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Há coisas interessantes aqui, se não exigirem muito. Quem sabe possam sair saciados… ou não.

Atenção, esta crítica contém alguns spoilers. Antlers, de Scott Cooper, traz aos cinemas um filme de monstros atmosférico, ambicioso na abordagem, mas que se perde no tema e numa estrutura pouco inspirada. Digamos que o filme não oferece surpresas. Quando temos alguém a olhar para um túnel escuro de onde se escutam grunhidos de um monstro e esse personagem engatilha uma arma e diz “Vamos ver o que é isto”, percebemos que as coisas não vão correr bem para o público.

Esta adaptação para o cinema do conto de Nick Antosca, The Quiet Boy – que não sendo incrível, recomendo a sua leitura porque tem momentos perturbadores e marcantes -, fica aquém não só das nossas expetativas, como do seu potencial. A culpa cai sobre o medo do realizador de abraçar o género e nas limitações de um guião que é demasiado clássico.

Em Antlers, a protagonista Julia (Keri Russell), uma professora de ensino secundário com um trauma de abusos sexuais, começa a suspeitar que um dos seus alunos, Lucas (Jeremy T. Thomas, que carrega o filme nos ombros), um rapaz alienado dos seus colegas e solitário, está a sofrer maus tratos em casa. Conforme ela investiga a sua situação, Julia vai descobrir que os comportamentos aberrantes de Lucas, como fazer desenhos horrendos e contar um conto de fadas perturbador, podem estar a esconder não só problemas em casa, mas um perigo sobrenatural que ameaça toda a cidade. Em breve, conforme começam a acontecer mortes na região, Julia começa a acreditar que as histórias de Lucas não são ficção e ela procura a ajuda do seu irmão, o xerife Paul (Jesse Plemmons), para proteger a criança e salvá-los de uma ameaça que é mais monstruosa que os mitos que inspirou.

Este filme, para mim, tem tudo para funcionar. Como apreciador de cinema de género, filmes de monstros particularmente, só pela premissa fiquei confiante de que fariam um bom trabalho. Infelizmente, tudo o que poderia existir de bom em Antlers foi apagado em prol de uma estrutura clássica, pouco original e demasiado conveniente para momentos de exposição do que para uma real progressão de personagens. Aqui penso que o produtor David S. Goyer, conhecido como um guionista que preza, para seu detrimento, a abordagem clássica de guião de três atos, pode ter tido mão em prender Antlers a lugares comuns que só o danificam.

Antlers

O filme até começa bem. Nos primeiros cinco minutos somos apresentados ao cenário, uma cidade mineira nas montanhas do Oregon, a entrar em colapso pelo fecho das minas de carvão, tomada de assalto pela epidemia de opioides e depressão financeira, onde encontramos Frank Weaver, um drogado, traficante de metanfetaminas, que tenta cuidar dos filhos enquanto mantém um laboratório de droga escondido numa mina abandonada. O seu contato com uma criatura monstruosa, saída de uma lenda nativo americana, o Wendigo, vai transformá-lo aos poucos num desses seres de fome insaciável, um canibal monstruoso. O que é interessante é que ele tenta manter mesmo assim a coesão da sua família. Trancado no sótão da casa com o seu filho mais novo, também infetado, o encargo de os manter vivos cai sobre Lucas, o filho mais velho. Seguimo-lo no início não como protagonista, mas como guia para este conflito perturbador.

Esta parte da história funciona bem, porque acreditamos em Lucas como um rapaz que não deveria estar a passar por este tipo de trauma, sendo forçado a crescer e a fazer coisas que qualquer criança da sua idade não deveria fazer. Há aqui um bom ponto de partida para um filme de terror desafiante que nos fala sobre a dissolução da família face ao vício, as sequelas dos abusos e maus tratos e a crença na coesão familiar como elemento de destruição do bem-estar individual.

Juntando a isso uma componente visual forte e constante, que se prolonga ao longo do filme, com tons mais carregados que correspondem bem a um ambiente pesado e soturno, um sítio sem esperança no meio de um cenário idílico que são as montanhas do Oregon, Antlers tem o aspeto de uma longa-metragem de terror para adultos. Infelizmente, apesar de o filme estar bem filmado, ter mesmo uma planificação interessante e ter uma premissa que nos dá a confiança de que irá longe nos seus temas e no terror, cedo apercebemo-nos de que é apenas mais um filme de monstros pouco inspirado e até aborrecido nas suas escolhas de realização e guião. Sob uma patine de sofisticação e seriedade, esconde uma história básica e passageira que, infelizmente, podia ter sido muito mais.

Tudo começou a correr mal para mim quando apercebi-me que Cooper fazia escolhas de realização que limitavam a capacidade de terror de uma história que, sem outra forma de a descrever, é o que é, uma história de terror. Dito de forma simples, o primeiro sintoma de que este filme não ia funcionar está na escolha de planos e caracterizações estéticas que nos impedem de sentir medo. Há vários momentos em que uma cena começa bem, esperamos ver algo horrendo, inquietante, mas depois a resolução é muito fraca e pouco explícita. Não é uma questão de aludir, ou fazer mais com menos, é mesmo uma questão de ter medo de assumir o elemento de terror e de monstruosidade. A única vez em que vemos algo realmente impactante é quando Frank finalmente consome carne humana. Essa circunstância está captada com alguma coragem e chega a afetar-nos, mas vem no encalço de uma situação tão básica, tão previsível, que já vimos várias vezes antes, e melhor.

Tudo o que é sobrenatural e monstruoso, todos esses momentos mais assumidos de terror, não só são pouco interessantes na sua abordagem, como o clímax do filme desaponta bastante. Eu não consigo perceber em que mundo de ficção queremos ver a nossa protagonista a vencer um monstro enorme sem grandes dificuldades. É uma das regras básicas de ficção que o nosso protagonista só é tão forte e cativante conforme o seu antagonista, mas aqui, depois de hora e meia de sustos desapontantes e privação de vermos o monstro a fazer algo realmente interessante, oferecem-nos uma batalha final pouco inspirada, improvável no seu resultado e sem imaginação. Além disso, envolve o uso da mitologia apresentada de forma tão forçada que não sentimos que a protagonista realmente aprendeu algo, superou algo, para conseguir conquistar o seu inimigo. Este momento é um dos exemplos de como não há uma escalada nesta narrativa, não há desafios a superar nem uma estratégia inteligente da parte da protagonista para chegar a um objetivo. Os personagens andam de cenário para cenário, com pouca lógica, forçados por um guião básico, e tudo o que é interessante – a aventura de Lucas e a transformação da sua família – é abandonado em prol de um filme pouco inspirado.

Antlers

Às vezes faria bem aos guionistas e realizadores terem consciência que, se uma situação dramática é inverosímil para uma pessoa que não tem qualquer contato com as regras da ficção, então vai ser inverosímil para toda a gente.

Agora, há coisas interessantes no filme, como o duplo protagonismo e as ideias apresentadas. Sempre que estamos com Lucas e o vemos a tentar balançar a responsabilidade da escola com o pesadelo que passa em casa, o vemos à procura de alimento para a família ou a tentar apenas sobreviver dentro daquele ambiente familiar verdadeiramente monstruoso, tentando simular uma ideia de normalidade, o filme funciona bem. Percebemos que o filme de terror que Scott Cooper quer contar é sobre um núcleo familiar a destruir-se e as desculpas que inventamos para mantermos a ilusão de família. Mesmo a protagonista Julia e o seu irmão apresentam ideias interessantes nos seus conflitos pessoais e na forma como lidam com um passado de um pai abusivo. Tudo isto funciona bem, apesar de às vezes ser um pouco cliché. Agora, sempre que estamos com Lucas e o vemos a tentar manter o seu pai e irmão infetados felizes e nutridos, e vemos como ele próprio tenta sobreviver a esta situação, mantendo-se seguro física e mentalmente, o filme funciona.

Além disso, questões como o impacto da heroína nas comunidade empobrecidas, as consequências da exploração da natureza, a quebra do núcleo familiar no mundo moderno e as consequências do abuso para as vítimas, tudo isso são bons temas para explorar. O problema é que são demasiado ideias que acabam por não ser desenvolvidas e concluídas. Ao longo do filme, o enredo vai tornando-se cada vez mais básico e enfadonho. Não só o clímax é fraco, como a partir da metade de Antlers, quando a criatura finalmente escapa e estamos à espera de que a estrutura passe para outro nível e haja circunstâncias e confrontos interessantes, mas não, só temos uma pequena situação de cerco a uma casa que é quase ridícula de tão medíocre e óbvia. É tão básica e os personagens agem de forma tão estúpida e inverosímil que não conseguimos acreditar no que estamos a ver.

Um filme em que a base da história é um monstro com fome insaciável que tem que comer carne humana à solta numa comunidade moderna, mas não vemos quase nada desses elementos. Parece-me que algo está a falhar, não?

E isso é infeliz, porque a criatura em si, concebida pela equipa da Legacy FX – que já trabalhou em projetos como The Mandalorian, Godzilla Vs Kong, Shape of Water, ou seja, tem a experiência e a capacidade para criar algo inesquecível – é interessante. Mas nunca chega a ser marcante e, quando a vemos, é representada com pouca riqueza visual, quase como se o realizador troca-se o espetáculo de terror por uma abordagem de televisão barata. Há, no entanto, um pormenor perturbador na caracterização da criatura. Digamos que é um adereço em que ele tenta manter um resquício de identidade e humanidade, que realmente funciona em papel. Infelizmente, como todas as boas ideias do filme, assim que esse elemento é apresentado, é logo abandonado.

Antlers

Apesar de o elenco ser bom, os personagens principais apresentam conflitos interessantes, como a forma como Julia lida com o passado de abuso, como o seu irmão tenta assumir um papel de responsabilidade perante a comunidade ou como Lucas tenta manter a sua família unida, mas mesmo esses conflitos nunca são resolvidos de forma satisfatória. Até o ex-xerife da cidade, interpretado por Graham Greene, parece ter algo a dizer. Como um xerife nativo americano, ele parece estar a tentar fazer as pazes com o passado e com os próprios mitos e o peso da sua cultura nativo-americana, mas infelizmente no filme acaba por não servir para muito mais do que como ferramenta de exposição sobre o elemento sobrenatural.

Há mudanças nos personagens que não foram justificadas, tomadas de decisão que não entendemos e que não foram conquistadas. No final, há algo ali que serve para nos manter interessados, a ideia de sacrifício. Pode-se dizer que o grande clímax do filme poderia ser esse momento de tomada de decisão com contornos trágicos, se o filme tivesse coragem para nos mostrar esse desafio de forma interessante. O momento em si não é mau pela ideia, apenas pela forma como está concretizado. Lá está, o problema de Antlers não são as suas ideias, são as manifestações pouco inspiradas. Os realizadores de filmes de terror básicos passados em cenários bucólicos têm que parar de usar planos de exposição de florestas, filmados com drones, para tentar compensar a falta de conteúdo do filme.

Este filme, semelhante a outra produção de Guillermo del Toro, o infeliz Don ́t Be Afraid of the Dark, sofre dos mesmos sintomas de mediocridade. Começa bem, de forma promissora, o terror vai ser estonteante e perturbador, mas depois perde o gás devido a uma estrutura clássica que limita o crescimento dos personagens, sacrifica lógica e ideias interessantes em prol de uma estrutura mecânica e reduz o elemento de terror com uma realização que não sabe dirigir o nosso olhar para sustos bons e surpreendentes. Basta dizer que, tal como nesse filme, temos soluções pouco inspiradas como os personagens descobrirem a verdade sobre o monstro através de manuais sobre espíritos e criaturas lendárias. Há assim tanta oferta antropológica conveniente sobre estes fenómenos?

Antlers promete, diz que irá mostrar-nos um filme de monstros clássico, mas sofisticado, com uma abordagem original na forma como tenta trabalhar o seu protagonismo e a temática da quebra da família americana, mas desaponta por desperdiçar o seu potencial em soluções básicas e convenientes. Parece que os próprios criativos por trás do filme não tiveram ambição suficiente para nos mostrar algo que criasse impacto.

No fim de contas, acho que, se são fãs do género de terror, e de filmes de monstros em particular, devem ver o filme. Há coisas interessantes aqui, se não exigirem muito. Quem sabe possam sair saciados… ou não.

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