The Devil All The Time pode não ser indicado para aqueles que têm uma visão muito pessoal sobre a religião. Já para outros será um filme que tardará a desaparecer da memória.
Sinopse: “Em Knockemstiff, no Ohio, e nas redondezas, estranhas personagens – um falso pregador (Robert Pattinson), um casal de assassinos em série (Jason Clarke e Riley Keough) e um xerife corrupto (Sebastian Stan) – convergem em torno do jovem Arvin Russell (Tom Holland) enquanto ele luta contra as forças do mal que o ameaçam a ele e à sua família. Passado entre entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da guerra do Vietname, o filme do realizador Antonio Campos, apresenta um cenário ao mesmo tempo horrendo e sedutor que opõe justos e corrompidos.”
A Netflix tem sido capaz de disponibilizar filmes com elencos repletos de estrelas com bastante regularidade. Se as pessoas acabam por gostar ou não dos filmes, isso é outro assunto, mas como argumento convincente para fazer as pessoas sentarem-se no sofá a ver o serviço de streaming, este tipo de elenco é perfeito.
Quase todos os atores de The Devil All The Time são favoritos dos fãs devido à presença em universos cinemáticos, sagas icónicas ou filmes vencedores de Óscares, logo não é surpresa se apenas este aspeto consegue convencer o público a ver um filme com um tempo de execução de quase duas horas e meia. Esta é a primeira vez que assisto a um filme de Antonio Campos e as minhas expetativas eram moderadamente altas, tendo em conta a sinopse e o género em si.
Não sabia verdadeiramente o que o filme abordava, já que a sinopse não dá pistas concretas sobre a narrativa principal. Apenas vejo o primeiro trailer oficial depois de assistir ao filme e, sendo honesto, é um pouco enganador quando se trata do tempo de ecrã relativamente a certos atores (Tom Holland só aparece após 45 minutos, por exemplo). Assim, durante a primeira hora e meia, senti algumas dificuldades em entender que caminho a história estava a seguir. Existe mais do que uma mão cheia de personagens e linhas narrativas relevantes, sendo este o meu principal problema com o filme. Mas já lá vou.
Vou começar com o elenco e as suas personagens. O primeiro grupo é impecável, como esperado. Tom Holland é, sem dúvida, a maior surpresa, dando-nos uma parte dele que ninguém tinha visto até agora. A personalidade de Arvin é moldada com base na sua infância traumática, trágica e violenta. A transição de “friendly neighborhood Spider-Man” para uma personagem tão assombrada não é uma tarefa fácil, mas Holland encontra uma maneira de lidar com o caminho emocionalmente avassalador e sombrio percorrido por Arvin. No entanto, este é um filme longo, onde cada personagem tem um papel importante a desempenhar, mesmo aqueles que mal impactam a história até aos últimos minutos.
Bill Skarsgård interpreta o pai de Holland, incorporando perfeitamente um homem cuja fé cega na religião gera não só uma sequência de eventos horríveis, mas também estabelece o tema geral do filme. Riley Keough e Jason Clarke formam um casal estranho com um modus operandi perturbador, mas a primeira é genuinamente impressionante. Está a tornar-se uma atriz muito interessante ao escolher papéis únicos em filmes pouco convencionais. Todos os outros atores são ótimos, Robert Pattinson, Eliza Scanlen, Sebastian Stan, é só nomear, mas Holland, Skarsgård e Keough são os destaques absolutos, assim como as suas personagens. Estas são mais desenvolvidas do que as outras, o que me leva a um dos meus pontos negativos.
Com tantas personagens, o equilíbrio entre as inúmeras linhas narrativas não é consistente o suficiente para me manter cativado durante todo o filme. Antonio e Paulo Campos oferecem a todas as personagens uma boa porção de tempo, dando ao espetador a oportunidade de entender as motivações por detrás destas personagens e de se ligar com a sua história particular. Um método excelente de storytelling, sem dúvida.
No entanto, quando o filme chega ao fim, algumas personagens têm praticamente zero impacto na narrativa em retrospetiva. Contrastando com os destaques mencionados acima, várias personagens parecem unidimensionais, usadas apenas como um dispositivo de enredo para fazer a história mover em frente ou como um objeto para homícidios gratuitos, sangrentos e visualmente nojentos.
Este último aspeto pode ser um grande “não” para imensos espetadores. Existem dezenas de sequências onde uma personagem é brutalmente baleada ou espancada quase até à morte, logo fica o aviso para quem for mais sensível. Passa de puro entretenimento a excessivamente violento em poucos segundos. Contudo, o que mais adoro em The Devil All The Time será exatamente o mesmo que muitos espetadores definitivamente odiarão: a visão sobre a religião. Semelhante a mother! de Darren Aronofsky, este é um filme que não se retrai em demonstrar como a fé cega em religiosidade hardcore pode ser negra, sombria, pecaminosa e que leva as pessoas pelos caminhos mais terríveis. É o tema geral que coneta os vários enredos.
Ao longo do filme, quase todas as decisões de personagens são tomadas com base nas suas crenças religiosas. Se acreditam que rezar é a solução para o cancro, vão rezar durante dias seguidos e irão fazer sacrifícios. Se acreditam que Deus está a oferecer poderes sobrenaturais, farão de tudo para testar a sua vontade. Se acreditam que Deus está a dizer para tomarem as decisões mais ilógicas, para realizarem ações desumanas e para pecarem da maneira mais horrenda possível, fazem tudo num piscar de olhos. Esta manipulação religiosa é retratada de uma maneira tão realista que transforma The Devil All The Time numa visualização bastante complicada. Para mim, foi tão autêntico que posso facilmente ligá-lo ao estado atual do mundo real.
A partir do momento em que percebi este tema subjacente, a segunda metade do filme ficou muito mais interessante. Os arcos das personagens começam a entrelaçar-se, perguntas anteriores começam a receber respostas e tudo se encaixa nos últimos 30 a 45 minutos.
Porém, o tempo de execução continua a parecer muito longo e, apesar de Antonio e Paulo Campos fazerem um trabalho notável ao juntarem coerentemente as várias histórias, algumas simplesmente não acrescentam nada à narrativa ou ao arco do protagonista. O filme é tecnicamente impressionante de forma geral, mas há que dar destaque à cinematografia prolongada de Lol Crawley e à banda sonora subtil de Danny Bensi e Saunder Jurriaans.
The Devil All The Time está destinado a ser incrivelmente divisivo. Antonio Campos e Paulo Campos criaram um argumento sombrio, dark, extremamente violento, repleto com inúmeras linhas narrativas e um tema subjacente que vai causar alguma controvérsia. Com um elenco cheio de estrelas, é impossível não existir prestações extraordinárias.
Todos são impecáveis, mas Tom Holland (o destaque absoluto), Riley Keough e Bill Skarsgård merecem as menções devido às suas interpretações impressionantes. Todavia, o elevado número de personagens e os respetivos arcos estendem desnecessariamente o tempo de execução. Demasiado tempo é oferecido a personagens que, em retrospetiva, pouco ou nenhum impacto têm na narrativa ou no protagonista. Algumas são simplesmente usadas como meros plot devices ou alvos de violência por entretenimento.
Em todo o caso, o foco da narrativa na religião é ousado e audacioso, demonstrando como a fé cega pode influenciar negativamente a vida das pessoas, levando as próprias e outras pelos caminhos mais dolorosos. Dependendo da visão pessoal que se tem da religião, do quão aberta a mente é capaz de ser e da sensibilidade à violência sangrenta, fica o meu aviso de que este filme pode não ser para todos. Mas, para quem for, é, sem dúvida, um filme que tardará a desaparecer da memória.
The Devil All The Time já está disponível na Netflix.