The Caine Mutiny Court-Martial pode não ser a melhor despedida possível para William Friedkin, mas a sessão de tribunal focada numa só localização é a mais pura forma de cinema.
Não foi muito antes do início do Festival de Veneza que William Friedkin, cineasta com grande impacto nas décadas de 70/80 ao lançar obras como The French Connection e The Exorcist, infelizmente faleceu. The Caine Mutiny Court-Martial é o último filme realizado e escrito pelo próprio, numa nova adaptação da peça de teatro de 1953 de mesmo nome – a primeira adaptação surgiu em 1954 por Edward Dmytryk e recebeu sete nomeações para Óscares – também esta adaptada do livro original de 1951. Expetativas algo incertas, apenas com um desejo pessoal que não fosse uma despedida desapontante para Friedkin.
Apesar de estar longe de ser uma obra-prima, The Caine Mutiny Court-Martial é, de facto, um “adeus” satisfatório à dicotomia entre os conceitos “bom” e “mau” de Friedkin, tema profundamente estudado ao longo da sua filmografia. De todos os estilos de filmar e contar histórias, a contenção da narrativa numa só localização durante todo o tempo de execução é, sem dúvidas, uma das que mais me dá prazer de assistir. É o maior teste que qualquer cineasta pode enfrentar na sua carreira, pois não consegue esconder-se atrás de efeitos visuais assoberbantes, elementos do fantástico fascinantes ou sequências de ação carregadas de adrenalina.
Em The Caine Mutiny Court-Martial, a ação é exclusivamente dependente de palavras proferidas durante uma sessão de tribunal que ocupa praticamente os 109 minutos por inteiro. Greenwald (Jason Clarke) é advogado de defesa de Maryk (Jake Lacy) ao passo que Challee (Monica Raymund) lidera a acusação num julgamento sobre os eventos que levaram à destituição de Queeg (Kiefer Sutherland) como capitão do navio USS Caine por parte de Maryk, sendo que a grande questão passa por perceber se foi um verdadeiro motim ou se Maryk tem, de facto, a lei do seu lado para tal autoridade de substituição.
As prestações soberbas de todo o elenco são essenciais para o sucesso da obra. Quando a câmara não se pode focar em nada a não ser nas personagens presentes numa sala isolada, os atores passam a ser simultaneamente o isqueiro e o fogo da narrativa. Clarke (Oppenheimer), Lacy (Significant Other), Raymund (Bros) e Lance Reddick (John Wick: Chapter 4) merecem imensos elogios, mas Sutherland (They Cloned Tyrone) é quem consegue incorporar a tal dicotomia mencionada acima no seu personagem. The Caine Mutiny Court-Martial é um filme propositadamente ambíguo na sua definição do que é correto ou errado do ponto de vista moral e ético, mas não deixa de colocar todos as evidências e detalhes em cima da mesa para os espetadores tirarem as suas próprias conclusões.
Queeg representa na perfeição o tema principal que Friedkin explorou tão bem ao longo da sua vida cinematográfica. Um personagem que deu tudo de si ao seu país, mas que, com o passar dos anos, vê a sua estabilidade mental e consequentemente a sua competência enquanto capitão de um navio colocadas em causa. A aflição, ansiedade e receio com que Queeg responde aos interrogatórios realça bem os dilemas interiores que o próprio tenta confrontar, o que deixou-me com bastante pena e até tristeza por alguém tão dedicado e com tanto carinho pelo que fez ao longo de 21 anos estar a ser julgado da maneira que Greenwald conduz a sua defesa.
Clarke interpreta igualmente um exemplo excelente de um personagem que, desde que aceitou relutantemente a “missão” de defender Maryk, sabia que havia apenas uma forma de poder vencer o caso, mas isso levaria a tomar uma posição agressiva com a qual o próprio não se sente confortável. É através das interações entre Greenwald e Queeg que The Caine Mutiny Court-Martial se torna incrivelmente interessante e bastante tenso, fazendo voar todos os minutos – em termos de sensação, foi das visualizações mais rápidas do festival.
No entanto, é também através do testemunho de Queeg que surge uma situação delicada e talvez difícil de explicar sem cair na armadilha de soar presunçoso. The Caine Mutiny Court-Martial tem alguns momentos de humor, a maioria provenientes de uma sequência com Urban (Gabe Kessler), um jovem inexperiente que tinha acabado de começar no USS Caine e que provoca gargalhadas bem audíveis e necessárias para aliviar o tom constantemente sério e dramático do tribunal, para além de quebrar a redundância e repetição estrutural do enredo durante a primeira metade da obra.
Dito isto, não creio Friedkin tenha tentado inserir muito mais cenas cómicas, muito menos quando o fragilizado Queeg se encontra a testemunhar. Durante a minha sessão de cinema, soltaram-se alguns risos em momentos onde senti a tal pena tremenda pelo capitão e a sua dificuldade em lidar com os seus tremeres, ânsia e falta de memória. Pessoalmente, considero alguma falta de respeito por pessoas que vivem com estes problemas com mais ou menos impacto nas suas vidas, ainda mais quando estas viram alvos de gozo por simplesmente cederem à natureza da sua idade.
A leitura completamente oposta por parte de alguns membros da audiência não é, de todo, apenas culpa dos mesmos, pois Friedkin também não deixa claro a sua intenção com estes momentos em particular. The Caine Mutiny Court-Martial aborda com cuidado os temas sensíveis em questão, mas alguma falta de balanço tonal danifica essa consistência temática. Naturalmente, os processos dentro do tribunal tornam-se pesadamente repetitivos e, por vezes, demasiado focados em vocabulário técnico específico da marinha, especialmente durante o início da obra que demora a “meter a segunda”.
O diálogo é executado de forma elegante por parte do elenco, com dicção clara e, acima de tudo, pausas importantes que estabelecem um ritmo cativante, mesmo quando o momentum da sessão se encontra mais baixo. O final de The Caine Mutiny Court-Martial traz uma mensagem final que não podia faltar e não podia ter ficado mais feliz por Clarke a entregar de forma tão poderosa, mas a cena em si e as revelações que traz surgem sem qualquer build-up, dando até a sensação estranha de ter sido uma adição de última hora quando se sabe de antemão que não foi assim.
VEREDITO
The Caine Mutiny Court-Martial pode não ser a melhor despedida possível para William Friedkin, mas a sessão de tribunal focada numa só localização é a mais pura forma de cinema, apresentando níveis de tensão satisfatórios, assim como diálogo rápido e intenso elevado por prestações excecionais de todo o elenco, nomeadamente Kiefer Sutherland. Uma visualização que passa a correr, apesar da estrutura repetitiva e previsivelmente ambígua que nem sempre encaixa na exploração da dicotomia entre o “bem” e o “mal”. Cativante de início ao fim.