O que é um cão sem corpo? O que é o Homem sem amor? O que é Deus sem fé? E o que é um videojogo sem escolhas?
A introdução de Indika constrói-se em torno de confusão. Quando somos apresentados a Indika, uma jovem freira que reside num convento russo no final do século XIX, compreendemos que a sua presença é incómoda para as restantes freiras. Umas falam sobre os comportamentos peculiares da jovem, que parece viver num sonho constante, marcada por visões que condicionam o seu bem-estar e que colocam Indika numa linha ténue entre o divino – ou o que poderia ser considerado como divino – e a blasfémia por não conseguir acompanhar a vida secular e respeitar os costumes da sua ordem. Outras lançam comentários ao seu passado, uma maçã podre que poderá contaminar as outras. A direção acompanha o ambiente absurdista, deleita-se na composição do espaço e dos corpos com planos aproximados, caras em grande plano, ângulos picados e contra-picados, desnivelados, criando a ideia de desequilíbrio constante. Não sabemos quem somos, o que temos de fazer e o que nos espera no mundo religioso desta realidade alternativa.
Após a primeira cinemática, Indika é empurrada para o exterior do convento com uma simples tarefa: entregar vegetais à irmã Smaragda, alguém que ainda não vimos e que muito menos sabemos onde se encontra. Então caminhamos pelas zonas exteriores do convento à procura de Smaragda, outro rosto que se esconde entre o negro do hábito, igual a tantos outros, com o contexto a ser propositadamente escondido ao longo desta introdução. Assim, focamo-nos em Indika e na voz que a persegue – uma voz que Indika acredita ser a do Diabo -, que a aconselha a cada passo e descreve a ação enquanto esta acontece, mas desafiando a nossa perceção sobre o que estamos a testemunhar. Este ambiente inóspito e ameaçador só é possível porque sentimos que caímos numa realidade que não se quer mostrar, muito menos ser compreendida por quem não lhe pertence. Então procuramos um significado, um propósito, qualquer coisa que nos permita relacionarmo-nos com Indika por aquilo que é primeiramente: um videojogo.
A iconografia, a representação constante de um UI estilizado, tal como a introdução de uma tarefa, define Indika enquanto um jogo, mas a direção é propositadamente difusa. Sentimos que estamos a observar algo que reconhecemos, mas que se torna cada vez mais peculiar quando nos aproximamos. A linguagem está lá, o significado não. Quando encontramos Smaragda, ou quem achamos ser a irmã que procurávamos, somos introduzidos à próxima tarefa, que obriga Indika a encher um barril com água. É uma ordem que Indika não pode recusar, não só por existir uma hierarquia no convento, mas porque a jovem não quer criar maior animosidade com as outras freiras. Indika sabe quem é, o que fez e o que a sua presença no convento significa, mas nós não. Então agarramo-nos a esta tarefa que reconhecemos e que conseguimos compreender facilmente. Temos de mover a personagem, já de balde na mão, até ao poço e enchê-lo com água para depois voltarmos ao barril que nos pediram para encher. É uma tarefa repetitiva e monótona que, ausente dos momentos de monólogo de Indika e da presença da voz demoníaca que a persegue, não apresenta quaisquer desafios: enchemos o balde, despejamos o balde.
Tal como um videojogo, agora temos uma missão mais interativa. Não estamos apenas a caminhar pelos cenários exteriores e a ouvir os pensamentos de Indika, mas a participar ativamente no jogo. Agora os elementos de UI pixelizados começam a fazer sentido. No entanto, Indika não procura conforto e reconhecimento, antes uma sensação de desconforto permanente. O ato de encher e despejar o balde é acompanhado pela introdução de novas mecânicas e verbos – agarrar, rodar, encher, despejar –, mas a ação não muda ao longo das cinco vezes em que é repetida. Nós caminhamos do barril ao poço e voltamos. Assim instala-se o desapontamento de não estarmos a participar numa tarefa mais divertida e próxima ao que associamos aos videojogos. Então, a mente viaja, procura novamente significado, um propósito para sermos obrigados a repetir cinco vezes o mesmo conjunto de ações para encher um simples barril. A voz atormenta Indika ao comentar quão desnecessário é todo o processo. A justificação é que a água do poço é mais pura e não toca na água do rio que passa próximo ao convento – e que é muito mais fácil de recolher -, mas como a voz explica – e como Indika sabe –, a água é sempre a mesma água, a sua fonte é que difere. E se a Epifania determina que uma gota de água abençoada é o suficiente para abençoar um rio, então toda a água devia ser pura. O processo é desnecessário.
No final, quando o balde está cheio, outra freira surge do interior do convento e não se demora a despejar a água para o chão. O nosso trabalho foi invalidado e, afinal, não valia a pena. O desapontamento de Indika é palpável, mas a jovem está habituada ao tratamento. O jogador, no entanto, terá outra reação. Uma tarefa que lhe foi atribuída e que afinal não tem qualquer propósito mecânico e aparente recompensa vai contra o que definimos atualmente como um videojogo. É depreensível que exista propósito, recompensa, um porquê para o que fazemos e Indika sabe-o. Então somos recompensados, apesar do nosso desagrado, com pontos de bom comportamento que são devidamente aplicados numa árvore de habilidades – que incluem coisas como vergonha, pesar, arrependimento, humildade, entre outras habilidades imaginárias. Mas a tarefa em si, agora escudada pela compensação e reconhecimento do jogador, continua a ser descartável: o balde foi derrubado, a água não era necessária, tal como a voz nos disse. A escolha é inexistente, assim pensa Indika, e assim pensamos nós, agora contra o videojogo.
Defendo que este momento introdutório é uma poderosa tese sobre os temas desenvolvidos ao longo da campanha de Indika. O poder da escolha, a individualidade do sujeito, a sua determinação pessoal em fazer algo são terminologias postas à prova em Indika através de momentos que questionam a nossa agência enquanto jogadores e a vontade pessoal da jovem enquanto protagonista desta história tão teológica e absurda. Afinal, para que servem as escolhas quando o caminho está determinado e essas escolhas não são honestas, antes reflexos de um medo do divino, uma procura pela absolvição e uma tentativa de seguir os outros quando nós, seres individuais, não sabemos e muito menos acreditamos no que estamos a ser obrigado a fazer. Porque foi Indika, tal como o jogador, obrigada a encher um balde com água, cuja ação não tinha qualquer propósito? E por que acredita Indika que a voz que a persegue é demoníaca e que precisa de a exorcizar para se integrar finalmente na vida conventual que tanto a despreza?
O conceito de ‘escolha’ – tomar uma opção entre duas ou mais hipóteses; separar de outro ou outros, consoante a qualidade – é, assim, desafiado pelo jogo através da inserção de vários momentos em que temos mais do que um caminho a seguir, ou então quando a narrativa força a ideia de que existem alternativas à viagem de Indika até ao mosteiro de Danilov, onde terá de entregar a carta que lhe foi confiada. Várias vezes encontramos sequências de exploração que se constroem em torno de cenários ligeiramente mais extensos com caminhos que parecem determinar que existem formas diferentes de chegar ao nosso objetivo – mas não existem. Numa sequência, que nos leva a explorar uma fábrica de enlatados, após completarmos alguns momentos inesperados de plataformas, somos recompensados com uma escolha: à nossa frente temos duas portas. Uma porta à esquerda, outra porta à direita. Enquanto jogadores, nós sabemos o que isso significa, existe um propósito para cada porta, talvez um colecionável ou até um momento de ação que seria perdível se seguíssemos pela outra porta. Então, fazemos uma escolha, já mentalizados que muito provavelmente voltaremos atrás para ver o que nos espera na segunda opção. Quando chegamos ao outro lado, aprendemos que ambas as portas vão dar à mesma sala. Não há nada a fazer, não existe o propósito da escolha, que é ilusória, e muito menos existe um escape. O caminho está definido porque Indika recusa-se a ver a verdade.
Indika não é um jogo mecanicamente complexo, não como os seus temas. A Odd Meter define Indika como um jogo narrativo de aventura na terceira pessoa e é assim que se constrói ao longo da sua campanha. Apesar de existirem diferentes momentos de jogabilidade com diferentes objetivos e mecânicas – como uma sequência de condução, vários puzzles ou até o já mencionado momento na fábrica que obriga à navegação de plataformas em movimento -, a campanha mantém-se maioritariamente centrada na sua narrativa. Durante duas a quatro horas seguimos a história de Indika, uma jovem freira em que é incutida a missão de entregar uma carta. Nós não sabemos o que está na carta, qual o seu propósito e muito menos a urgência da sua entrega, mas somos empurrados juntamente com Indika para as planícies e rios gelados da Rússia rural. Não demoramos a compreender que o mundo de Indika é um mundo de caos, incerteza e perdição. Sentimos que todas as personagens estão à procura de algo, mas sem direção que possam seguir. É um mundo em desordem, casas caídas em penhascos, terra quebrada, fábricas abandonadas, comboios descarrilados; um mundo onde sobrevivemos não porque somos justos, mas porque um guarda não tem pontaria suficiente para nos acertar – então vivemos por mais um dia.
Este caos humano é transparecido na jogabilidade e diversidade de momentos à nossa disposição, com Indika a procurar enganar-nos e deixar-nos constantemente na dúvida sobre a sua direção mecânica e narrativa. No entanto, a jogabilidade é familiar e muito próxima ao tipo de videojogos que encontramos no género de aventura. Indika é capaz de agarrar em objetos, arrastar caixas, subir e descer, correr e até rezar quando mais necessita de ajuda. Os puzzles seguem os moldes do género – como criar plataformas com o auxílio de máquinas e arrastar caixas para os seus devidos lugares – e existem até colecionáveis que podemos encontrar pelo mundo. Estes colecionáveis, simbolizados por iconografia cristã – quadros, figuras, relíquias, mas também objetos pessoais dos habitantes da religião -, servem também o propósito de atribuir mais pontos de experiência a Indika, com o intuito de desbloquear novas habilidades com efeitos dúbios e nem sempre compreensíveis quando analisados através da lente do género em que o jogo e a própria narrativa se inserem.
A árvore de habilidades, se podemos intitula-la de tal forma, é mais um elemento temático para a ausência de escolha no mundo de Indika. Os colecionáveis são, na verdade, descartáveis a nível mecânico, servindo apenas o propósito de glifos narrativos, cujas definições não são, na verdade, impactantes na nossa compreensão da história pessoal da jovem freira. Os pontos de experiência não são necessários e não existe uma progressão efetiva da personagem: não temos acesso a novas habilidades, não mudamos a forma como interagimos com o jogo ou desbloqueamos a possibilidade de abrir novos caminhos; a árvore de habilidades é uma falsa escolha; não importa o caminho que tomamos, a habilidade que desbloqueamos e que pontos colecionamos ao longo da campanha. Tudo é fútil porque é um reflexo da própria protagonista: não são pontos de experiência, antes de absolvição, que Indika tanto procura e não consegue alcançar.
É aqui que podemos traçar um paralelismo (potencialmente blasfemo) entre a estrutura de um videojogo e os ritos católicos tal como são apresentados na campanha de Indika. Durante os diálogos com a voz demoníaca e Ilya (um prisioneiro em fuga que rapta Indika no início da sua viagem), a jovem deambula sobre o valor da consciência, o significado de ‘bom’ e ‘mau ‘, ‘certo’ e ‘errado ‘, tal como o poder da fé, da absolvição, penitência e até sacrifício, não só enquanto ser crente, mas também enquanto parte de uma espécie, enquanto ser humano. Para Indika, o caminho de Deus, a sua grande missão, deveria sobrepor-se a todas as outras vontades terrenas, mas à medida que é confrontada com o mundo e os seus próprios sentimentos, a jovem freira revela um amor permanente pelo físico. É através do corpo que sentimos o mundo, o amor de Deus e relacionamo-nos com os outros. Traça-se um paralelismo com o cão, numa das frases mais memoráveis do jogo – “o que é um cão sem o seu corpo?” –, onde se determina que é a consciência que sobrepõe o Homem ao Animal; é a consciência de sabermos quem somos e o que queremos. Mas a voz demoníaca questiona: se sabemos e se somos, então por que estamos sempre a ser guiados por outros, ao contrário do cão, que apenas age de acordo com a sua natureza?
A árvore de habilidade, os colecionáveis e os caminhos alternativos são reflexos da ausência de escolha mecânica, mas também pessoal de Indika. As escolhas que fazemos, os objetos que colecionamos e que nos recompensam com pontos de experiência (ou absolvição) podem ser interpretados como formas de penitência. Como o Diabo questiona a certo momento: como pode Indika ser livre se está constantemente a seguir as regras dos outros em busca de algo que não lhe é possível alcançar? A procura de perdão, vida eternal, purificação da alma são representados através destes elementos interativos. É esta a sua tradução num ambiente de videojogo. Tal como os ritos e obrigações cristãs, que são compostos por um conjunto de regras e deveres para todos os seus devotos – e o seu incumprimento impossibilita que a alma alcance o Paraíso –, Indika pensa que colecionar relíquias e iconografias cristãs a tornam mais pura aos olhos de Deus. Para o jogador, cria-se a falsa sensação de progresso e crescimento. Para Indika, cria-se falsa esperança. Mais pontos, mais oportunidades – mas é uma sensação irreal.
Esta dicotomia entre religião e videojogos é perigosa e não nasce de uma tentativa em apenas criticar ambas as partes, mas antes desenvolver este paralelismo de acordo com a história pessoal de Indika. As comparações estão presentes e podem ser sentidas através das mecânicas do jogo: um conjunto de regras, uma lista de tarefas e a sua repetição constante para que se tornem reais e mais presentes. Como jogadores, nós seguimos regularmente um conjunto de regras, compreendemos o que cada funcionalidade e sistema simbolizam num determinado género de videojogos e agimos de acordo com tal. No caso de Indika, a jovem tenta agir como uma freira devota, mune-se da imagética e da crença para dar vida aos seus sentimentos. Há uma tentativa em seguir um plano, uma ideia e um conjunto de objetivos para alcançar um fim. Num videojogo, terminar a campanha, recolher a recompensa. Na religião, completar uma vida devota e pura, chegar ao Paraíso prometido. Mas qual é a validação em ambos os casos? Qual é a sinceridade das nossas ações e das escolhas de Indika? Talvez seja por isso que Indika é visitada antes pelo Diabo, apesar de tentar ouvir a voz de Deus. Não é possível fugir.
Também é importante determinar como Indika é um jogo que se centra maioritariamente na linguagem corporal. É o corpo que está quase sempre no centro da ação e que é enaltecido pela planificação dos planos aproximados, os pormenores físicos, as feridas permanentes – como no braço de Ilya – são recordações da nossa mortalidade, mas também da vida. Até certo ponto, esta aproximação ao corpo é como um desafio à ideia de infinito e da alma eterna, já que observamos mais os corpos das personagens do que conseguimos percecionar a vida eterna que eles ambicionam. É a exaltação do físico contra o metafísico, o real e o possível, a vida e a ideia da eternidade. Indika centra-se no finito em comparação com infinito, a sua busca, e isso não seria possível sem a direção, mas também a interatividade. Nós estamos a controlar o corpo de Indika, a senti-lo através dos botões e da vibração do comando, e conseguimos vê-la e ouvi-la para interagirmos com o jogo. Conseguirá aquele corpo seguir as regras e chegar ao outro lado? Afinal, o que é um cão sem um corpo? E o que será um Humano sem o seu, se a alma não existir?
A utilização de uma iconografia mais próxima aos videojogos nem sempre é ténue ou aberta a interpretação. No decorrer da campanha, encontramos momentos de flashback que contam, peça a peça, o motivo pelo qual Indika está presa no convento. Estes momentos tomam o formato de videojogo, pixelizado no seu estilo visual e mais mecanicamente próximo aos clássicos do género, e apagam a linha que então separava Indika do seu meio. Aqui podemos traçar novamente a ligação entre crença e videojogo, com o passado de Indika a ser transformado num videojogo que toma várias formas, formatos e géneros, servindo como reflexos do que encontramos no presente. Primeiro um jogo de corridas, depois um jogo de plataformas, tal como um momento de ritmo, em que saltamos de pedras em pedras, e até uma interpretação do Pac-Man no que toca à sua forma. A “gamificação” de uma vida interrompida que mantém intactos símbolos que encontramos no presente – como os pontos de experiências, ou moedas colecionáveis, que aumentam o suposto nível de Indika – são tentativas de fuga para a jovem que imagina um mundo diferente e inalcançável.
Na verdade, Indika encontra-se numa prisão. A falta de escolha, a ausência de individualidade, a constante perseguição e julgamento constroem uma vida de reclusão. É aqui que Indika reside. Uma prisioneira no seu próprio corpo, mas também amarrada à conclusão de que será a sua religião a salvá-la do castigo eterno. Esta perspetiva é enaltecida por Ilya, que acompanha Indika, também ele um prisioneiro, mas muito menos metafórico. Não conhecemos o crime de Ilya, mas sabemos que é capaz de matar. O que também sabemos é que Ilya consegue, depreende-se, ouvir a voz de Deus e procura o Kudets, um artefacto capaz de curar todos os males físicos e espirituais, para finalmente curar o seu braço ferido. Ilya acredita que a sua missão é divina e que o caminho lhe foi mostrado por Deus, mas também ele se mantém preso ao seu passado e ao seu pecado. Tal como Indika, Ilya também procura redenção e acredita que tal é possível ao ignorar a sua individualidade na procura de ordem, sentido e harmonia. Infelizmente para ambos, este é um jogo de dúvida em que as respostas, tal como as ações e objetivos que encontramos ao longo da campanha, não foram concebidos para serem satisfatórios. As respostas não são respostas, são antes novas perguntas que ficam connosco.
Podemos concluir que todas estas problemáticas nos podem encaminhar para um tema principal: o de vermos a alma de Indika como vemos, ou jogamos, um videojogo. As interações entre Indika e o Diabo, e Indika com Ilya são alguns dos momentos mais fortes da campanha devido aos diálogos provocantes e graças à direção de Dmitry Svetlow. É um puzzle filosófico que se constrói através da nossa interação e defendo que o seu impacto só é possível porque participamos ativamente no processo de desenvolvimento de Indika. A ausência de escolha e a futilidade de certas ações não são problemas em Indika porque o jogo vive neste paradoxo. O desafio dos conceitos de videojogo e da penitência da religião cristã nascem exatamente das contradições da jogabilidade, mas Indika acaba por não saber quando parar e escolher ser um videojogo primeiro ou uma novela interativa.
Se a ausência de escolhas não é um problema, o mesmo não pode ser dito dos puzzles repetitivos e que pouco desenvolvem a jogabilidade e a narrativa do jogo. Os puzzles não evoluem, mantendo-se numa aposta entre arrastar e posicionar objetos que desvirtuam a força temática de Indika. Os momentos mais surrealistas também são escassos e a falta de uma maior correlação entre crença e os puzzles também é palpável, por exemplo, os momentos em que Indika sucumbe à voz do Diabo, quando a sua psique está mais fragilizada por uma revelação inesperada. Quando tal acontece, o mundo à nossa volta muda, os cenários quebram-se e tomam uma tonalidade avermelhada que procuram representar uma inesperada aproximação ao Inferno. Para navegar os cenários, Indika tem de rezar, ato que reconstrói momentaneamente os espaços para que possamos alcançar plataformas e, por fim, a saída. Estes momentos constroem-se entre rezar e deambular pela versão infernal dos cenários, mas são escassos e não evoluem ao longo da campanha. Apesar de defender conceptualmente a jogabilidade de Indika, é difícil justificar a falta de maior desafio nestas sequências visualmente marcantes, tal como a ausência de profundidade por parte da freira no ato de rezar. Uma ausência que até contrasta com os próprios temas do jogo, já que a narrativa delicia-se com a contradição da crença perante as adversidades, em que a religião surge como um alicerce para o medo da morte e não como uma fé sincera. Indika precisava de maior impacto nestas sequências.
A minha leitura talvez seja errónea e os verdadeiros temas tenham passado entre as palmas das minhas mãos. As problemáticas religiosas, as deambulações teológicas e filosóficas estão presentes ao longo da campanha. É esperado que duvidemos e questionemos não só da postura mais crente, como daquela que se fecha e se recusa a ver o outro lado da questão, presa à sua própria falta de fé. No fundo, Indika é um jogo muito mais humano, melancólico e perturbador do que antevia. É um jogo que abraça o desafio constante sobre o que consideramos nele quanto videojogo, ao mesmo tempo que utiliza as suas imagéticas, sistemas e funcionalidades para contar a sua história: a ausência de escolhas verdadeiras e de mecânicas com peso e substância face ao valor do Eu; a problemática da fé enquanto representação da forma como interagimos com personagens virtuais e decidimos os seus destinos como Deuses omnipresentes e nem sempre justos, enfim, tudo isto porque Indika decidiu questionar o mundo à sua volta e depois tentou fugir e negar este mesmo desafio. E tudo porque nós questionámos o propósito de transportar o mesmo balde de água durante cinco vezes. Talvez a mesma face da moeda, talvez algo mais. Tal como a vida, uma enorme contradição.
O absurdismo que encontramos nos trailers é apenas o ponto de partida, nem sempre representante do que é presumível sentirmos e analisarmos neste jogo, e há muito mais para confrontar e desconstruir, mas isso seria abraçar sequências e interpretações que revelariam demasiado sobre a história e o seu propósito. Para já, fica esta comparação temática e interativa entre a crença religiosa, de quem procura a fé pelos motivos errados, e aqueles que determinam que um videojogo não pode sair dos moldes mais familiares.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela 11 bit studios.