Crítica – The Holdovers (BFI London Film Festival 2023)

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The Holdovers deixou-me completamente incrédulo com o quão completo, intrigante, hilariante e emocionalmente poderoso se vai tornando a cada minuto que passa.

Durante a cobertura de qualquer festival de cinema, alterações à última hora são comuns devido ao cansaço acumulado ou a novas sessões repentinas para obras mais antecipadas. The Holdovers encontrava-se no meu plano diário original, mas caso tivesse conseguido ganhar um bilhete público sorteado para May December, muito provavelmente teria escolhido assistir a este último pela simples razão de me ter chamado mais à atenção. Eis então que Alexander Payne (Downsizing) e principalmente David Hemingson (Whiskey Cavalier) me fazem arrepender tremendamente de sequer ter pensado na hipótese de perder um dos melhores filmes do ano…

Não há sensação mais gratificante e genuinamente satisfatória do que sair de uma sala de cinema com expetativas completamente obliteradas, de queixo no chão e mãos vermelhas de tanto aplaudir. A premissa de The Holdovers em si não consegue gerar grande entusiasmo, pois aparenta ser apenas “mais um” conto de Natal sobre pessoas solitárias, peculiares e distanciadas de qualquer relação humana que, ao verem-se obrigadas a passar tempo juntas durante esta época festiva familiar, ajudam a curar-se uns aos outros dos problemas que marcaram ou continuam a marcar as suas vidas.

The Holdovers conta precisamente essa história, mas encontra-se bem longe de ser apenas “mais uma” obra cinematográfica. É verdade que não escapa totalmente às barreiras do género ou até à conclusão global que qualquer espetador mais experiente conseguirá prever com tempo de sobra. No entanto, o argumento de Hemingson transporta o filme de uma maneira verdadeiramente chocante, sendo uma daquelas narrativas que não só se torna cada vez mais completa e detalhada à medida que o tempo passa, como a conexão entre o público e as personagens se fortalece exponencialmente.

A menos de meio de The Holdovers, a sensação de familiaridade surge e é difícil de não cair na tentação de pensar que nada nos poderá apanhar de surpresa. Que Payne não sacará nenhum truque debaixo da manga, nem Hemingson conseguirá inventar algum tipo de revelação ou ponto narrativo de deixar uma audiência inteira boquiaberta. É aqui que entra o valor de choque, pois é inacreditável o quão profundo o argumento consegue ser, tanto com o enredo principal como com os arcos de personagem. O estudo sobre a necessidade vital de conexões humanas para curar as nossas feridas internas é nada menos que emocionalmente arrebatador.

O professor Paul Hunham (Paul Giamatti), estudante Angus Tully (Dominic Sessa) e cozinheira Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph) são os protagonistas imperfeitos de The Holdovers. Todos carregam traumas do passado que persistem pesadamente no presente e teimam em desaparecer para melhorar o futuro. Seja a morte de alguém que amam, pais divorciados, uma infância/adolescência difícil ou uma vida inteira atormentada por estes mesmos problemas mais outros tantos relacionados com bullying, saúde e carreira profissional, todos possuem algo em comum… ou algo que os outros desejavam ter.

Giamatti (Cinderella Man) interpreta um professor com inúmeros problemas de saúde menores, mas com impacto visual e olfativo para os que o rodeiam. É odiado por todos devido ao seu método de ensino rigoroso e a sua integridade extrema incomoda aqueles que olham para o “bem maior” da escola. Tem uma personalidade peculiar e um interesse acentuado em história antiga que, naturalmente, não é o tópico de conversa mais acessível para se criar amizades ou relações amorosas, levando a uma vida solitária e de muito julgamento externo.

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Sessa (que se estreia em longas-metragens) agarra o papel de um estudante deixado para trás no Natal por uma família que ignora o seu potencial. Inteligente e criativo, mas afetado brutalmente pela situação familiar e eventos do passado, tal como a personagem de Randolph. Esta perdeu o seu marido e filho, sendo obrigada a viver com um sentimento de luto permanente e poucas razões para olhar para um futuro feliz. Estas são as circunstâncias que rodeiam os protagonistas, mas The Holdovers demonstra de forma brilhante que não tem que os definir enquanto seres humanos.

Luto, depressão, afastamento familiar, solidão, refúgio alcoólico, raiva para suportar a tristeza… não são apenas temas atirados para a mesa e superficialmente abordados. Não tenho intenção de estragar a experiência a quem pretende ainda assistir a The Holdovers, mas é difícil de fazer justiça em palavras ao cuidado maravilhoso que Hemingson tem em levar o arco de cada personagem o mais longe possível, juntando as peças individuais partidas num puzzle conjunto divinal, assim ao equilíbrio de tom perfeito de Payne.

Sim, porque The Holdovers é igualmente uma das comédias mais hilariantes do ano. Brilhantemente espaçado por uma atmosfera sombria, fria e pouco colorida – acompanhada por uma banda sonora melancólica de Mark Orton (Nebraska) – é possível encontrar momentos de humor tão agradável como chocolate quente e prazer humano tão confortável como um cobertor num dia de Inverno. Até insultos baratos que provavelmente seriam repetições de one-liners ouvidos em mil e um filmes anteriores são incrivelmente criativos e memoráveis, causando gargalhadas bem audíveis. Curiosamente, é o professor que recebe as melhores linhas de diálogo nesta área.

Acima de tudo, a humanidade que emana destes três protagonistas é a caraterística que melhor define a obra. Em fase alguma do filme olhei para Hunham, Tully e Lamb como personagens fictícias. Representam milhares de pessoas pelo mundo fora com um realismo puro desprovido de qualquer amarra cinematográfica. Sejam conversas inspiradoras sobre temas sensíveis ou comentários sarcásticos ridículos, The Holdovers é sempre verdadeiro, genuíno… humano. E, para isto, contam muito as prestações do elenco, todas merecedoras de imensas nomeações.

Apesar de demorar o seu tempo no segundo ato, não tenho problemas em afirmar que The Holdovers tornar-se-á facilmente no próximo grande clássico de Natal, visto por famílias de todas as origens. Pessoalmente, é raríssimo partilhar este tipo de frases-feitas para atingir mais visualizações ou o que quer que guie as redes sociais hoje em dia. Mas a verdade é que Payne e Hemingson construíram um filme que merece essas reações efusivas e aclamadoras de sucesso, tal como as lágrimas induzidas pelo terceiro ato extremamente emotivo comprovam.

VEREDITO

The Holdovers deixou-me completamente incrédulo com o quão completo, intrigante, hilariante e emocionalmente poderoso se vai tornando a cada minuto que passa. Um argumento de David Hemingson surpreendentemente perfeito, exponencialmente atacando o coração dos espetadores através de um estudo verdadeiramente profundo e agridoce sobre a necessidade vital de conexão humana. Protagonistas retratados brilhantemente como pessoas reais e interpretados de forma soberba por um elenco merecedor de campanha séria para a temporada de prémios. Adicione-se um balanço tonal notável e execução exímia de Alexander Payne, e eis que surge um novo clássico de Natal.

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