Crítica – The Book of Clarence (BFI London Film Festival 2023)

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The Book of Clarence atesta Jeymes Samuel como um faz-tudo do cinema.

Existem imensos artistas pelo mundo fora. Pessoas com talento acima da média numa área específica da arte praticada. Menos são aqueles que conseguem transpor o seu talento para os vários departamentos de, por exemplo, cinema e ainda menos para múltiplas artes. Jeymes Samuel pertence a essa minoria impressionante e, após a sua estreia como realizador em The Harder They Fall, aventura-se agora na sua segunda longa-metragem, The Book of Clarence, uma sátira bíblica misturada com outros géneros e tons que merece ser vista no grande ecrã!

Samuel referiu, e bem, que westerns e épicos bíblicos eram os blockbusters do passado. O realizador-argumentista-produtor-compositor – veremos se nos próximos anos não angaria mais um título – cresceu com os mesmos e, portanto, faz todo o sentido que os primeiros filmes da sua carreira sejam provenientes destes géneros. No entanto, tanto The Harder They Fall como The Book of Clarence distinguem-se do resto das narrativas mais formulaicas. O estilo visual único e escolhas musicais contemporâneas de Samuel marcam ambos os filmes, mas é o guião que se destaca claramente neste último. 

Repleto de parábolas e analogias instigantes com as histórias e personagens mais conhecidas da Bíblia, The Book of Clarence é daquelas obras que “mordem”. Desde o elenco maioritariamente negro – que hilariantemente irritará um certo tipo de espetadores – à reconstrução total ou construção propositadamente literal de eventos que o mundo considera históricos e verdadeiros – milagres de Jesus Cristo, o seu (re)nascimento, origem e impacto na sociedade – Samuel demonstra uma criatividade narrativa notável e uma atenção ao detalhe fascinante. Melhor que as conclusões de cada sequência satírica são os build-ups extremamente cativantes e frequentemente provocadores de gargalhadas bem audíveis.

O público geral recebe entretenimento puro durante todo o tempo de execução, mas The Book of Clarence não existe apenas para divertir quem vem à procura de um serão agradável no cinema. No fundo, Samuel explora profundamente o arco do seu protagonista, Clarence (LaKeith Stanfield), numa típica jornada de auto-descoberta. No caso de Clarence, encontramos um personagem ambicioso e sonhador, mas sem a confiança e, principalmente, fé para acreditar que realmente consegue atingir o que tanto deseja para si, assim como para a sua família e amigos.

Numa batalha surpreendentemente pessoal entre conhecimento e fé, The Book of Clarence transmite, acima de tudo, uma mensagem de que nenhum conceito é mais poderoso ou importante que o outro, mas sim complementares e essenciais para melhorarmos enquanto seres humanos capazes e empáticos. Não assisti a todos os filmes em que Stanfield (Judas and the Black Messiah) participou ao longo da sua carreira, mas não tenho grandes dúvidas de que esta será uma das prestações mais completas e complexas que o ator alguma vez protagonizou.

Num duplo papel que não vou obviamente abordar em demasia, Stanfield navega entre a complicada mistura tonal brilhantemente, demonstrando não só um timing cómico genial, mas uma capacidade impressionante de se transformar e entregar uma conversa dramática pesada sobre temas como honra, justiça e hipocrisia. Um ator capaz de liderar vários géneros… é pena que não lhe sejam oferecidas mais oportunidades desta magnitude. Dito isto, Stanfield é acompanhado de um elenco secundário igualmente merecedor de inúmeros elogios.

RJ Cyler (Emergency) e Omar Sy (Jurassic World Dominion) interpretam os compinchas do protagonista, contribuindo significativamente para a camada cómica da obra, especialmente o primeiro com as suas expressões faciais maravilhosas. Anna Diop (Nanny) traz romance para o enredo, Caleb McLaughlin (Stranger Things) continua a surpreender com papéis mais dramáticos, ao passo que James McAvoy (It Chapter Two) e Benedict Cumberbatch (The Power of the Dog) possuem pouco, mas extraordinário tempo de ecrã. Os últimos dois estão ligados a personagens com mais impacto no final da obra, pelo que me vou remeter ao silêncio total.

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As filmagens em local favorecem a atmosfera necessária para contos bíblicos épicos, sendo que a cinematografia de Rob Hardy (Mission: Impossible – Fallout) aproveita ao máximo a paisagem de Matera, Itália – cidade que The Book of Clarence escolheu para representar Jerusalém – e os efeitos visuais complementares aos pensamentos das personagens, assim como aos pontos de enredo. A banda sonora de Samuel destaca-se mais, mesmo assim. Usar hip-hop numa obra passada em 29 AD é, no mínimo, estranho e difícil de imaginar como é possível encaixar nesta época…

A ideia não passa por tentar inserir música contemporânea no passado de forma a fazer sentido, mas precisamente para contrapor esse tempo, mais uma vez, de forma bem hilariante. Como seria de esperar, com tantos tons e géneros distintos, The Book of Clarence peca por maior equilíbrio, principalmente nas transições abruptas entre as várias linhas de enredo, cada uma representando um subgénero diferente. O problema não está nos momentos em si, isto é, as piadas não deixam de ser engraçadas, nem as sequências dramáticas perdem peso emocional.

Mas a constante troca de tons causa uma sensação discordante distrativa. Seja através das escolhas musicais, estilo visual ou a inserção de uma pequena fala mais leve ou cómica em alturas mais pesadas, o maior atributo de The Book of Clarence é algo inconsistente. O clímax da obra é um exemplo perfeito para comprovar este problema. Samuel recria uma sequência excruciantemente longa, angustiante e dolorosa de se assistir, colocando a audiência até então altamente entretida em completo silêncio, enfiada totalmente nos seus assentos sem se mexer. A colocação de uma piada – eficiente por si só – já na fase final desta última cena cria o tal sentimento de confusão tonal que marca uma boa porção do filme.

Pessoalmente, existe mais um pormenor narrativo que centenas de outros filmes já aplicaram no passado e que admito continuar a ter imensas dificuldades em compreender o seu uso. The Book of Clarence é uma daquelas obras que inicia com um plano de abertura retratando o que vai acontecer mais à frente durante o decorrer do filme, habitualmente no terceiro ato. Até hoje, os únicos casos em que esta decisão criativa é minimamente justificada são obras que acabam por, de alguma forma, enganar os espetadores, mexendo com as suas expetativas ao atirar uma imagem inicial sem contexto, forçando uma conclusão precipitada que altera com o decorrer do tempo.

Não é o caso de The Book of Clarence, infelizmente. Não só confirma que o final vai, de facto, abordar uma sequência que qualquer espetador antecipará após os primeiros minutos do filme, mas mostra uma personagem que defendo firmemente que nunca podia ter estado presente nesta mesma abertura. Só não arruina por completo uma revelação tardia de deixar todos boquiabertos porque se mantém incrivelmente hilariante. Sinceramente, se me couber mostrar o filme a alguém no futuro, passarei à frente os primeiros trinta segundos que em nada acrescentam à história e apenas prejudicam a experiência.

VEREDITO

The Book of Clarence atesta Jeymes Samuel como um faz-tudo do cinema. Seja através da sua realização estilizada, argumento satírico instigante ou banda sonora corajosa, o cineasta volta a entregar uma mescla de géneros e tons altamente original, genuinamente hilariante e uma exploração espiritual cativante do protagonista. Volta igualmente a ter a sorte de possuir um elenco absolutamente soberbo com LaKeith Stanfield a comandar as tropas com uma prestação muito completa. Peca por falta de maior balanço tonal e uma maior imprevisibilidade, sendo esta destruída por uma sequência de abertura desnecessária. Feliz por saber que terá estreia no grande ecrã, onde recomendo a todos experienciarem este entretenimento garantido.

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