Crítica – Suncoast

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Suncoast é uma história profundamente comovente e tematicamente importante, redigida com um cuidado brilhante ao abordar tópicos sensíveis como o luto inevitável, a hipocrisia de debates éticos e o valor real da vida humana.

Após quatro anos consecutivos a cobrir o Sundance Film Festival, este janeiro de 2024 foi de ‘descanso’. Dito isto, a atenção e interesse pelas inúmeras obras submetidas para o festival, assim como o surgimento de novas estrelas na frente e atrás do ecrã, mantiveram-se intactos. Suncoast foi dos filmes mais bem recebidos e Nico Parker (The Last of Us) conquistou o prémio de “Breakthrough Performance”, logo as expetativas encontravam-se mais altas que o normal, apesar de, mais uma vez, iniciar a visualização sem saber nada sobre a narrativa.

Suncoast conta a história de Doris (Parker), uma adolescente tímida com problemas familiares complicados. Ao irmão foi-lhe diagnosticado um cancro cerebral, pelo que qualquer dia poderá ser o seu último dia, ao passo que a mãe, Kristine (Laura Linney), desvia toda a sua atenção para o seu filho, levando a um afastamento gradual com Doris. A cineasta Laura Chinn pega em fórmulas básicas de narrativas coming-of-age e transforma-as num estudo cuidadoso e tremendamente instigante sobre vários temas sensíveis sem nunca cair na armadilha da exploração para bem do entretenimento barato.

À data desta crítica, Suncoast é o meu filme favorito do ano. A estreia em longas-metragens de Chinn é um sucesso inegável e muito deste sucesso deve-se ao facto da obra ser abertamente uma semi-autobiografia da realizadora-argumentista. Um pormenor que faz todo o sentido, tal o detalhe íntimo nas conversas e interações genuínas entre as personagens principais, nomeadamente entre a mãe, filha e Paul (Woody Harrelson), um desconhecido presente num protesto em frente ao mesmo hospício onde se encontra internado o irmão de Doris, que cria uma ligação surpreendente com a jovem protagonista.

O argumento de Chinn é inteligentemente estruturado e, acima de tudo, respeitoso com todos os tópicos que aborda. A cineasta nunca cai no erro de assumir o que é certo ou errado, oferecendo os argumentos válidos dos lados opostos em qualquer discussão temática. Seja a falta de atenção de uma mãe solteira para com um dos filhos devido à preocupação extrema com outro, seja a dificuldade de uma adolescente em criar amizades e ser ela própria, seja a brutalidade de se viver com a expetativa de um luto inevitável, seja a responsabilidade extra colocada em cima de uma jovem que apenas deseja ter uma ‘adolescência normal’ ou o debate sobre se todas as vidas são preciosas, Suncoast é uma verdadeira montanha-russa de emoções e dilemas morais e éticos impossíveis de se responderem facilmente.

Aliás, um dos diálogos que mais permaneceu na minha memória é precisamente sobre a hipocrisia de discussões éticas. Desde aulas na escola a protestos públicos, a ideia de que é possível colocar ‘em papel’ o que se deve fazer em dilemas de vida tão pessoais como, por exemplo, terminar ou não a vida de alguém que se ama, é absolutamente estapafúrdia. Suncoast transmite uma mensagem simples, mas impactante, de que todos podemos opinar e partilhar aquilo que imaginamos que seria a nossa postura e resposta, mas apenas quando estes momentos trágicos nos acontecem é que realmente podemos, de facto, lidar com as emoções verdadeiras de algo humanamente devastador.

Chinn redige diálogos com uma autenticidade notável, sendo que o elenco consegue elevá-los ainda mais com prestações igualmente genuínas. Desconheço a concorrência que Parker teve no festival, mas seria preciso uma performance digna de Óscar para ultrapassar aquela que facilmente se torna no melhor desempenho de carreira da atriz britânica. Os olhos expressivos de Parker oferecem a Doris uma aura de pura bondade, mesmo quando a personagem toma decisões que a própria rapidamente se arrepende. A subtileza com que Parker lida com o turbilhão de emoções acumuladas da protagonista é vista em atrizes com décadas de experiência.

E falando de atrizes com experiência, Linney demonstra em Suncoast o porquê de ser alguém com três nomeações para Óscar de Melhor Atriz (You Can Count on Me, The Savages) e Melhor Atriz Secundária (Kinsey). Muitos falarão de um monólogo digno de ser aquele clipe usado para as cerimónias de prémios quando apresentam os nomeados, mas é a exibição consistente de uma mãe a tentar de tudo para segurar cem fios de problemas com as suas duas mãos que me deixou arrebatado. Sejam as interações com Parker, com o seu filho paralisado ou com uma consultante do hospício, Linney interpreta uma Kristine complexa de uma maneira quase hipnotizante.

Linney e Parker criam uma ligação tão forte entre as suas personagens apesar do afastamento gradual ao longo do filme. O terceiro ato de Suncoast é de deixar qualquer espetador comovido e a humanidade presente nas performances das atrizes é um dos principais indutores das lágrimas inevitáveis, apesar da previsibilidade narrativa da obra. Harrelson (Triangle of Sadness) merece os mesmos elogios ao representar uma espécie de consciência humana para Parker, comprovando de forma bem palpável o cuidado de Chinn com não dar nenhuma solução teórica para perguntas sem resposta.

A banda sonora de Este Haim e Christopher Stracey poderá passar despercebida a alguns, mas o clímax perfeito de Suncoast beneficia imenso do toque subtil da música dos compositores. Chinn não deixa nada escapar ao seu controlo, conseguindo inclusive um balanço tonal impecável entre os momentos mais dramáticos da família e as sequências mais divertidas com os adolescentes. A lente otimista e positiva com que termina a obra é a cereja no topo de um bolo de várias camadas intricadas merecedoras de múltiplas visualizações.

VEREDITO

Suncoast é uma história profundamente comovente e tematicamente importante, redigida com um cuidado brilhante ao abordar tópicos sensíveis como o luto inevitável, a hipocrisia de debates éticos e o valor real da vida humana. Uma narrativa coming-of-age que transforma fórmulas básicas num estudo complexo e merecedor da atenção de todos os espetadores. Laura Linney e Nico Parker entregam prestações tão humanamente autênticas que será difícil aguentar as lágrimas. É o melhor filme de 2024 até à data.

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1 Comentário

  1. Foi um dos filmes que mais me quebrou emocionalmente, principalmente por como a mãe trata a filha, menosprezando-a.
    E apesar de conter dois grandes antigos atores, eles mal contracenam entre si. Mas ainda assim é um bom filme.

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