr. ou uns Sonic Youth, não se sentiu garra para lhes redescobrir muito mais – talvez também pela diferença do que haviam sido os concertos anteriores. Deu para relembrar “Cannonball”, talvez a sua música mais conhecida, e fechar a loja.

De volta aos conflitos de horários e por três razões bem distintas: Grizzly Bear no Palco SEAT, Shellac no Super Bock e Ibeyi no Pitchfork, tudo sensivelmente ao mesmo tempo.

Na busca por uma refeição, deu para escutar ao longe o folk rock dos primeiros, não desfazendo. Os segundos, banda residente do NOS Primavera, ficaram logo de parte, mas não porque não valha a pena repetir a dose. Ainda assim, impôs-se a vontade de descoberta ao que fora recomendado, permitindo também que o palco Pitchfork, anterior ATP, fizesse das suas: maravilhar a mostrar bandas talvez menos badaladas. E que bem jogado que viria a ser.

As Ibeyi são as irmãs gémeas não idênticas Lisa-Kaindé Díaz e Naomi Díaz, filhas do percussionista cubano “Anga” Díaz (Buena Vista Social Club), e o nome do projeto, como as próprias diriam, significa “gémeos” em ioruba, língua (e cultura) africana da qual têm raízes e vão buscar influência para a sua música. Adicione-se ainda cantar também em inglês, francês e espanhol, aos ritmos afro-cubanos numa mescla de electrónica downtempo com R&B, e temos o caldo mais ou menos composto.

Na realidade, torna-se bem mais simples de entender quando vemos a absoluta energia, carregada de “girl power”, a brotar do palco, ao ponto de contagiar tudo e todos. Dos ritmos quase tribais de “Away Away” à sample em busca de igualdade de Michelle Obama em “No Man Is Big Enough For My Arms”, atiçaram e agarraram as vozes da plateia até não as largar mais. Quando chega “Deathless”, e depois de inúmeras repetições do refrão, já não havia quem não cantasse “whatever happens/whatever happens/we are deathless/we are deathless” – chegando a repetir-se o feito já depois de “Me Voy” e “River”, na despedida em jeito de encore. Se somos realmente imortais, aconteça o que acontecer, são outras divagações, mas que por momentos o que começou naquelas duas vozes ecoou no âmago de imensos corações, não ficaram dúvidas.

No compasso de espera para nos aproximarmos das linhas da frente do palco NOS, para observar a chegada de Vince Staples, ouvimos ao longe “The End Of Radio” de Shellac no palco ao lado, e imaginando o já usual processo contínuo e demorado de desmontar (ou destruir) uma bateria ao longo de uma música que repete a sua pequena cadência ao longo de quase dez minutos, não imaginaríamos que, à sua maneira, até conseguiu ser uma boa analogia para o que estaríamos prestes a ver. É que o rapper americano, de North (Norf?) Long Beach, Califórnia, é também ele uma desconstrução do que o mundo do hip hop tem para oferecer, aliando o seu constante flow de ritmos orelhudos e versos a suscitar a repetição às batidas que chegam a ser uma readaptação da música dance e electrónica.

Só por tamanha frescura se explica que quem ao segundo álbum, Big Fish Theory (2017), tivesse tanta gente sequiosa da sua música e até a saber as letras além dos famigerados hooks de uma “Big Fish” (“I was late night ballin’/countin’ up hundreds by the thousand“) ou de “Norf Norf”, do registo anterior “Summertime ‘06″ (2015) – isto comparativamente a quem o tenha conhecido, por exemplo, pela banda sonora do filme Black Panther, da qual chegou a apresentar a sua “Opps”, ou até pelo universo dos Gorillaz, através de “Ascension”.

Vestido de escuro e com um colete à prova de bala, percorreu todo o palco sem que este lhe parecesse demais, enquanto vários enormes ecrãs passavam em loop trechos de vídeos que tinham sempre um propósito crítico, cirurgicamente colocados e alterados ao longo da performance. Em jeito de contemplação, mas sempre sério, prostrou-se até de cócoras na extensão de palco pela multidão adentro, enquanto observava as reações efusivas – terá sido tão apanhado de surpresa quanto nós? Para o fim, “Yeah Right”, com a sua batida meio quebrada, a garantir que voltava a não precisar do featuring de Kung Fu Kenny para nos sovar a todos.

Sem tempo a perder, ainda deu para rapidamente ir ao palco Pitchfork espreitar a insanidade que é ver Thundercat ao vivo. Stephen “Thundercat” Bruner, Dennis Hamm e Justin Brown. Três músicos, baixo, teclados e bateria, histórias sobre gatos e mil notas por segundo entre harmonias e ritmos de contornos bem jazz, ora mais funk ora mais psicadélico. Entre o que quase pareciam batalhas entre instrumentos, chegou a ser complicado seguir apenas um só músico, tal é o virtuosismo que nos puxa e empurra entre os três. Não fosse um certo concerto estar a começar num palco ao lado, a restante viagem teria sido muito bem-vinda.

No palco SEAT, Fever Ray – ou antes Karin Dreijer, metade dos The Knife – subia ao palco, envergando uma t-shirt onde se lia “I <3 Swedish Girls” (eu amo raparigas suecas), com a referida nacionalidade cortada com um X. Será que a devida leitura é que seriam não apenas as suecas mas todas? O facto de se mostrar em palco com uma banda composta por mais seis mulheres responderia em parte, com um claro teor feminista a evidenciar, não fosse, no entanto, sublinhado por toda uma parada que roçava o excêntrico com o bizarro: todas elas com vestimentas no mínimo peculiares, com a vocalista de maquilhagem esborratada e as suas duas vozes de apoio dividias entre um fato de músculos falsos e um exuberante casaco. E isto era apenas visualmente parte do encanto, nas suas mensagens críticas carregadas de ironia.

Se quem vos escreve é um confesso fã do trabalho homónimo de 2009, com a sua eletrónica densa e algo carregada, alegremente também vos diz que – aparte de “If I Had A Heart”, que se manteve muito próximo do original – todas as músicas daí provenientes, como “When I Grow Up”, “Triangle Walks” e “I’m Not Done”, ganharam uma nova dinâmica, bem mais dançável e carregadas de ritmos nestas adaptações ao vivo, mais próximas das restantes do último álbum Plunge (2017). De “This Country”, a “To The Moon And Back” até “IDK About You”, todas ofereceram um misto de teatralidade com a vontade de dançar, num concerto que certamente primou pela diferença a todos os níveis.

Chegávamos ao último concerto do dia no NOS, e A$AP Rocky já estava a debitar “A$AP Forever”, single com sample de Moby, do seu fresquíssimo Testing, seguido de um apelo fraterno com “Kids Turned Out Fine”, enquanto no palco se via uma cabeça gigante, muito crash test dummy, e iam passando vídeos numa enorme tela, por vezes a complementar com letras. Não deixa de ser curioso ver um dos ícones do hip hop americano atual a ostentar – além de um sorriso, ou grelha, bem brilhante – uma t-shirt de Def Leppard, um dos símbolos máximos do rock britânico do fim da década dos anos 70.

A verdade é que tanto foi o carisma do rapper, sempre entrosado com o público e, numa veia mais do peso, inclusivamente a pedir círculos de mosh pit que se mostraram de respeito, que se torna impossível não ir além do próprio nome do artista e estabelecer a relação que este novo rock, chamemos-lhe, representa para tanto para quem o ouve. E é legítimo que assim seja, quando os nomes dos estilos alcançam também movimentos e ideologias que os contextualizam – ser o produto de alguma derivação já é colateral. Com as músicas “L$D”, “Fuckin’ Problems” e “Wild For The Night” enroladas com êxitos da sua A$AP Mob, não pasma que esta verdadeira rock star e a sua constante interação lhe tenham valido dois soutiens arremessados da plateia.

Por fim, como já não deu para ver Unknown Mortal Orchestra, que fora ao mesmo tempo deste, e esperar por Floating Points (às 02:30) parecia distante, ficou assim consumado este segundo capítulo.

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