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Uma viagem surreal e emotiva pelo interior dos Estados Unidos, entre estradas e fantasmas.

Durante o primeiro ato de Kentucky Route Zero, a Cardboard Computer diz-nos, através dos diálogos e planificação, o que devemos esperar. Não serão as histórias expansivas e sobrelotadas, repletas de personagens e fios narrativos confusos, ou puzzles demasiado complexos – ao ponto de ir contra o ADN point and click que move o seu jogo – que comandarão a campanha, mas antes a ambiência das estradas solitárias da América do Norte. Algures em Kentucky, em estradas idênticas e com o asfalto cansado e marcado por memórias, encontramos Conway e o seu cão Homer. Ele é um simples condutor para uma loja de antiguidades, à procura da estrada Zero, agora estacionado numa estação de serviço. Um lugar inóspito, igual a tantos outros, onde a eletricidade falha constantemente e o serviço de telefone não é de fiar. Ao ajudarmos o dono da estação de serviços, somos levados a visitar a cave, que mais se assemelha a uma mina escondida. É lá que encontramos três figuras a jogar, sentados numa mesa, à procura de um dano. A poucos metros da entrada, descobrimos o interruptor que liga a luz. Assim que a luz regressa, as três figuras desaparecem. Nunca estiveram lá. Sempre estiveram lá.

Kentucky Route Zero, agora na sua versão para a PlayStation 5, constrói-se sobre uma narrativa que é simultaneamente pessoal e distante. Os diálogos são escolhidos por nós, através de falas minuciosos escritas, cujo impacto é deixado à nossa interpretação. O que importa, defende a Cardboard Computer, é que as escolhas sejam nossas e que consigam refletir o que sentimos e pensamos durante a campanha de Kentucky Route Zero. É mais importante estarmos presentes, a observar o que ocorre à nossa volta e a interpretar à nossa maneira, do que tentar dar sentido aos acontecimentos sobrenaturais que se escondem nas estradas. É mais importante conhecer a história dos mineiros que gravavam músicas no fundo de uma mina, presos entre o trabalho deplorável e a companhia que os explorava, ou a descobrir uma igreja abandonada no meio do nada, onde ainda toca um rádio com missas do passado. Tudo isto sobre a manta emocional e melancólica da excelente banda sonora de Ben Babbitt.

A ambiência deste mundo de estradas, personagens e acontecimentos inexplicáveis é construído em torno de uma direção exímia. Cada sequência é uma sucessão de quadros, meticulosamente pensada e dirigida através da combinação entre os modelos poligonais das personagens e a utilização da iluminação para enaltecer os cenários – e também reforçar as suas sombras. Os movimentos de câmara são ponderados e servem a jogabilidade ao criar a sensação de que estamos dentro de dioramas que se interligam entre si, divididos por camadas e perspetivas que se desdobram como camadas de algo maior. E foi um desses momentos, de excelente planificação e construção de cena, que fiquei rendido à ambiência e narrativa de Kentucky Route Zero.

Não é suposto sentirmos tudo da mesma forma. Cada um tem a sua interpretação. Em Kentucky Route Zero, fui apanhado por um lento zoom através de uma quinta perdida algures no mar de estradas da região norte americana. Uma zona tão banal como melancólica, uma paragem inesperada, à procura de direções para algo que afastaria Conway dali. Ele apenas quer direções, mais nada. Com a carrinha estacionada à beira da estrada, seguimos Conway na sua longa caminhada ao longo de um monte, que pouco se estende pelo horizonte. À medida que caminha, a câmara aproxima-se de dele, o plano muda e transforma-se. No topo, encontramos uma casa, com um quintal ao abandono e um cemitério improvisado com apenas duas lápides, que mais tarde descobrimos ser meramente decorativo; cerimonial.

A câmara continua a seguir Conway quando entramos na casa. Agora estamos no autêntico diorama de uma casa pobre e mal tratada daquela região. O plano é composto pela estrutura da casa, agora mais íntimo, num contraste eficaz com o exterior escuro da noite. Mas a câmara continua. Focamo-nos numa televisão supostamente avariada, a luz do tungsténio a iluminar Conway, mas a perspetiva vai até ao exterior novamente. As personagens transformam-se em silhuetas, a parede quebrada transforma-se numa moldura. No fundo, animais a pastar. Tão natural; tão normal, mas tão emocional. Às vezes, isto basta.

Talvez não seja nada para vocês, apenas uma sequência no meio de tantas outras; talvez tenham sentido o mesmo que eu, arrebatados pelo movimento dengoso da câmara e a forma como a banda sonora conseguiu construir um ambiente tão misterioso e melancólico; talvez tenham encontrado a mesma sensação, mas noutro momento da campanha. Penso que é isso que torna Kentuck Route Zero tão especial. Uma mensagem artística de uma equipa que tinha algo para contar, à sua maneira. Só isso vale o mundo.

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Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela FortySeven.

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