Reportagem: Caminhos do Ferro 2018 – Sábado (21/04/2018)

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Caminhos do Ferro é um recente programa cultural em rede que engloba 13 municípios e que consiste num itinerário repleto de percursos e atividades culturais.

A aventura do Echo Boomer pelos Caminhos do Ferro começou, precisamente, com uma viagem de comboio cujo destino era o Entroncamento – cidade dos caminhos-de-ferro por excelência – numa manhã de muita chuva. Estava, assim, lançado o mote para um fim-de-semana culturalmente rico, recheado de música, teatro, dança e percursos artísticos.

A primeira paragem foi nas piscinas municipais do Entroncamento, com um percurso guiado por João Bento – artista plástico que compõe som para performances, dança, filmes experimentais, peças de teatro e live acts há mais de dez anos – que nos deu a conhecer a cidade do Entroncamento pela perspetiva de alguns dos seus habitantes. Em oito postos distintos, em que nos era apresentado, a cada posto, uma fotografia a preto e branco de cada habitante, pudemos ouvir os seus relatos, histórias, vivências repletas de memórias – ora felizes, ora trágicas, material de que é feita a vida.

Este percurso transportou-nos para junto destas pessoas (de várias idades e com diversos backgrounds, numa ilustração do que é a diversidade humana) e foi como se, de repente, estivéssemos a ouvir as suas estórias, em pessoa, numa experiência que arrancou muitos sorrisos de quem as escutava. A este percurso foi dado a designação de “8 Linhas – Percurso Sonoro e Fotográfico”, numa analogia direta entre as linhas de comboio do Entroncamento, os oito testemunhos ali apresentados, bem como as oito pistas da piscina em cujas instalações se realizou o percurso.

Não só para os passageiros deste percurso foi uma experiência única. Para o próprio artista, toda a concretização do projeto, desde a ideia, até aos pormenores técnicos finais (preparação dos oito postos), passando por todo o processo (fotografias, entrevistas), teve um impacto extremamente positivo em termos pessoais. Em entrevista, João Bento revelou ao Echo Boomer que a escolha das pessoas para recolha dos testemunhos foi fruto tanto de encontros propositados como de encontros espontâneos e inesperados, num cruzamento de histórias cujo denominador comum é o facto destas pessoas voltarem sempre ao lugar que as viu nascer, crescer, viver – num verdadeiro cruzamento e entroncamento de vivências.

Caminhos de Ferro - Foto: Cláudia Silva

O artista revelou também que a realização deste projeto foi uma fonte intensa de aprendizagem que o fez desenvolver mais a empatia e a escuta ativa, que o ajudou a perceber os seus próprios problemas e a olhar para eles com uma perspetiva diferente. Para os participantes, foi também algo que fortaleceu o seu senso de comunidade, de pertença, e de sentir que podem ser agentes de mudança nas suas próprias cidades.

Uma experiência enriquecedora que retrata a diversidade humana e que, definitivamente, nos possibilitou conhecer a cidade muito para além das suas infraestruturas – porque as cidades são feitas também (e sobretudo) das pessoas que as habitam.

O almoço nesse dia fez-se no restaurante Pezinhos no Rio, na pequena e simpática vila de Constância, que nos deu as boas-vindas com a sua energia acolhedora. Aconselha-se a vinda a este restaurante, numa visita à vila, para uma experiência gastronómica muito agradável e com uma vista para o ponto onde o Rio Tejo e o Rio Zêzere se cruzam.

Finalmente a chuva deu tréguas, o sol mostrou o ar de sua graça, e veio mesmo a tempo de nos acompanhar numa tarde que se viria a revelar extremamente inspiradora e até mesmo imersiva: um percurso pela vila de Constância guiado por Marina Palácio. Autora e ilustradora, e com ligações familiares a Constância, começou por lançar uma pergunta desafiadora: o que é, para nós, a poesia? Com base nesta questão (e nas diversas respostas possíveis e muito próprias a cada um), todo o percurso foi alicerçado na base de que todos somos poetas e de que é possível criar poesia com os elementos mais simples – desde as portas e janelas muito peculiares de Constância, às flores que ilustram algumas casas, aos nomes comuns dados às borboletas, entre tantos outros pormenores que tantas vezes nos passam despercebidos.

Caminhos de Ferro - Foto: Cláudia Silva

Marina conseguiu puxar-nos para um tempo e espaço passados mas, simultaneamente, presentes. Um tempo de antigamente, em que se vivia com calma, em que se vivia com tempo, em que simplesmente se vivia – um fenómeno ao qual hoje a sociedade chama de “mindfulness”, tão raro que é necessário dar-lhe um nome. Mas ali, e durante aquelas horas, o viver no presente era um dado adquirido, em que nada mais interessava a não ser absorver ao máximo todos os ensinamentos e desafios que foram sendo lançados.

A ideia de poetizar a nossa existência humana é antiga – talvez tão antiga quanto a própria humanidade ou, pelo menos, a capacidade de síntese do ser humano – e foi aqui retratada através de legados deixados pelas avós-ninfas. Estas avós são as habitantes mais antigas da vila. São carinhosamente apelidadas de avós-ninfas, pela sua capacidade de transformação e de reinvenção, preservando a jovialidade. E desta transformação e reinvenção é feita também a própria vila – com espaços que revelam tantas histórias por contar, tantas metamorfoses… Tantas vidas!

Ao longo deste percurso, pudemos conhecer a vila muito para além das suas ruas e das suas casas. Pudemos entrar na vida das pessoas que nasceram ali, que viveram ali, que morreram ali. Conseguimos visualizar as crianças que passavam pela loja do Sr. Raimundo depois da escola para buscar rebuçados. E a relação de amor-ódio-obsessão do casal que vivia na casa onde hoje é um café. E a casa onde viveu Alexandre O’Neil. E como a roupa era lavada no rio. E como a avó-ninfa D. Mariazinha fazia bonecas de pano, com restos de tecidos e retalhos, para as meninas pobres da vila.

Vivemos aquilo. Entoámos, em conjunto, poemas que foram escritos por estas avós-ninfas; provámos o mel feito na região; deixámos uma mensagem especial a estas avós, bem como a futuros moradores que fossem ocupar os espaços vazios de algumas ruas – dando início a um novo ciclo, a uma nova metamorfose!

Assim, esta experiência – completamente imersiva – foi poesia em estado puro. Poesia em duas vertentes – aquela que retrata aquilo que é ser-se humano e que nos foi deixada pelos nossos avós, refletindo centenas de tradições e memórias que foram passando de geração em geração, e aquela que todos somos capazes de criar perante a complexidade que é esta mesma existência, este mesmo ser-se.

Para fechar este percurso fabuloso, e ainda em Constância, eis que nos surge uma pitada mais de magia. Com mistério, humor e um sorriso que se quer esconder mas que acaba por revelar-se, surge em plena Praça Alexandre Herculano o trio Les Chants Des Pavillons. Com recurso a instrumentos artesanais (um violino Stroh, um baixo Stroh e um violoncelo Stroh), era impossível a qualquer transeunte ficar indiferente à, uma vez mais, poesia – desta vez em formato musical – que estes brilhantes músicos traziam consigo e espalhavam à sua volta. Num misto entre provocação e brincadeira, sempre a mudar de local de atuação e a interagir com o público, este foi um momento imprevisível e genuinamente envolvente. Um (mini) concerto desconcertante, que fez com que os espetadores deixassem de ser meros espetadores para passarem a fazer, também eles, parte do espetáculo.

E depois de experiências culturais tão ricas, a paragem seguinte foi Mação, onde jantámos no restaurante O Pescador – que nada deixou a desejar, desde as deliciosas entradas que roubaram parte do apetite, passando pelo saboroso prato principal, terminando com apetitosas sobremesas, e não descurando do simpático e prestável atendimento.

O relógio batia nas 21h30 e era hora de seguir para o auditório Elvino Pereira – onde a noite prometia, com atuação do músico brasileiro Castello Branco. Numa mistura de estilos muito própria (bossa nova, eletrónica, experimental, chill out e minimalista – sim, tudo isto, numa obra chamada Sintoma, o seu mais recente álbum), Castello conseguiu envolver-nos desde o primeiro minuto, com a notória paixão pelo que faz, com o sentimento que imprimiu em cada canção, em cada letra e em cada mensagem, pela forma como namorava a sua guitarra e o microfone.

O concerto teve um toque genuinamente intimista, no qual o artista tomou o seu tempo para partilhar com a audiência o seu percurso de vida e o que o fez chegar ali, àquele momento, àquele encontro. Com dois álbuns lançados (bastante aclamados pela imprensa especializada), muitos concertos marcados e até mesmo um livro editado, Castello é, sem qualquer dúvida, um dos nomes mais recentes de maior destaque no panorama musical brasileiro – mas que aos poucos conquista vários países espalhados pelo mundo fora. Ficámos também a saber que, como tantas outras pessoas, o artista adora a gastronomia portuguesa e afirma que nunca comeu tão bem como aqui. Por nós será sempre bem-vindo, para nos brindar com a sua musicalidade, espiritualidade e uma sensibilidade extrema.

Ainda que este concerto fosse uma apresentação do seu álbum mais recente, Sintoma, a última música foi “Necessidade”, do primeiro álbum Serviço, que merece destaque por parte da sua letra: “Viver gera necessidade / E aí Chega que me confundo todo / Amar gera propriedade, daí / Já não é mais aquele amor / Que vem, vai, vem, vai e vem vai / Cheio de si, vai e vem, vai, vem, vai / Cheio de si”. A letra perfeita para terminar a noite com um tom poético – como o foi o dia todo, como é a nossa vida toda.


 

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