Atenção, esta crítica contém spoilers.
Doctor Strange in the Multiverse of Madness (em Portugal Doutor Estranho no Multiverso da Loucura) traz de volta Benedict Cumberbatch no papel do nosso cirurgião místico favorito, junto com o nosso realizador favorito, Sam Raimi, o homem que deu o primeiro passo para fazer dos filmes da Marvel aquilo que são hoje. Parece que ninguém se quer recordar do que Homem-Aranha fez em 2001, mas nada do que veio a seguir, nem sequer a origem dos Marvel Studios, teria sido possível sem a visão de Raimi em como adaptar para o cinema um dos personagens mais cónicos da editora.
Depois de Oz The Great and Powerful em 2013, Raimi parecia ter abandonado a cadeira de realização no grande ecrã, talvez desapontado com a resposta tépida dos críticos ao seu último filme. Desde então apareceu de vez em quando atrás da câmara para realizar os pilotos de projetos de televisão como Ash Vs Evil Dead e 50 States of Fright, mas manteve-se principalmente como produtor. Felizmente, Scott Derrickson, o realizador do primeiro filme, abandonou a sequela, e isso deixou a porta aberta para o retorno de um mestre à sua profissão. Esperemos que o sucesso de Doctor Strange in the Multiverse of Madness signifique que Raimi não vai deixar a realização tão cedo.
Apesar de ter gostado do filme e me ter divertido bastante, Doctor Strange in the Multiverse of Madness não é um filme incrível, mas depois do falhanço criativo de Eternals e da miséria de guião e realização inexistente do último Homem-Aranha, finalmente voltamos a ver um filme que tenta disputar os parâmetros de um estúdio que parece ter perdido a vontade de arriscar. Não quer dizer que o filme seja bem-sucedido, mas é diferente o suficiente e até interessante no seu estado desarranjado, para nos agradar. E verdade seja dita, até Raimi a meio-gás é melhor que a maioria dos filmes que a Marvel já produziu.
O Multiverso da Loucura começa bem, com uma sequência aventurosa que nos identifica logo o foco central do filme, America Chavez, uma rapariga misteriosa com o poder de viajar pelo multiverso, que está a ser perseguida por demónios estranhos. Depois de um Doutor Estranho de um universo alternativo morrer ao tentar ajudá-la, America dá por si no universo 616, o universo do nosso herói.
Segue-se uma sequência de pancadaria nas ruas de Nova Iorque que nos relembra os bons tempos da primeira saga de Homem-Aranha. Estranho salva America de Gargantos, uma versão modesta do omnipotente supervilão Shuma-Gorath, um pesadelo ciclópico e tentacular inspirado no universo de Lovecraft, e o nosso herói responde ao seu chamamento e é lançado para a aventura. Isto é Raimi e guião clássico a todo o vapor. Perturbado por sonhos recorrentes onde se vê a tentar ajudar America e quase a sacrificá-la para impedir que o seu poder caia nas mãos erradas, Estranho decide ajudar America. Infelizmente, a misteriosa fugitiva é perseguida por alguém que exerce magia negra, e sendo um desconhecido nessa matéria, o mestre das artes místicas vira-se para a única pessoa que sabe mais sobre bruxaria do que ele: Wanda Maximoff, a Bruxa Escarlate. E aqui, senhoras e senhores, temos o ponto de viragem do primeiro para o segundo ato, em que o enredo se complica e o herói é lançado numa viagem sem retorno. Raimi é um realizador que respeita o guião, e vão ver daqui a uns tempos como o seu trabalho neste filme foi muito maior do que simplesmente adorná-lo com elementos de terror. É preciso ter um realizador que respeite a estrutura e o trabalho de contar uma boa narrativa, não só de seguir os parâmetros do estúdio.
Enfim, uma das qualidades deste filme é que não perde tempo. O guionista, Michael Waldron, sabe manter as coisas interessantes e parece ter dado ouvidos à experiência de Raimi. Aqui, a aventura mantém-se em movimento e todo o filme é uma busca, uma demanda por respostas para salvar America e ajudá-la a dominar o seu poder, antes que acabe nas garras de um vilão trágico que não olha a nada, nem à razão, para manipular a realidade à sua maneira.
Pronto, não vou adiar muito mais o assunto. A vilã é a Bruxa Escarlate, que quer usar o poder de saltar de dimensões de America para viajar para um universo onde os seus filhos, que pelos vistos materializou graças ao seu poder durante os eventos da série Wandavision – não sei, não vi, não me interessa -, estejam vivos e ela possa assumir o seu lugar como mãe deles.
Felizmente, não precisam de ver a série para perceber a sua motivação. O assunto está bem exposto no filme e tanto a atuação de Elizabeth Olsen no papel de Wanda, como o guião, fornecem de alguns dos momentos mais fortes desta narrativa. Tal como Estranho, Wanda vive atormentada por sonhos e pela miséria das suas ações passadas, mas ela vai mais longe que Estranho. Um reflexo deturpado do nosso herói, e simbólica nas suas decisões para a própria aura negra que o atormenta, ela é alguém que decide mudar a realidade ao seu feitio, com repercussões para o mundo à sua volta. Munida do poder do Darkhold, o tomo dos malditos, um livro de feitiçaria negra que confere grande poder ao seu utilizador, mas com um custo trágico, Wanda não poupará nada nem ninguém para capturar America e roubar-lhe o seu poder. A questão é, o que estará Estranho disposta a fazer para salvar America? Irá ele cair no mesmo caminho trágico que os outros Estranhos que não confiaram no destino e na ajuda dos outros, ou consegue Estranho finalmente aprender a confiar e a aceitar no acaso? A boa ideia deste filme é que realmente o maior vilão é a maior ameaça ao nosso herói. É literalmente ele próprio. Será Estranho mais forte que a loucura de tentar controlar a realidade? Assim lança-se uma perseguição por diferentes universos, com Estranho à procura de uma solução para proteger America, ao mesmo tempo que ele se debate consigo mesmo e o peso das suas ações e aprende a confiar nos outros.
A história é bastante simples. É um filme de perseguição com um toque de Raimi, aventura adornada com momentos de terror para miúdos, já que falamos de um filme da Marvel. No entanto, Raimi consegue subverter um pouco o lado Marvel comercial com referências a filmes clássicos como Forbidden Planet, o seu próprio Evil Dead, Kwaidan, Carrie e o clássico da Universal, Frankenstein. Claro que nunca temos momentos explícitos de terror, mas Raimi, esperto e maroto como é, consegue fazer-nos crer que vemos algo muito pior do que estamos a ver, sempre dentro dos contornos da restrição para maiores de 13 anos.
O filme está cheio desses momentos em que Raimi luta contra os parâmetros da Marvel para passar a sua visão original e banhada em terror de entretenimento. Digo “luta”, porque o filme claramente está um pouco indeciso sobre o que deve ser, e todos os momentos mais “Marvel” acabam por ser momentos mais tépidos e pouco inspirados. Quase dá para ouvir os executivos do estúdio a ofegar por cima do ombro de Raimi a exigir “mais, mais, mais bd e menos, menos, menos Raimi”. Felizmente, até estes momentos são subvertidos pelo realizador, mas não fazem falta nenhuma ao filme, sinceramente.
Talvez por o guião do filme ter sido escrito novamente de início (uma referência irónica do destino ao momento “back to formula” do primeiro Homem-Aranha) depois de Scott Derrickson e o guionista original terem abandonado o projeto em 2020, sente-se que a viagem do protagonista podia estar mais trabalhada. Quem acaba por destacar-se no filme é mesmo Elizabeth Olsen, que, como vilã trágica, assume uma transformação ainda maior e mais tocante que o próprio Estranho. Nos momentos finais do confronto, no pico do monte Wundagore – este filme é basicamente um conjunto de referências para os nerds -, não podemos deixar de verter uma lágrima pelo seu destino e de bater palmas a Raimi por trazer de volta o seu fascínio por vilões que se auto-sacrificam. O plano do seu fim relembra-nos dos bons velhos tempos em que estes filmes eram entregues a verdadeiros realizadores, pessoas com visão e uma identidade própria.
Eu estou aqui a celebrar os feitos de Raimi e parece que o filme é a melhor coisa que já sagrou o cinema desde Army of Darkness (A segunda melhor coisa que já sagrou o cinema desde Big Trouble in Little China), mas não é. É um bom filme, sólido, divertido, um pouco desequilibrado na comédia e no ritmo, mas com momentos suficientes de boa realização, uma perversão dos valores da Marvel para tentar passar um estilo mais aterrorizante e um guião que poderia ser um pouco mais complexo em termos de protagonismo, ainda que nunca nos aborreça. É Raimi a desenferrujar-se e a Marvel a arriscar um pouquinho. No fim de contas, tudo se resume ao entretenimento, e Doctor Strange in the Multiverse of Madness não é uma aventura tresloucada e nunca antes vista, mas é um filme ambicioso, não muito desafiante em termos de guião, mas com ideias originais e momentos visualmente incríveis o suficientes para nos manter felizes. O Doutor Estranho Morto-Vivo trouxe-me um sorriso à cara e a presença de espíritos das trevas com vozes tiradas diretamente do universo Evil Dead fez-me chorar de prazer. Quase tanto como a tragédia de Wanda me fez chorar de tristeza.
Uma ideia que gostei bastante é que o elemento de loucura do filme não é necessariamente a loucura da diversão ou de um estilo mais excêntrico do filme, mas a ideia de loucura associada à obsessão e ao confronto com a tragédia de um destino inevitável, provocado pelas nossas acções e escolhas. Neste caso, as ações e escolhas de versões alternativas de Estranho levam-no a constatar como está perigosamente perto de prejudicar a realidade, mais do que a salvar, pela sua insistência em assumir sempre sozinho o manto de salvador.
Agora, não quer dizer que essa loucura não esteja presente nos momentos de entretenimento, tanto que temos uma incrível sequência em que seguimos Estranho e America catapultados por várias dimensões ao longo de um trajeto imparável, e os vemos assumir diferentes formas, de acordo com as regras de cada dimensão. É uma sequência que, não sendo mais que pipocas para os olhos, está espetacular. Além disso, aposto que nunca viram uma batalha entre mestres das artes místicas travada com notas de música a serem usadas como shurikens. Para não falar da banda-sonora de Danny Elfman. Não é tão marcante como em outros projetos que fez com Raimi, mas destaca-se como um bom companheiro durante todo o filme, principalmente nos momentos mais tocantes de transformação do protagonista e vilã, e naqueles momentos de terror épico quase saído dos clássicos da Universal.
No final de contas, Doctor Strange in the Multiverse of Madness não é o melhor filme da Marvel nem o melhor filme de Raimi. Está num lugar confortável de meio do escalão, mas é bem melhor do que as últimas ofertas do estúdio. Pode não ser a aventura mais irreverente de sempre, mas é um híbrido sólido de comercial com série B. Faltam mais heróis “estranhos” no cinema, como Sam Raimi.