The Deliverance contém potencial narrativo significativo, mas perde-se numa tentativa falhada de equilibrar o drama familiar sério com o horror sobrenatural absurdo.
Há cerca de duas semanas atrás, a Netflix lançou mais um filme original intitulado The Union. Referi na respetiva crítica que a obra exemplificava as piores caraterísticas normalmente associadas ao termo “Netflix flick”, cuja conotação é bastante negativa, pelo menos no mundo da Internet. O problema não é exclusivo a um único género, sendo que horror também sofre frequentemente dos mesmos sintomas formulaicos. Logo, as expetativas não eram altas para The Deliverance, apesar do excelente elenco protagonizado por Andra Day – trabalhou com o realizador Lee Daniels em The United States vs. Billie Holiday – e Glenn Close (Fatal Attraction).
Ebony Jackson (Day), uma mãe solteira com dificuldades em enfrentar os seus demónios pessoais, muda-se com os seus três filhos de forma a começar uma nova vida. Mas quando ocorrências estranhas dentro da casa começam a levantar suspeitas nos Serviços de Proteção de Menores e ameaçam o equilibro da família, Ebony rapidamente encontra-se numa batalha pela sua vida e pelas almas das suas crianças. Um argumento redigido por David Coggeshall (Orphan: First Kill) e Elijah Bynum (Magazine Dreams) que relembra inúmeras histórias de horror que seguem uma premissa narrativa incrivelmente semelhante.
O que distingue estas obras umas das outras? O que poderá fazer The Deliverance para ultrapassar os clichés do género e não cair na previsibilidade aborrecida das fórmulas habituais? Tecnicismos podem ajudar, mas para que uma obra se torne memorável, é necessário construir personagens interessantes e rodeá-las de temas genuinamente instigantes de forma a cativar os espetadores que procuram algo minimamente diferente dos outros milhares de filmes que repetem exatamente os mesmos pontos de enredo e de desenvolvimento de personagem.
Inicialmente, The Deliverance promete. Através de prestações muito fortes de Day e Close – independentemente das linhas de diálogo ou ações, executam tudo de forma extremamente convincente – Daniels apresenta uma família complexa com imensos problemas disfuncionais, bem antes de qualquer situação sobrenatural os atingir. Desde violência doméstica a abuso infantil, passando pelo tópico importante e sensível de famílias necessitadas e as suas dinâmicas, assim como as injustiças cometidas por julgamentos discriminatórios de agentes sociais, existem muitos assuntos e mensagens essenciais que o filme tenta explorar e transmitir.
Infelizmente, à medida que The Deliverance vai mergulhando na absurdez exponencial dos seus elementos sobrenaturais, todo o seu potencial vai desvanecendo. Daniels tenta o seu máximo para evitar usar o termo “exorcismo”, mas não consegue fugir às barreiras narrativas limitativas deste tipo de história de horror, nem aceitá-lo como algo passível de entretenimento, sendo que o filme peca imenso por falta de uma atmosfera imersiva e sequências mais impactantes. O terceiro ato torna-se de tal forma confuso e insano que chega a ser acidentalmente engraçado devido a linhas de diálogo hilariantes, um abuso de clichés forçados e a efeitos visuais mal conseguidos.
The Deliverance não consegue envolver o público num ambiente de suspense, nem conquistar os espetadores mais “simplistas” com cenas baratas com jumpscares eficientes ou sequências minimamente assustadoras. Daniels começa com um drama familiar complexo e honesto e termina com um thriller sobrenatural exagerado de tal maneira que remove a seriedade dos temas abordados anteriormente, levando a momentos de riso que não deviam, de todo, ser minimamente divertidos.
VEREDITO
The Deliverance contém potencial narrativo significativo, mas perde-se numa tentativa falhada de equilibrar o drama familiar sério com o horror sobrenatural absurdo. O que poderia ter sido um filme tematicamente poderoso acaba por transformar-se numa experiência desajeitada e, por vezes, involuntariamente cómica. Apesar das prestações notáveis de Andra Day e Glenn Close, Lee Daniels falha em construir uma atmosfera imersiva e em manter a coesão narrativa necessária para criar uma história memorável, deixando a sensação de que o seu impacto poderia ter sido muito maior se tivesse optado por uma abordagem mais contida e menos formulaica.