Digimon Survive chegou com pouca fanfarra e numa misturas de géneros inesperados, com um jogo cheio de alma para os fãs da saga.
Texto por: André Pereira
“Num dia o verão começou, a aventura mais inesperada dos nossos sete heróis, no mundo dos Digimon!”
Vão ter de me desculpar o entusiasmo, mas Digimon e este jogo tocaram-me sobremaneira. Longe vão os tempos nostálgicos do meu primeiro episódio na casa de uma tia em Viseu, ou de quando faltei às aulas para assistir à final da primeira série. Infelizmente, e apesar da minha adoração pela animação, nunca tive contacto com os jogos. Aliás, só recentemente é que comecei por Digimon Story Cyber Sleuth, lançado para a PS Vita e PS4 em 2016 no ocidente. No entanto, dizia estupidamente na altura e sem quaisquer provas, que Digimon tinha (para mim) a melhor mitologia, mas os piores jogos; enquanto Pokémon tinha a pior mitologia, mas melhores jogos. Pelo menos, jogos mais acessíveis e disponíveis tanto para fãs ferrenhos, como para casuais – como eu, que ainda guardo bonitas memórias das versões Yellow e Gold. Ou tinha os melhores jogos….
Ao longo dos anos, e do meu percurso como pessoa que escreve coisas sobre jogos, fui-me aborrecendo com a fórmula segura, aborrecida e estagnada da série Pokémon. Fórmula essa que continua a apostar na quantidade de criaturas novas a cada geração, descurando a qualidade dos seus títulos. O mais importante acaba por ser as vendas das suas versões duplas e da merchandise. O resto? Detalhes.
Vai daí, onde existe procura e necessidade, existe também uma oferta, e muitas foram as tentativas de colmatar as deficiências da série Pokémon – TemTem, Nexomon, Coromon, entre outros que desconheço ou não me recordo, que tentaram o seu lugar ao Sol, ficando aquém por não terem a força da marca gigante. Yokai Watch, Jade Cocoon, Monster Rancher, Shin Megami Tensei, Monster Hunter Stories e Dragon Quest Monsters conseguiam ser melhores alternativas e inovar, à sua maneira, a fórmula do colecionismo e do combate entre criaturas.
Depois, a série Digimon. E não vou ser tendencioso porque desconheço a qualidade dos jogos que nunca joguei, mas os Cyber Sleuth – mesmo com os seus problemas de ritmo e cenários monótonos, eram originais q.b. dentro do género. Sim, apanhávamos Digimon que treinávamos, evoluíamos e usávamos em combates entre si ou contra os vilões da trama, mas também eram JRPG por turnos tradicionais sobre uma equipa de investigação ou hackers envolvidos em conspirações que, só por acaso, metiam o lore das criaturas Digimon ao barulho. Podiam ser jogos banais, mas o facto de serem jogos Digimon tornavam-nos especiais.
Digimon Survive seguiu a mesma onda ao combinar o género das visual novels com o dos RPGs táticos. Se esta soma de palavras não faz sentido é porque é uma combinação pouco ortodoxa, admito. Mas se funcionou com o muito adorado, e por favor joguem, 13 Sentinels: Aegis Rim, porque não iria funcionar aqui? Bem, para mim, funcionou. Para vocês? Vai depender da vossa tolerância a paredes de texto e a combates táticos lentos. E se acabam por gostar da história porque um jogo deste género vive ou morre pela espada da sua narrativa. Convenhamos que não há muito por onde pegar aqui… e já Aegis Rim padecia do mesmo, se não gostassem da história fantástica, não iam ficar pelo combate…
Digimon Survive adiciona as visual novels ao RPG tático, numa combinação pouco ortodoxa, mas que funciona graças à sua narrativa.
Digimon Survive abre com um grupo de colegas prestes a partir numa viagem de estudo a uma região recentemente assolada por vários terremotos. Aí, conhecem dois irmãos e um misterioso professor que se encontra a investigar as ruínas de um templo ligado ao culto dos Kemonogami – que se pode traduzir levianamente como Criaturas divinas. Para apaziguar estas criaturas e obter a sua proteção, sacrificavam-se crianças. A certa altura, e depois da construção do mencionado templo, as pessoas começaram a desaparecer misteriosamente num fenómeno designado por “spirited away”, que é uma bonita forma de se dizer que desapareciam sem deixar rasto, mas fica mais bonito assim, e como título de um filme igualmente deslumbrante. Eventualmente acontece, e as nossas crianças lá desaparecem para o mundo dos Digimon.
Posso estar a dizer uma grande asneira, mas tenho vindo a apreciar a fluidez da mitologia dos Digimon. Ora são criaturas digitais, ou jogos de vídeo, ou de cartas. E neste Survive, estão mais próximas dos Yōkai – criaturas com o que seu quê de sobrenatural. Em bom português: espíritos, demónios, anjos. Já deu para reparar que a aura deste jogo é uma de sobrenatural e, apesar de seguir o fio narrativo cliché dos anime de salvar o mundo com o poder da amizade, com criaturas com digivoluções ridiculamente extravagantes e épicas, Digimon Survive optou por algo que apreciei ainda mais: pela abordagem ao género do terror, mais soturno e melancólico, explorando conceitos que não costumo ver no género das aventuras em mundos desconhecidos – isekai.
Por norma, quando os protagonistas são transportados para outros mundos, ou dimensões, vivem aventuras fantásticas e é tudo tão deslumbrante e… fácil? Aqui, as nossas personagens tinham de lidar com questões mais reais e mundanas, como arranjar onde dormir, racionar refeições ou até onde ir à casa de banho. Tudo isto enquanto lidavam com os seus próprios monstros interiores – um pouco à Lord of the Flies. E porque nem todas as personagens partilhavam da mesma resiliência mental, as cruzes que carregavam no mundo real, desde a pressão e a responsabilidade de mostrar valor à ansiedade afogada com piadas ou bullying, entre outros, eram mais pesadas.
E isso era desenvolvido com muita conversa em momentos mais lineares ou durante as fases Livres e de Exploração, que também serviam para cultivar a afinidade entre companheiros. Quanta mais empatia tivéssemos, mais hipóteses tinham de sobreviver. E este é o único spoiler mandatório para vos fazer jogar. Sim, as crianças podem e vão morrer nesta aventura. E não só elas, mas as suas criaturas adoráveis. E vocês vão morrer por dentro, como quando levei uma chapada de realidade. Quando aconteceu comigo, entendi logo que não estava a jogar um jogo feliz.
E rapidamente, Digimon Survive fez jus ao título, lembrando-me um Until Dawn, com a possibilidade de morrerem todas as personagens ou sobreviverem consoante as nossas escolhas. Houve momentos de tensão que me deixaram nervoso com o desenrolar da situação, mas estava viciado. Independentemente de acabar por gostar da soma de todas as partes, da história (e admito que esta teve alguns problemas) e do resto da jogabilidade (idem), já tinha valido a pena pela abordagem original.
Uma abordagem ao género do terror, mais soturno e melancólico, que nos dá uma chapada de realidade em momentos chave.
Ainda nas escolhas: estas não asseguravam apenas a sobrevivência dos protagonistas, mas também influenciavam as linhas de digivolução das criaturas. Recordam-se daquele episódio em que o Tai forçou o Agumon a digivoluir? Levando à aparição de um desenfreado SkullGreymon que não distinguia amigo de inimigo. Aqui é um pouco isso, com três rumos Moral, Harmony e Wrathful a ditar as afinidades do nosso Digimon, e a dos nossos companheiros. Isto se falarem o suficiente com todos.
Vendo bem, este Digimon Survive foi beber da primeira série Adventure e tudo está bem no mundo porque é das minhas favoritas pelo factor nostalgia, mas por cada ponto positivo que escrevi aqui, admito que gostava de ter tido mais liberdade para decidir o rumo da história, e não só os finais. Esta é fixa e linear e, em parte alguma, influenciamos o seu desenrolar até ao capítulo oitavo que abre para o nosso final – são vários, mas o “mais melhor bom” é só com a criançada toda vivinha da silva. Para tal, é preciso jogar duas vezes e não estou para aí virado. O jogo é muito bom, mas também muito maçudo de se jogar, especialmente numa consola de sala. Sem dúvida que a melhor alternativa será numa portátil, como se estivéssemos a ler um livro.
E quando não estamos a ler, estamos a explorar e a combater. Exploramos os cenários ao interagir com os vários pontos de interesse ou pistas que avançam a história, iniciam diálogos com os companheiros, criaturas Digimon ou vasculham os locais por itens. Por vezes, somos emboscados ao interagir com o sítio errado. Survive também faz bom uso do telemóvel do protagonista, como menu de opções e para identificar as falhas naquele mundo que surgem como estática e escondem memórias de outras pessoas que por lá andaram perdidas.
Já o combate tático é bastante básico, simples e repetitivo que só vinga pelos elementos Digimon. Não basta não haver variedade nos campos de batalha, como perdemos mais tempo a perseguir o adversário do que a atacar, mas são esses elementos que fazem tudo valer a pena. Poder falar com os Digimon em combate para os motivar e aumentar os seus atributos é um detalhe engraçado e imersivo da série animada, e fazê-los digivoluir para as formas que adoramos é fantástico para acabar logo com os adversários. E parece que o jogo sabe que o seu combate não é grande coisa, uma vez que podemos reduzir a dificuldade ou optar pelo modo automático que dispõe de várias estratégias.
A melhor forma de jogar Digimon Survive é numa consola portátil, como se estivéssemos a ler um livro.
Ah, sim! E de que forma é que “apanhamos” mais Digimon, perguntam vocês depois da minha ladainha? Ou estão escondidos no cenário enquanto exploramos ou durante as batalhas livres que servem para esse efeito. Assim que encontrarmos um Digimon que ainda não esteja na coleção, podemos falar com ele e responder a algumas perguntas. Se respondermos acertadamente (vão por mim, usem um guia…), temos mais chances de o convencer a juntar-se a nós. Depois, é só treinar, alimentá-lo com itens especiais ou equipá-lo com outros para conseguir a nossa digivolução predileta. Honestamente, tirando os Digimon bloqueados em certos momentos da história, podem usar quem bem quiserem – usem e abusem do fanservice.
Dada a natureza deste jogo, tive absolutamente zero problemas técnicos – mas caramba, que apanhei muitas gralhas ou erros de tradução. Para um jogo que teve muito tempo no limbo do sai, não sai, é adiado, não é adiado – os craques da indústria apelidam de “inferno de desenvolvimento”, mas que não soa nada bem em português…, saiu delicioso do forno com uns visuais e banda sonora lindíssima, com um tema capaz de mexer com os nossos cordelinhos emocionais.
Já me alonguei demasiado, mas deixo esta confissão: muita gente suspira que nunca recebeu uma carta para Hogwarts. Já eu, só gostava de ter tido um companheiro Digimon, mas enquanto tal não acontece, fico-me pelas séries e pelos jogos, que espero que continuem a sair, a arriscar e a deliciar.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Bandai Namco.