Herdling é uma viagem contemplativa que se destaca pela narrativa visual e pela relação crescente entre um simples pastor e o seu rebanho improvisado, num jogo que ficará com vocês não pela sua jogabilidade, mas pela experiência emocional que constrói nesta relação entre humanos e animais
Em Herdling, não importa quem somos. Não importa qual é o género da pessoa que guiamos, futuro pastor ou pastora, que acorda no interior de um túnel abandonado. Não importa qual é o seu passado, se sempre nutriu carinho pelas criaturas ao seu redor ou se fugiu de casa para viver nas ruas. É impossível determinar onde fica exatamente o túnel onde encontramos a personagem, se fica localizado numa cidade à beira mar, se vive da industrialização das suas fábricas ou do comércio turístico. Não conhecemos sequer o nome desta cidade ou a sua cultura. Também não sabemos o que levou os Calicorns até às ruas sujas, repletas de grafitis e panfletos rasgados onde os encontramos pela primeira vez. Não sabemos nada, apenas acordamos, seguimos o som de um alarme e somos encaminhados até ao Calicorn que tenta libertar-se do balde enfiado na sua cabeça.
O que importa em Herdling é a nossa ligação emocional com os Calicorn, as criaturas fantásticas que se assemelham a ovelhas gigantes, e a viagem que escolhemos fazer ao seu lado. Se somos uma personagem com um passado atribulado ou um pastor escolhido pelos deuses não é o foco de Herdling. As respostas são evitadas, a narrativa mantém-se sem diálogos expositivos e não existem sequer – fora os tutoriais – textos espelhados pelos cenários que guiem a nossa atenção. O silêncio é, no entanto, audível em Herdling e fala mais alto do que qualquer palavra porque deixa-nos pensar e, acima de tudo, sentir. Apesar dos seus problemas mecânicos, como a rigidez dos controlos e a falta de um sistema de guia mais eficaz – só podemos guiar os Calicorns quando nos colocamos atrás do rebanho e nem sempre sentimos que estamos a direcionar as criaturas como queremos -, e de uma certa falta de polimento, que se faz sentido através de quedas regulares de frames – nomeadamente nas zonas mais expansivas -, existe uma ligação forte e rara numa viagem que nunca procura ser desafiante ou tensa, mas antes assumir-se como uma peregrinação pessoal pela beleza natural de um mundo cujo nome nunca conhecemos.
Não são precisos diálogos extensos para percebermos que a nossa personagem escolheu guiar os Calicorns até à sua terra natal. Perdidos nas ruas da cidade, nas entranhas das fábricas abandonadas ou até nas florestas e cumes das montanhas geladas, as criaturas procuram liberdade, mas são incapazes de coexistir com o ambiente hostil onde se encontram perdidas. Com um cajado na mão, improvisado e inicialmente sem qualquer relação emocional, podemos guiar os Calicorns através de ações simples e diretas, garantindo que não são vítimas da sua própria inocência. Seja a determinar a velocidade do seu passo, a direção da marcha, a ordenar a paragem, é o nosso pastor que tem de ordenar os Calicorns até ao destino. No entanto, Herdling não procura ser um jogo exigente a nível mecânico e mesmo que existam momentos de tensão, como os ataques dos pássaros gigantes ou o gelo fino dos rios gelados, a experiência mantém-se ponderada e contemplativa.
Apesar de não conseguir ignorar os seus problemas mecânicos e sentir falta de maior variedade na campanha, onde a linearidade é constante e nunca suplantada – existem, ainda assim, caminhos diferentes em algumas ocasiões, mas o destino é sempre o mesmo -, é-me ainda mais difícil ignorar a ligação emocional que criei com o mundo de Herdling e com o conceito de proteção que desenvolve ao longo da viagem. De facto, esta sensação de pertença é sorrateira e apanha-nos quando menos esperamos. Sempre que domamos um dos Calicorns, nós podemos dar-lhe um nome. Pode ser um nome original ou então aleatório, a escolha é nossa e é isso que importa: somos nós que damos uma identidade aos Calicorns. O seu design é suficientemente único para enaltecer a escolha do nome, desde criaturas mais pequenas, outras com o pelo branco, algumas com os cifres mais compridos ou com os olhos avermelhados. Então cria-se um ser vivo único na nossa mente, o nosso animal de estimação, uma criatura que precisa de ajuda para chegar ao seu destino, mas que existe por si e que apresenta a sua personalidade singular. Talvez os Calicorns nem sejam assim tão distintos um dos outros, mas o que importa é que eu senti que eram: eles eram os meus Calicorns. Esta confirmação afetou-me emocionalmente quando voltei ao jogo, depois de terminar a campanha, para terminar algumas tarefas que me haviam escapado. No momento de nomear o primeiro Calicorn, tal como havia feito horas antes, eu parei. O processo de escolher um nome era agora errado. Os nomes que o jogo me estava a dar não eram os mesmos. O Calicorn chama-se Chingu e eu não me esqueci.
Esta ideia de proteção e cuidado desenvolve-se suavemente ao longo dos vários capítulos de Herdling e a Okomotive fez um excelente trabalho em construir uma forte ligação entre os jogadores e os Calicorns. O desenho adorável das criaturas é apenas a ponta do icebergue e a relação próxima nasce da jogabilidade e dos desafios simples que vencemos lado a lado. Mesmo com uma dificuldade acessível, Herdling aproxima-nos dos Calicorns ao permitir que cuidemos deles. Podemos alimentá-los, fazer-lhes festas, limpar o seu pelo e cuidar deles quando são feridos. Na verdade, nós podemos perder os Calicorns durante a viagem e a morte não é tão invulgar como gostaríamos que fosse. A dicotomia entre cidade e natureza é uma constante durante a primeira hora do jogo, onde a frieza da cidade, as suas ruas vazias, os mecanismos velhos e abandonados contrastam com a origem fantástica das criaturas que guiamos. No entanto, os perigos estão sempre presentes. As vigas de metal pontiagudas, os comboios que passam a alta velocidade, são apenas alguns dos perigos humanos que perseguem os Calicorns na sua busca por liberdade.
Quando abandonamos a cidade e entramos na floresta, agora mais próximos do pico da montanha que serve como guia para a nossa aventura, os perigos transformam-se. A beleza e o perigo entrelaçam-se quanto mais ficamos embrenhados no mundo natural de Herdling e sentimos como os Calicorns são frágeis. Os pássaros gigantes podem levá-los para sempre num único voo e uma queda é quase sempre fatal se não formos rápidos. Isto cria em nós a ideia de que caminhar é um desafio, um longo e permanente desafio que contrasta com a beleza da montanha. Num momento, estamos a correr pelos pastos a debastar a relva e flores ao lado dos Calicorns, a absorver a liberdade em todo o seu esplendor, sem rédeas. Noutro momento, estamos a caminhar lentamente pelas bermas da montanha, a navegar através de caminhos naturais estreitos e a sentir a vertigem da altitude, com o gelo a quebrar-se sempre que passamos e o vento forte e gelado a empurrar os Calicorns para trás.
Seja na cidade ou na montanha, Herdling constrói consistentemente a sensação de pertença e deixa-nos mais próximos dos Calicorns sem precisar de artificialidades. É tudo percetível tatilmente através do comando e das reações das criaturas. As ruas da cidade, as fábricas, a floresta, os rios gelados e a cume da montanha são etapas num relacionamento pessoal que se torna mais real à medida que experienciamos este mundo belo, honesto, mas também hostil. O que se cria na nossa mente é a determinação que temos – precisamos! – em chegar ao habitat natural dos Calicorns para garantir que vivem em liberdade, longe de qualquer perigo.
Por mais defeitos que possa ter e por maiores que sejam as suas limitações mecânicas, revelando-se muito mais simples do que se antevia pelos trailers, Herdling é um soco emocional porque não se deixa ler totalmente. É um jogo mergulhado num enorme silêncio onde a palavra é abandonada em prol de uma ligação forte entre animal e ser humano, entre videojogo e jogador. A beleza natural de um mundo dividido entre a cidade e as montanhas, cujos segredos só são visíveis para quem quiser mesmo observar e compreender a linguagem da sua existência, é um contexto forte para um jogo que não se destaca através dos seus puzzles ou desafios mecânicos. O que importa é que temos de proteger os Calicorns e levá-los até ao outro lado da montanha, seja a correr pelos campos, a caminhar cautelosamente sob o olhar atento dos pássaros ou a deslizar pelos cenários gelados. Na verdade, o que importa é que paremos para respirar, abraçar os Calicorns e chamá-los pelos seus nomes. Todos eles têm um nome, mas nós não. Que isto fique com vocês.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela popagenda PR.