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O fantoche que sonhava em ser um menino real deu origem a um dos soulslikes mais marcantes do género, que ainda goza, dois anos depois do seu lançamento, de uma popularidade invejável

Quando voltamos os ponteiros do relógio para trás e olhamos para a revelação de Lies of P, aquele que seria o primeiro soulslike das sul coreanas NEOWIZ e Round 8 Studio – muito antes de se tornarem nos nomes sonantes que agora são na indústria dos videojogos -, é interessante analisar o misto de curiosidade e descrença em torno daquele que viria a ser um dos títulos mais importante do género. Em 2021, a FromSoftware preparava a sua transição pós-Dark Souls, cada vez mais enamorada com a possibilidade de explorar variações à fórmula que havia popularizado, como Sekiro: Shadows Die Twice ou o regresso há muito aguardado a Armored Core. O género começava a expandir-se além dos seus criadores, com mais estúdios a apostarem na jogabilidade assente na dificuldade e exploração, mas ainda longe de sobreviver fora do cunho da FromSoftware. Um interregno peculiar, agora analisado à distância, onde o género pedia mais, mas os estúdios não sabiam o que fazer senão imitar e nem sempre com o mesmo nível de produção e polimento da produtora japonesa.

Com Lies of P, a receção foi marcada pela mesma mistura de desconsideração com genuína curiosidade. Um soulslike inspirado pelos temas e arte gótica e industrial de Bloodborne, com o mesmo foco no combate agressivo, onde o contra-ataque é mais importante do que a defesa direta, mas envolto numa tonalidade e narrativa muito diferentes da norma. Em Lies of P, a NEOWIZ e a Round 8 Studio procuraram reinterpretar a famosa história de Pinóquio, de Carlo Collodi, o fantoche que sonhava em ser uma criança real, de carne e osso, mas agora mergulhada numa distopia industrial onde os fantoches foram transformados em autómatos que se rebelaram contra o seu criador, Geppetto, e a sociedade de Krat devido a uma misteriosa doença. Um cenário suficientemente reconhecível, não fosse Bloodborne uma das suas grandes inspirações, mas com um cunho narrativo peculiar e influenciado nas fábulas infantis para criar algo novo, diferente e igualmente perturbador sobre a demanda de Pinóquio e de Geppetto.

Depois da revelação e dos primeiros contactos com Lies of P, a sua popularidade ganhou novos contornos e as produtoras coreanas viram-se nas graças de uma comunidade que encontrou potencial na sua mistura única entre fábula e videojogo. Com a primeira demo, lançada no PC e consolas, as dúvidas dissiparam-se e anteviram a receção calorosa que Lies of P viria a receber da crítica especializada e dos jogadores. Dois anos depois, Lies of P é um dos nomes mais sonantes do género, aquele que é considerado por muitos como o primeiro a rivalizar diretamente com a FromSoftware e até a ultrapassá-la na forma como adaptou e expandiu certas mecânicas e funcionalidades clássicas do género – ao ponto do DLC, Overture, programado para 2025, ser um dos mais aguardado do ano.

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Lies of P (NEOWIZ)

O meu percurso com Lies of P foi muito diferente da maioria dos fãs do género. A demo, que convenceu tantos outros jogadores, teve o efeito contrário em mim. Apesar da minha curiosidade com o tema e adorar visualmente o que a NEOWIZ e a Round 8 Studio fizeram com a criação de Collodi, a jogabilidade assente no contra-ataque e parry caíram como uma pedra no charco. Um verdadeiro caso de “jogo errado, à hora errado”. No meu primeiro contacto com Lies of P, a fluidez dos movimentos fez-me estranhar o ritmo dos combates e a minha (admito) falta de paciência em interagir com o sistema de parry originaram uma inabilidade em querer aprender o que Lies of P queria ensinar. Perante a reação positiva de colegas e amigos, eu sabia que o problema era meu, mas a demo não me convenceu o suficiente para finalmente dar o salto e arriscar naqueles que muitos consideram como um dos melhores do género.

Dois anos depois, e meses antes do lançamento do DLC, Lies of P entra de rompante na minha vida. Depois de Elden Ring, AI Limit, Blasphemous II, não podia continuar a evitar Lies of P. Não existiam razões suficientemente fortes ou lógicas para não jogar Lies of P, não quando adoro o género, e a NEOWIZ proporcionou esse salto quase sem paraquedas. Horas depois, ainda longe de terminar a campanha, posso finalmente concluir o óbvio: vocês tinham razão. Lies of P é um excelente soulsborne e é muito mais polido, denso e divertido do que esperava, mas sem nunca sair da fórmula que popularizou o género. O foco na exploração continua presente e encontramos em Krat o mesmo design quase labiríntico da FromSoftware, com inúmeros caminhos alternativos e atalhos que interligam zonas num mundo que se expande logicamente ao longo das horas. Krat está muito bem desenhado e cada caminho leva a uma nova zona, item secreto ou confronto contra bosses opcionais que procuram não só desafiar os jogadores, como motivá-los a saírem do caminho principal em busca de novas oportunidades.

O Hotel Krat é o epicentro da aventura. Um hotel aristocrático, envolto em riqueza e delicadeza, dividido por dois andares extensos onde encontramos aliados e lojas que servem a narrativa e a personalização da nossa personagem. À semelhança de Nexus, de Demon’s Souls, e Firelink Shrine, de Dark Souls III, Hotel Krat é imprescindível à aventura e assume-se como um ponto de descanso e evolução, com a presença de Sophia, que nos permite alocar os pontos de experiência nos vários atributos da personagem. Através dos Starglazers, que funcionam como as bonfires de Lies of P, podemos aceder rapidamente ao hotel e também fazer fast travel para qualquer ponto de Krat. Este regresso constante é necessário porque é no hotel onde podemos melhorar as armas, mas também a curiosa árvore de habilidades do rapaz fantoche, que nos permite adicionar habilidades passivas adicionais à personagem enquanto desbloqueamos atributos únicos ou até aumentamos o número de Pulse Cells ou até a eficácia do desvio de Pinóquio.

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Lies of P (NEOWIZ)

O que me impressionou no level design de Lies of P, especialmente depois de ter terminado AI Limit, foi a variedade de biomas e zonas independentes. Com um design circular, onde atalhos abrem novos caminhos que procuram cortar o backtracking à medida que exploramos as zonas, Krat é muito mais visualmente marcante do que esperava, indo além do tom industrial e gótico que é apresentado durante as primeiras zonas da campanha. Das ruas de Krat, mergulhadas em chuva e com os passeios decorados por vítimas dos fantoches automatizados, passamos aos complexos fabris e depois para a introdução de elementos naturais ao chegarmos a Moonlight Town. Como existe ligação entre as zonas principais de Krat, não sentimos que estas foram coladas de forma aleatória ou que existe uma falta de harmonia na forma como fluem entre si – o mesmo que senti em AI Limit, por exemplo. Antes pelo contrário, a NEOWIZ quis garantir que existe lógica interna em Krat e se entramos, por exemplo, pelos telhados da fábrica de Venigni, a sua saída acontece pelos esgotos que vão dar a uma mina que escoa sobre um riacho já fora das instalações industriais e que segue um carreiro onde a vegetação cresce naturalmente. É um cuidado de design que me fez antecipar a entrada numa nova zona, só para perceber não só o seu funcionamento e design – muitas zonas apresentam uma verticalidade deliciosa com níveis superiores que apresentam novas opções de combate –, mas também a sua beleza visual que ajuda, como já é costume no género, a contar a história dos habitantes de Krat e dos eventos que precederam a nossa chegada.

Lies of P é, em vários sentidos, a fórmula aperfeiçoada do género soulslike. A fórmula clássica, sem mundos abertos ou campanhas divididas por missões, ou até o foco único numa jogabilidade com maiores opções de mobilidade (como Sekiro: Shadows Die Twice). Depois de Elden Ring, Lies of P pode necessitar de um certo período de habituação para reiniciarmos o cérebro e voltarmos à simplicidade do género, mas o hábito e a familiaridade não demoram a adocicar a nossa experiência. Desta forma, Lies of P pode não se focar propriamente nas surpresas ou avanços tecnológicos que marcam atualmente o género, mas encontramos aqui uma busca pelo polimento e solidez mecânicos que permitiram que a NEOWIZ e a Round 8 Studio se destacassem perante os seus rivais. É verdade que os controlos não saem dos moldes de Dark Souls e Bloodborne, com o salto ainda encurralado entre a combinação pouco natural de comandos, mas Lies of P preocupou-se a ir além da imitação. O que está presente foi pensado, repensado, limado e testado até ao seu estado mais puro e mecanicamente intuitivo possível para proporcionar a experiência mais condensada do género.

A influência de Bloodborne é bastante visível através do sistema de combate e encontramos em Lies of P um foco na agressividade e no contra-ataque. A nossa personagem é capaz de atacar, utilizar itens, desviar-se, utilizar ataques rápidos e pesados, até alternar entre armas e defender-se; um conjunto de mecânicas e opções que compõem a base para qualquer jogabilidade do género. A aproximação a Bloodborne acontece pela forma como Lies of P destaca a opção de parry, que se sobrepõe à defesa ou até ao desvio em determinados momentos, e incentiva à pressão constante dos nossos inimigos. Se mantivermos a pressão, sempre a atacar e a parar os golpes inimigos, nós podemos não só recuperar energia perdida – tal como acontece em Bloodborne –, como atordoamos mais rapidamente os fantoches inimigos, deixando-os enfraquecidos ao ponto de podermos disferir um golpe mortal. Então Lies of P mantém-nos num estado constante de “risco e recompensa” ao tentarmos recuperar a energia perdida enquanto procuramos aberturas na defesa dos nossos adversários para que possamos deixá-los indefesos e à nossa mercê.

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Lies of P (NEOWIZ)

Com treino, Lies of P torna-se num espetáculo visual de ataque e contra-ataque que é consistentemente satisfatório devido ao excelente feedback presente nos golpes e defesa da personagens e inimigos. Eu passei por um período intenso de aprendizagem porque a minha destreza com o parry não é perfeita, mas Lies of P, ao contrário do que esperava, é tão mecanicamente forte e acessível que me vi a arriscar cada vez mais e a tentar apanhar os timings corretos dos inimigos para não só fazer parry, como manter a agressividade em combate. Isto é possível através de um bom registo visual, seja na identificação de ataques mais destrutivos – que só podem ser parados se fizermos parry, completamente imunes à nossa defesa – ou na coreografia dos inimigos, que nos permitem ler os movimentos que nos permitem contra-atacar. Claro que Lies of P é muito difícil e não é propriamente imediato devido ao seu foco no parry, mas nunca senti que a jogabilidade fosse injusta ou que eu estava a ser prejudicado pela IA e restantes mecânicas do sistema de combate.

O que também foi uma surpresa foi a ausência total de classes em Lies of P. Ao contrário de Dark Souls e da maioria dos soulslikes, Lies of P não apresenta uma lista de classes tradicionais e foca-se mais na construção de armas para determinar a nossa prestação em combate. Quando iniciamos a campanha, a personagem já está definida e seguimos Pinóquio, o filho prodígio de Geppetto, cuja aparência só pode ser alterada com itens cosméticos, mas nunca permanentemente a nível físico. Então a opção inicial restringe-se à arma que queremos utilizar, se é uma espada rápida, uma greatsword ou uma adaga. Esta escolha influencia a primeira hora da campanha, mas Lies of P rapidamente expande a personalização e introduz a possibilidade de combinarmos armas para criarmos novas opções. Em Lies of P, nós continuamos a poder evoluir as armas através da utilização de recursos, mas também podemos, numa escolha de design que considero deliciosa, repartir as lâminas e cabos para criarmos algo completamente novo. Por exemplo, nós podemos pegar na lâmina da espada rápida, ou até numa lâmina com efeitos elementais, e colocá-la numa pega que permite aumentar o poder de ataque ou então a sua rapidez, originando assim algo novo e refrescante que nos permite modular o combate às nossas exigências. Como cada peça tem habilidades únicas, nós estamos não só a combinar atributos e padrões de ataque, como habilidades importantes que podem influenciar o desfecho de um combate. Desta forma, nós podemos ter habilidades que aumentam as capacidades elétricas de uma espada, mas garantir que também temos uma opção para realizarmos um ataque mais destrutivo. Esta aposta na combinação de armas é um dos elementos que mais respeito em Lies of P.

A possibilidade de alterarmos o braço esquerdo de Pinóquio é a última medalha de honra num sistema de combate muito sólido e profundo. Talvez seja o elemento menos impressionante a curto prazo, mas a variedade de braços é louvável e a sua presença em combate dá-nos uma nova camada de estratégia que pode ser combinada com a arma certa no momento correto. Os braços apresentam habilidades únicas, quase como opções adicionais que complementam os ataques físicos, um pouco à semelhança do braço prostético de Sekiro: Shadows Die Twice ou até Devil May Cry 5. Desta forma, temos à nossa disposição uma nova habilidade que poderá traduzirmos num ataque direto, como um soco de força concentrada, ou então um gancho que puxa os inimigos para a personagem – e até podemos utilizar as plataformas para garantirmos que os inimigos caem e sofrem ainda mais dano – ou ataques elementais. No fundo, Lies of P apresenta uma deliciosa harmonia mecânica ao apresentar sistemas e opções que se conciliam ao longo de uma campanha que nunca deixa de ser desafiante, mas igualmente recompensante se aprendermos a ler os movimentos dos nossos inimigos e compreendermos o que o jogo exige de nós.

Dois anos depois, termino este artigo com o óbvio: Lies of P é exatamente como o pintam. É um dos melhores soulslikes atualmente disponíveis e é uma vitória impressionante para NEOWIZ e a Round 8 Studio, tal como é uma prova de que existe vida, criatividade e determinação no género que não dependem exclusivamente da FromSoftware. Apesar da dificuldade acentuada e do foco no parry, eu aprendi o ritmo e exigências de Lies of P e descobri um jogo mais profundo, inventivo e até personalizável do que imaginava. Há muito para descobrir, combinar e criar em Lies of P e se aliarmos esta determinação mecânica à narrativa e à forma como a NEOWIZ e a Round 8 Studio adaptaram a obra de Carlo Collodi a uma nova realidade distópica, sem eliminar os seus temas principais ou até o foco nos efeitos da mentira em Pinóquio – ao ponto de podermos influenciar a direção da campanha, já que ele é o único fantoche capaz de mentir –, compreendemos como se trata de um dos soulslikes mais memoráveis do género. Agora posso finalmente dizer: mal posso esperar pelo DLC.

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Cópia para análise (PlayStation 5) cedida pela NEOWIZ.

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