Crítica – Poor Things (Venice International Film Festival 2023)

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Poor Things não só é o melhor filme do festival, como o melhor do ano até ao momento, assim como o favorito pessoal da carreira de Yorgos Lanthimos.

Yorgos Lanthimos conquistou-me em 2015 com The Lobster e, a partir daí, qualquer ano com um novo lançamento do cineasta grego tornava-se instantaneamente mais interessante. O seu estilo único de contar histórias destaca-o como um dos realizadores mais fascinantes da última década, pelo que Poor Things é expectavelmente uma das obras mais antecipados do ano. Emma Stone volta a trabalhar com Lanthimos depois de The Favourite, assim como Tony McNamara (argumentista), Robbie Ryan (diretor de fotografia) e o seu editor de sempre, Jerskin Fendrix.

Ao contrário das narrativas complexas do cineasta, vou direto ao que muitos desejam saber: sim, Poor Things é um dos melhores filmes do ano e, pessoalmente, não há mesmo melhor até ao momento. São 141 minutos de pura perfeição técnica a acompanhar uma jornada de auto-descoberta da protagonista Bella Baxter (Stone) através de um ambiente surrealista com um balanço exímio entre comédia extremamente eficaz e comentário social que convida à reflexão. É genuinamente difícil escolher por onde começar, logo porque não pelo início?

Bella, ressuscitada por Godwin Baxter (Willem Dafoe) por vias pouco convencionais, inicia a obra como uma mulher infantil e ingénua, com dificuldades claras em perceber e executar os comportamentos mais básicos do ser humano, assim como da sociedade em que se insere. À medida que vai evoluindo a uma velocidade surpreendente, a protagonista ganha curiosidade pelo exterior das várias paredes da casa tornada prisão da sua liberdade, decidindo explorar o resto da Europa com um mulherengo aventuroso, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo), e aprendendo várias lições de vida e caráter pelo caminho, transformando-se exponencialmente numa mulher em pleno controlo do seu presente e futuro.

Poor Things possui inúmeras camadas narrativas, cada uma merecedora de um artigo de análise profundo. Pessoalmente, destaco a escrita e execução brilhantes da perspetiva totalmente analítica e empírica com que Bella lida com todos os obstáculos, dilemas e ações humanas normalizadas pela sociedade. A protagonista reage, de forma hilariantemente séria e duvidosa, a tudo o que peca por falta de sentido verdadeiramente lógico: regras de etiqueta, códigos de conduta, maneiras de vestir, como falar para determinadas pessoas, atitudes e conclusões distintas para situações idênticas devido ao género e raça dos envolvidos ou a laços familiares existentes.

Não importa se Lanthimos pega num preconceito ou estereótipo conhecido – um homem que tenha tido muitas mulheres é motivo de orgulho e cobiça, sendo que o contrário é alvo de gozo e ofensa – ou em algo ridiculamente simples do dia-a-dia ao qual nunca demos sequer tempo para ponderar – se a comida que comemos não presta, porque a engolimos? – o cineasta consegue desenvolver alegorias, analogias e todo o tipo de desenvolvimento temático para transmitir mensagens fascinantes sobre o mundo em que vivemos, assim como as suas ideologias variadas.

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Algumas injustiças e desigualdades do nosso mundo são impossíveis de combater individualmente e Poor Things, mais uma vez, consegue um balanço notável entre problemas mundiais que afetam todos nós e obstáculos que nós próprios criamos para dificultar o nosso prazer de viver. A obra divide-se em várias secções que podem ser delineadas pelas localizações escolhidas para cada ponto de enredo, mas também pela evolução de Bella enquanto mulher e ser humana, demonstrada sem quaisquer restrições ou “panos quentes” sobre assuntos mais sensíveis.

Desde a “infância” até à emancipação e consequente independência e liberdade de Bella, assim como o seu despertar sexual que se torna gradualmente numa componente narrativa essencial para o arco principal da sua história, Poor Things não tenta ser pretensioso nem inteligente, muito pelo contrário, as suas mensagens são claras, diretas e visíveis a olho nu. O argumento complexo de McNamara é, sem dúvidas, uma riqueza temática para explorar em múltiplas visualizações, mas os diálogos têm tanto de provocante como de comédia.

Não deixem os parágrafos acima enganar-vos: Poor Things é dos poucos filmes nos últimos anos que me levaram lágrimas aos olhos de tanto rir. O material é excelente, mas as prestações de todo o elenco são divinais. Dafoe – com um trabalho de maquilhagem soberbo a transformar a sua cara numa espécie de Dr. Frankenstein – é simplesmente Dafoe, um ator que não consegue entregar uma única linha de diálogo sem algum tipo de impacto nos espetadores, seja para nos deixar em choque com a sua capacidade impressionante em executar falas longas extremamente complexas ou um simples linha arrebatadora. Godwin – ou God, como lhe chama Bella – atravessa um arco mais formulaico sobre um homem guiado pela ciência que gradualmente percebe que sentimentos humanos são inevitáveis, mas é um personagem crucial para o desenrolar do filme.

Ruffalo parece genuinamente estar a divertir-se como nunca com o seu papel altamente expressivo, reativo e contraditório. Tanto se vê Duncan como um homem de respeito, conquistador e dono do seu destino, como uma peça frágil que se parte em pedaços cada vez mais pequenos à medida que a sua identidade é colocada à prova. As suas interações com Stone são memoráveis por mil e uma razões que, com certeza, vão agradar a topo o tipo de espetador. Ramy Youssef também merece elogios como Max McCandles, um fã dos métodos de Godwin e uma espécie de antónimo de Duncan.

No entanto, não há volta a dar: Emma Stone tem tudo para arrecadar nomeações e prémios em dezenas de cerimónias. É verdadeiramente impossível encontrar uma área em Poor Things que a atriz não tenha explorado ao mais ínfimo detalhe. Com uma dedicação e compromisso total, Stone demonstra novamente a sua caraterística principal de forma sublime: uma expressividade espetacular inigualável que tanto eleva a intensidade de uma cena mais dramática como é o gatilho cómico ou até a punchline de uma das dezenas de momentos genuinamente hilariantes.

Tecnicamente, Poor Things entrega precisamente aquilo que se esperava. Uma masterclass em todos os departamentos que constituem uma produção cinematográfica. Os filmes de Lanthimos são daqueles que mesmo espetadores menos frequentes do grande ecrã conseguem reconhecer o impacto evidente de áreas como o guarda-roupa, cenografia, produção artística, banda sonora, cinematografia e montagem. Sinceramente, qualquer uma pode ser escolhida como o destaque da obra, visto que todas adicionam uma camada extra de interesse, intriga e, ultimamente, entretenimento.

Pessoalmente, a mistura de sets construídos com efeitos visuais deixou-me estupefacto, ainda mais quando a capital do meu país de origem recebe uma sequência de quase meia hora, onde nem os estereótipos da cultura Portuguesa escapam ao tratamento fantástico de Lanthimos e McNamara. Desde o elétrico de Lisboa ao pastel de nata, não esquecendo o fado de Carminho e até as asneiras que usamos como pontuação frásica, Poor Things conseguiu colocar-me a rir sozinho na Sala Grande de Veneza num par de momentos únicos para um sortudo português como eu.

Apenas tenho um único problema menor com a obra, relativamente ao personagem de Christopher Abbott. No meio de tantos arcos profundos e detalhados, Abbott surge com um personagem básico e banal numa sequência previsível e algo desapontante, tendo em conta a colocação da mesma no filme. Poor Things é uma obra longa que justifica a sua duração, mas este ponto de enredo em particular parece mais um after-thought, apesar de responder a uma pergunta obrigatória criada pela própria premissa do filme.

VEREDITO

Poor Things não só é o melhor filme do festival, como o melhor do ano até ao momento, assim como o favorito pessoal da carreira de Yorgos Lanthimos. Um argumento cheio de substância brilhantemente provocante e altamente hilariante focado numa jornada de auto-descoberta fascinante preenchida por camadas tematicamente ricas. Prestações estupendas por parte de todo o elenco, mas Emma Stone é uma força de expressividade impressionante que deverá arrecadar muitos prémios. Uma masterclass técnica por parte de todos os departamentos coloca a cereja no topo do bolo praticamente perfeito.

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