Clair Obscur: Expedition 33 é a estreia da Sandfall Interactive e uma lufada de ar fresco nos RPG por turnos, ao mesmo tempo que combina combate exigente e emocionante, uma narrativa emotiva e uma identidade meta e visual onde o absurdo e o trágico coexistem.
Se tivesse um euro por cada RPG francês que joguei e analisei, teria três euros. Não é muito, e também não dá para nada. Ainda assim, é curioso como este pequeno número tem vindo a deixar uma marca tão distinta no meu percurso pelo mundo dos RPG, especialmente os de sabor japonês. Porque o “J” dos “JRPG” é mais do que geografia: é identidade.
Edge of Eternity foi um dos primeiros jogos que joguei na PlayStation 5. Era ambicioso, talvez demasiado para o estúdio, e isso notou-se. Depois veio Terra Memoria, que me apanhou de surpresa com o seu charme retro, combates por turnos e um cheirinho a mitologia de cristais. E foi um daqueles jogos que joguei na altura perfeita. Agora, Clair Obscur: Expedition 33 só não me apanhou desprevenido porque já estava bastante entusiasmado desde a primeira revelação. O termo “Clair Obscur”, ou “chiaroscuro”, é usado para descrever o contraste forte entre luz e sombra nas artes visuais. Neste projeto de estreia da Sandfall Interactive, é usado como metáfora perfeita para o tom e os temas do jogo — o salto entre o drama existencial e o o humor absurdo com uma elegância rara.
Mergulhando no jogo, Clair Obscur: Expedition 33 destaca-se em múltiplas frentes: domina o género dos RPG por turnos; apresenta uma narrativa envolvente e madura; encanta com visuais bem polidos e uma banda sonora deslumbrante; conquista tanto a crítica profissional como a da comunidade e alcança números impressionantes de vendas para um estúdio independente. Há aqui uma lição algures, não há?
Clair Obscur: Expedition 33 decorre numa França alternativa, onde há 67 anos que os habitantes de Lumière vivem sob a ameaça de um evento conhecido como Gommage — um ritual cruel e inevitável, onde uma entidade enigmática chamada de Pintora pinta um número em contagem decrescente. Quem tiver a idade pintada desaparece, como se a própria realidade os rejeitasse, dissolvendo-os nas memórias dos que ficam. Após o Gommage, Lumière envia uma nova expedição — um grupo de voluntários dispostos a atravessar o continente para enfrentar a Pintora, na vã esperança de impedir que um novo número seja pintado.
A nossa Expedição 33 é a mais recente a partir e é onde conhecemos Gustave, um engenheiro pragmático, cuja vida se extinguirá dentro de um ano; Maelle, a mais jovem da expedição e irmã adotiva de Gustave, cuja juventude contrasta com o peso da missão; Lune, uma erudita que manipula os elementos e Sciel, uma guerreira serena, cuja leveza e otimismo mascaram a dor da perda. Durante a demanda, a Expedição cruza-se com outras figuras que não quero desenvolver mais do que o necessário: Renoir, um obstáculo consumido por uma determinação implacável; Verso, uma figura misteriosa que acompanha a expedição de longe; Monoco, um dos muitos habitantes bizarros do continente; e Esquie, uma criatura mítica tão ambígua quanto fascinante.
As primeiras horas de jogo são das mais pesadas que me lembro num videojogo, carregadas de morte, de desespero e de um peso que quase nos esmaga. Mas logo a seguir, o jogo vira completamente o tom e apresenta-nos os Gestrals: uma raça deliciosamente estranha de maníacos por combates, com cabeças em forma de pincel e corpos de manequim. Um contraste de humor inesperado… e bem-vindo. Este pêndulo entre o desespero e a leveza, entre o medo e o deslumbramento, continua ao longo de toda a aventura. E a viagem está cheia de reviravoltas dramáticas — incluindo uma, por volta de um terço do jogo, que é um autêntico murro no estômago.
Clair Obscur: Expedition 33 é uma verdadeira ousadia artística e digo-o no melhor dos sentidos. A Belle Époque serve de inspiração, onde o esplendor e a decadência coexistem num equilíbrio frágil, com paisagens oníricas, arquitetura surrealista e figuras que parecem saídas de uma pintura a óleo. Os locais por onde passamos têm uma qualidade quase etérea, com uma paleta de cores saturadas, como se fossem cuidadosamente pintados à mão — quase uma galeria de arte, e não um ambiente digital. Há uma clara intenção de provocar emoções visuais antes mesmo de sequer sentirmos as batidas emocionais da história. A decisão de combinar a beleza e a decadência nas magníficas e misteriosas ruínas, estátuas quebradas e cenários grandiosos, mas desfeitos, cria uma tensão estética entre o sublime e o trágico — o que encaixa perfeitamente na temática de Clair Obscur: a inevitabilidade da morte daquela gente tão nova.
Imaginem a liberdade criativa que esta equipa teve para dar vida à estranheza deliciosa que fomos encontrando ao longo das horas de jogo. Desde criaturas surreais a cenários que desafiam qualquer lógica — nada faz muito sentido, e ainda bem. É precisamente aí que Clair Obscur brilha: fruto de poucos cozinheiros na cozinha e zero intromissões executivas, o jogo é uma sinergia perfeita entre todos os departamentos. E claro, não podia deixar de destacar a banda sonora absolutamente incrível. Oito horas de música que nasceram quase por acaso, graças a uma feliz serendipidade! Lorien Testard e Alice Duport-Percier conseguiram um feito raro: criar uma narrativa emocional paralela que nos agarra do início ao fim, quer estejamos a jogar ou só a ouvir de olhos fechados. Dá para reconhecer várias influências ao longo da banda sonora, mas não consegui evitar umas comparações (bem saudáveis) com Masayoshi Soken — aquela mistura eclética de temas, ritmos e instrumentos faz lembrar o melhor do trabalho dele. É tudo tão variado e criativo que parece ter saído da mesma mente caótica e brilhante.
Uma das melhores qualidades de Clair Obscur é o que muitos receiam fazer: evitar explicações. Ao passo que a maioria se apressa a expor tudo e mais alguma coisa, a Sandfall Interactive mostra uma contenção rara e bem-vinda. Guarda as respostas, ou nem as dá, e confiam que o jogador monte o puzzle por si. O que torna tudo mais cativante. E isso continua na jogabilidade: para além do mapa-mundo recuperado dos RPG da velha guarda, não temos mini-mapa. De início, é estranho e desorientante, mas acaba por ser uma excelente decisão para nos arrancar do canto do ecrã para absorver os níveis que, se prestarmos atenção, são bem lineares com apenas alguns desvios para puzzles, bosses secretos ou equipamento/roupas.
O que mais me chamou à atenção durante a revelação de Clair Obscur foi, sem dúvida, o sistema de combate por turnos — uma mistura improvável entre Paper Mario, Lost Odyssey… e Dark Souls? Parece estranho, mas faz todo o sentido quando começamos a jogar. Cada membro da equipa dispõe de um ataque básico que gera pontos de ação (AP) e esses pontos são usados para desencadear habilidades mais poderosas ou outras de suporte. Até aqui, tudo dentro do esperado. Mas a verdadeira tensão acontece no turno adversário. Aí, vamos ter de prestar atenção para nos desviarmos ou, melhor ainda, tentar aparar o golpe. Não só ganhamos mais AP, como ainda temos a hipótese de ripostar. Os timings são muito mais apertados do que para o esquivar e qualquer distração sai cara, mesmo no modo mais acessível. Este sistema exige reflexos, atenção e precisão, quase como se estivéssemos a jogar um Sekiro disfarçado de RPG por turnos. O resultado? Combates intensos, viscerais, que fogem totalmente ao que estamos habituados no género e que rapidamente se tornam num dos grandes destaques do jogo. Se tiver de apontar um ponto menos bom é a impossibilidade de substituir a equipa durante o combate.
As influências de Souls não ficam por aqui — sentem-se sobretudo na forma como temos muito poucas oportunidades para recuperar entre combates. Descobrir uma das bandeiras de expedição é um verdadeiro alívio, quase como encontrar uma bonfire. É aí que podemos descansar e recuperar os elixires… com um detalhe bem familiar: os inimigos derrotados também voltam à vida. Ainda, podemos evoluir os atributos individuais de cada personagem: força, defesa, velocidade, entre outros e as armas que equipamos vão escalando com esses atributos, cada uma com afinidades e elementos próprios.
A personalização em Clair Obscur vai muito além dos atributos básicos. Cada personagem pode equipar até três Pictos — pequenos artefactos que melhoram atributos ou desbloqueiam habilidades passivas. Ao fim de quatro combates, esses Pictos evoluem para Luminas, permitindo partilhar os bónus com a restante equipa. É uma daquelas mecânicas que dá gosto explorar e que incentiva a combinações fora da caixa. Para além de que cada personagem tem um estilo de combate totalmente distinto. Por exemplo, a Lune manipula os elementos, a Sciel usa cartas mágicas que vai empilhando nos inimigos para libertar um ataque final devastador. Já o Monoco… transforma-se em inimigos já derrotados. Apenas temos de combater contra eles e de colecionar os seus pés. Sim, correto… No fim, tudo se resume a como escolhemos afinar a equipa. Podemos montar uma máquina de guerra para enfrentar os bosses mais exigentes (e sim, há uns bem tramados). Ou investir tudo na Maelle e partir para o caos. Ambas são estratégias válidas. E divertidas!
Clair Obscur: Expedition 33 é uma daquelas raras surpresas que vai ficar connosco durante muito, muito tempo. Tem ambição, identidade e confiança no que faz sem medo de ser estranho, poético e até desconcertante. A direção artística brilha; o combate é divertido e viciante; e a história agarra-nos, magoa-nos, mas também nos ergue num turbilhão de emoções. Pode ser curto (jogo para cerca de 30 horas), mas nunca se sente que ficou algo de fora. E há sempre algo a descobrir, experimentar ou simplesmente apreciar: seja um boss opcional que nos obriga a repensar como jogamos ou uma partida de voleibol com os Gestral. Tudo ali parece feito com cuidado e paixão. E eu só tenho a agradecer.