Crítica – Maestro (Venice International Film Festival 2023)

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Maestro supera as expetativas, ao certificar Bradley Cooper como um cineasta com talento nato, tal como Leonard Bernstein, aqui representado brilhantemente.

Nem sempre a transição de ator para realizador corre bem. Felizmente, a estreia de Bradley Cooper neste último papel em 2018 com A Star Is Born foi um sucesso tremendo, levantando a questão se o seu futuro estaria melhor entregue à área por detrás da câmara em vez de ter os holofotes todos apontados para o mesmo. Maestro é uma biopic sobre Leonard Bernstein, um dos maestros e compositores mais influentes do seu tempo, sendo o primeiro americano a receber aclamação internacional. Com um foco especial no romance com Felicia Montealegre (Carey Mulligan), Cooper confirma o seu talento nato como cineasta ao entregar um dos melhores filmes da 80° edição do Festival de Veneza.

Para facilitar a leitura, o uso de Leonard refere-se ao personagem, enquanto que Bernstein ao maestro ou respetiva família.

As expetativas à entrada para o cinema encontravam-se cuidadosamente moderadas. Adaptações biográficas têm dificuldades em escapar às barreiras formulaicas do subgénero e cedem frequentemente à tendência para relativizar, minimizar ou até omitir situações que marcaram negativamente ou polemicamente a vida da pessoa em que a obra se baseia. Para além disso, a sobre-dramatização de certos eventos ou relações tornam os filmes artificiais, distanciando-se do público ao invés de agarrar o mesmo através de interações genuínas, personagens humanas e uma narrativa emocionalmente cativante.

Superando as tais expetativas, Maestro é caraterizado precisamente por estes últimos atributos. A relação íntima entre Leonard e Felicia é inicialmente vista através de um preto-e-branco utópico, demonstrando a paixão mútua de duas pessoas a viverem a sua “fase de lua-de-mel”, onde tudo o que é bom passa a ser extraordinário, e tudo o que é mau não importa ou simplesmente não existe. Inevitavelmente, obstáculos surgem, sejam estes criados pelo exterior ou pelos envolvidos na relação, sendo nesta fase – já a cores – que se denota realmente o quanto as pessoas gostam uma da outra.

Na parte a preto-e-branco, algumas das interações entre Leonard e Felicia são tão escuras que acabam por esconder eventuais defeitos que cada um possa ter, ao contrário da secção maior a cores onde tudo se encontra “às claras” e onde ambos, especialmente Leonard, demonstram o seu verdadeiro ser. A cinematografia de Matthew Libatique (The Whale) é apenas um dos vários aspetos técnicos em destaque, mas o trabalho de câmara é, sem dúvidas, o que mais contribui para uma aproximação mais pessoal com as personagens principais.

Com a direção confiante e inteligente de Cooper e a criatividade e experiência de Libatique, Maestro encontra-se repleto de cenas continuas, transições brilhantes entre espaços na mesma cena e sequências musicais com a orquestra absolutamente arrebatadoras – uma performance ininterrupta de uma das peças de Bernstein numa igreja destaca-se como uma das mais hipnotizantes, arrepiantes e memoráveis do ano. No entanto, é a decisão de manter a câmara persistente na prestação dos atores – que muitos cineastas não resistiriam a cortar – que transforma por completo a ligação do espetador para com os protagonistas.

Tanto Cooper como Mulligan (Promising Young Woman) abordam as conversas, discussões e monólogos complexos e extremamente longos de forma verdadeiramente fascinante. A sua química palpável e interações recheadas de pura autenticidade e emoção humana marcam a relação amorosa gradualmente mais frágil devido aos problemas que vão surgindo, chegando mesmo ao ponto de literalmente qualquer cena após o ponto de enredo que inicia o terceiro ato puxar pelas lágrimas e provocar um grande aperto no peito.

Cooper entrega-se de corpo e alma ao seu papel, com a ajuda estranhamente controversa de um nariz falso para oferecer maior parecença com o verdadeiro Leonard Bernstein. O trabalho de maquilhagem é soberbo ao longo de toda a obra – a tal polémica era totalmente desnecessária -, mas o ator destaca-se pela sua performance completa. De intenso a subtil, de energético a deprimido, de feliz a triste, Cooper dificilmente não recebe dezenas de nomeações para Melhor Ator. É inequivocamente o maestro de Maestro, mas Mulligan consegue atingir outro nível de complexidade emocional.

A atriz consegue transformar uma Felicia cheia de luz e vida numa Felicia desprovida de toda a força vital exclusivamente através do seu olhar. Chamem-lhe “micr-oexpressões”, chamem-lhe o que for adequado, mas à medida que Maestro se vai desenrolando, Mulligan usa o seu olhar doce maravilhoso que gera uma sinceridade emocional tremenda para tornar os seus diálogos, e mesmo cenas sem falas, exponencialmente mais impressionantes, culminando em minutos finais inesquecivelmente poderosos – uma cena em que recebe amigos em casa é deveras devastadora. Tal como a sua contraparte, inúmeras nomeações estão garantidas.

Pessoalmente, Maestro é mais interessante como romance do que como biopic, não querendo insinuar que o último subgénero é mal executado, muito pelo contrário. A relação do casal é, sem dúvidas, o alvo de desenvolvimento principal do filme, mas a história sobre um homem com um talento artístico extraordinário e necessidade de validação e carinho das pessoas que o rodeiam é contada de maneira igualmente provocante, com vários momentos de entrevista ao protagonista a transmitirem mensagens importantes sobre a vida de um artista.

Não foge à estrutura de uma narrativa de biopic que, a certo ponto, entra em auto-piloto e permanece numa espécie de limbo onde não perde interesse, mas também não adiciona nenhuma camada extra. Apesar de Maestro não cair nas tentações perigosas deste tipo de filmes mencionadas nos parágrafos iniciais, uma componente narrativa crucial encontra-se nas relações hetero e homossexuais que Leonard vai tendo ao longo da sua vida, nomeadamente com Tommy Cothran (Gideon Glick). Não existe tempo de ecrã dedicado a explorar mais em detalhe esta relação em particular, algo estranho tendo em conta o impacto da mesma na vida de toda a família Bernstein.

Obviamente, o foco de Maestro encontra-se no romance principal, mas quando este é claramente afetado por outra relação íntima, não oferecer uma razão para tal pode não beneficiar a imagem do falecido Bernstein. Pode ter sido por proteção à família de Cothran, mas não deixa de criar um buraco no argumento de Josh Singer (First Man). Nota final para a banda sonora composta por músicas de Bernstein. Magnífica. Poderosa. Emocionante. Arrepiante. E mais mil e um adjetivos que nunca serão suficientes para descrever o verdadeiro impacto das peças de Bernstein nesta obra.

VEREDITO

Maestro supera as expetativas, ao certificar Bradley Cooper como um cineasta com talento nato, tal como Leonard Bernstein, aqui representado brilhantemente. Uma biopic inspiradora com foco num romance exponencialmente cativante elevado por prestações emocionalmente genuínas recheadas de interações intensamente autênticas. Carey Mulligan junta-se ao ator/realizador na corrida aos prémios com uma performance arrebatadora de provocar lágrimas até em espetadores menos sensíveis. Tecnicamente sublime, sendo que a música do maestro provoca imensos arrepios ao longo de uma história sobre amor, família, paixão artística e todos os obstáculos e dilemas que advêm dos mesmos.

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