Crítica – Dune: Parte Um

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Se vieram aqui à procura de puro espetáculo, podem ficar desapontados. Mas, se vieram à procura de uma visão original de um dos universos de ficção científica mais amados de sempre, este é o filme certo.

“O mistério da vida não é um problema que deve ser resolvido, mas uma realidade que deve ser experienciada.” Frank Herbert, Dune.

No futuro longínquo, a humanidade avançou ao ponto de existir um império intergalático que governa o universo conhecido, tudo graças ao controlo da especiaria melange, um produto que permite, entre outras coisas, manobrar o espaço-tempo. Esse produto só existe num lugar em todo o universo conhecido, o planeta Arrakis, também conhecido por Duna. Vai ser neste planeta que Paul Atreides, um jovem nobre, vai encontrar o seu destino e, possivelmente, mudar a ordem do universo.

Este primeiro capítulo da saga realizado por Denis Villeneuve, realizador de Sicario, Arrival e Blade Runner 2049, adapta a história correspondente à primeira metade do livro de Frank Herbert. Sendo o primeiro volume de uma saga que se expandiu ao longo de seis livros escritos por Herbert, e vários spin-offs escritos pelo seu filho, Dune Parte Um é um primeiro passo numa tentativa de adaptar novamente a saga ao grande ecrã. Com uma história que é conhecida por ser complexa e minuciosa, é um grande feito da parte de Villeneuve admitir que o filme deveria resumir-se apenas a uma parcela dessa narrativa.

Mas não pensem que, apesar de este ser um filme introdutório ao universo, que a narrativa é reduzida. Estamos a falar de quase duas horas e meia de filme que, apesar de não nos fazerem sentir perdidos, algumas pessoas que não estejam familiarizadas com o universo, as complexidades das intrigas políticas e dramas existenciais dos seus personagens podem sentir-se um pouco desorientadas. Mesmo assim, Villeneuve e os guionistas, Jon Spaihts e Eric Roth, fazem um bom trabalho de apresentar o universo do filme, estabelecer as suas regras, os seus personagens e os detalhes dos conflitos, de forma clara e, ao mesmo tempo, misteriosa o suficiente para nos deixar a desejar por mais. Se há uma falha na estrutura narrativa, prende-se com o protagonista, Paul, quando a certa altura do filme sentimos que as suas escolhas estão a ser um bocado forçadas, fazendo-nos questionar sobre a sua motivação.

Crítica - Dune: Parte Um

No que toca aos personagens em si, estes são conhecidos por serem o elemento mais atrativo da saga. Agora neste filme, Villeneuve escolhe eliminar qualquer excentricidade fantástica desses personagens, o que é curioso e corajoso, já que essa era uma característica dos livros. É uma escolha intrigante, mas que funciona melhor, dando aos personagens um tom mais natural e credível. Numa história com tantos personagens ricos, ainda por cima interpretados com atores de destaque, há uma pequena sensação de desequilíbrio de alguns personagens em relação a outros, principalmente para quem conhece o livro. Mas no fim de contas, os atores estão todos ótimos nos seus papéis. Timothée Chalamet veste bem a pele do herói Paul Atreides, passando facilmente de frágil e ingénuo para capaz e letal. Rebecca Ferguson encanta pela sua vulnerabilidade e impiedade enquanto guerreira Dama Jessica. Josh Brolin e Oscar Isaac, Gurney Halleck e Leto Atreides respetivamente, parecem saídos das páginas do livro.

Alguns personagens, no entanto, poderiam ter recebido um pouco mais tempo de ecrã. Estou a falar dos fremen, como Stilgar e Chani, interpretados por Javier Bardem e Zendaya, mas fica claro que estes personagens misteriosos, nativos de Arrakis, serão uma presença mais habitual na sequela. Também os antagonistas como o Doutor Yueh, interpretado por Chang Chen; Glossu “A Besta” Rabban, interpretado por Dave Bautista; ou Piter De Vries, interpretado por David Dastmalchian, são cativantes o suficiente para os querermos ver mais. Destes três, Bautista destaca-se por conseguir imbuir num personagem tão agressivo uma humanidade frágil na sua necessidade de impressionar o seu tio, o Barão Vladimir Harkonnen. E falando do Barão Harkonnen, o grande vilão do filme, este talvez seja o personagem que mais se destaca entre os presentes. Mesmo sob camadas de próteses e maquilhagem, Peter Sarsgaard assume o papel de antagonista flutuante com uma sobriedade, frieza e melancolia que o tornam tão perturbador como trágico.

Quanto ao lado fantástico e operático, Villeneuve, até agora um realizador mais ponderado e subliminar, mostra que dá bem conta do elemento de espetáculo. Não esperem grandes batalhas espaciais ou sabres de luz, porque o universo de Dune é mais terreno e verosímil. Mesmo assim, há muitos momentos de aventura quase operáticos, mas sem artifício visual barato. Villeneuve usa uma abordagem mais sóbria para mostrar o conflito, e a destruição que vemos representada no ecrã, nos confrontos entre a casa Atreides e os seus inimigos, os Harkonnen, é representada quase com uma melancolia trágica mais adequada a uma peça de Shakespeare que a um blockbuster.

Agora, no que toca a espetáculo puro, devo dizer que as sequências que acabam por impressionar mais são os momentos que envolvem os famosos vermes, as criaturas gigantes que habitam por baixo da areia de Arrakis. Há uma sequência de resgate durante um ataque de uma dessas criaturas que é de tirar o fôlego e, quando o tamanho real delas é revelado, ficamos boquiabertos. O design das criaturas nesta versão é bem diferente das versões anteriores, quase todas inspiradas nas ilustrações de John Schoenherr. Aqui os vermes têm a mesma imponência de sempre, mas são mais realistas em termos de design, mais simples e, ao mesmo tempo, mais presentes como personagem do que se esperava. Há um momento de particular impacto, quando um verme é visto pela primeira vez em toda a sua glória, e denota-se uma consciência dentro dessa criatura tão alienígena.

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O filme acaba por ser mais um drama trágico do que uma aventura. Villeneuve preocupa-se em mostrar uma história ponderada sobre o crescimento e o impacto do ser humano na sociedade e no universo. Sentimos a angústia dos personagens ao terem consciência que são peças num jogo que lhes é desconhecido, e aqui Paul destaca-se. Como herdeiro dos Atreides, sente-se dividido entre a sua vontade de assumir o seu papel na família e a descoberta de toda a sua vida ter sido manipulado para assumir um papel de salvador universal. O filme sofre um pouco por não explorar mais esse conflito interno do protagonista, mas fica uma promessa para as sequelas vindouras.

Quanto ao universo em si, desde os costumes dos povos e suas características, desde os ponderados Atreides, aos industrializados Harkonnen, ou os nativos indomáveis Fremen, às várias linguagens representadas, os combates corpo a corpo quase obedecendo a um sistema de honra ou bushido, os vestuários com claras influências de culturas humanas antigas interligadas, os veículos estranhamente funcionais, até a arquitetura egípcia de Arrakeen, a capital de Arrakis, tudo parece real e plausível de ter seguido a evolução da nossa espécie e sociedade.

Já a estética encontra muitas semelhanças a outros trabalhos do realizador, como Arrival e Blade Runner 2049. Tanto nos vestuários, como no design das naves, das cidades, das armaduras, tudo é semelhante à nossa civilização, curiosamente verosímil. Destaco, no entanto, algumas influências de Moebius, o conhecido ilustrador francês que participou no desenvolvimento da primeira tentativa de adaptar o livro para cinema com Alexandro Jodorowsky. As naves e guerreiros presentes na sequência inicial, e a sequência em que visitamos o planeta dos Sardaukar e conhecemos pela primeira vez essa temida legião, são claramente tiradas das páginas de Moebius. Também é de destacar a influência de H.R. Giger – outro colaborador de Jodorowsky nesse projeto – no design de Giedi Prime, o planeta dos Harkonnen, um pesadelo industrial que não deixa de ter a sua beleza.

A direção de fotografia é muito boa, sendo particularmente interessante na sua textura. O Diretor de Fotografia Greig Fraser, o responsável pela imagem de Vice, Maria Madalena e Star Wars: Rogue One, e que está neste momento a filmar The Batman com Matt Reeves, conseguiu capturar quer a imensidão de Arrakis, como a textura da sua luz, de forma impressionante.

Como último destaque, tem que se referir a incrível banda-sonora de Hans Zimmer. O veterano compositor apresenta alguns dos seus trunfos habituais, mas também uma versatilidade impressionante. A banda-sonora encanta não só pela sua melodia, como pela sua sonoridade quase alienígena. Parece que a música que acompanha o filme ao mesmo tempo parece estar a falar connosco numa língua de Arrakis.

Como aludi antes, as falhas do filme estão em ser demasiado introdutório na sua estrutura e em sentirmos que a transformação de Paul é um pouco forçada. A culpa não é de Chalamet, mas parece que os guionistas estavam mais preocupados em forçá-lo a tornar-se um líder do que em construir essa transformação. É uma pena porque, no livro, Paul sempre foi um protagonista interessante, uma vez que mesmo quando assume o manto de messias, continua intrinsecamente humano.

O livro nunca foi só uma space opera ou só um drama de personagens ao longo de gerações. É um misto orgânico entre fantástico e dramático, a viagem do herói e determinismo humano. Nesta adaptação, temos o prenúncio disso. Dune Part One é o início desta mítica jornada do herói. Que isto não vos afaste do filme porque pensam que fica muito da história por contar. Cada parte é fundamental e este é um início que vale a pena ver. É estranho, é diferente, é uma experiência original. Bem vindos a Dune. Isto é só o começo.

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