As hipérboles servem para garantir cliques, mas é impossível chegar a outra conclusão senão esta: Ben Esposito e a equipa da Angel Matrix estão de parabéns por esta viagem louca e inesquecível.
Vamos colocar de partes os rodeios tradicionais de uma análise, as introduções longas, a contextualização do “quem, quando, como, onde, porquê” e deixar tudo o mais claro possível. No final deste texto, vocês vão encontrar o selo “Recomendado”. Se quiserem passar para o último parágrafo e cortar caminho, poderão comprovar que não estou a mentir ou a tentar passar-vos a perna, mas sim a ser o mais sincero possível. O selo está lá e é aquele que identifico aqui.
No Echo Boomer, “Recomendado” serve como classificação máxima no que toca a análise de videojogos, um “selo” que não atribuímos de ânimo leve e que serve, como qualquer outra métrica ou sistema de classificação, para identificar os videojogos que consideramos como imperdíveis, até intemporais. Neon White é um desses videojogos e se pudesse dar várias vezes o mesmo selo de recomendação era o que faria.
Esta análise é, como qualquer outra, uma tese sobre o porquê de considerar Neon White um dos melhores do ano, senão mesmo um dos melhores videojogos independentes que já joguei, ao lado de Hotline Miami, SUPER HOT e Lone Survivor. As suas origens são, no entanto, humildes, fruto da imaginação de Ben Esposito, quatro anos depois de Donut County e da sua aventura familiar, inexistente sem as suas inspirações em Katamari Damacy, mas igualmente humorística, leve e autoconsciente. Neon White mantém este amor pela comédia, nomeadamente nas interações entre as suas personagens, que decorrem num formato próximo às Visual Novels – personagens estáticas, diálogos nem sempre curtos e alguns efeitos visuais e sonoros que sublinham as reações de cada um dos intervenientes -, mas vai mais longe. É simultaneamente uma mescla de homenagens e algo novo, original, nunca feito desta forma e muito menos com o cuidado visual e sonoro que Neon White atinge nos seus maiores picos.
Neon White é um videojogos imperdível e intemporal e se pudesse dar várias vezes o mesmo selo de recomendação era o que faria.
Se a narrativa de White e dos restantes Neon move-se num formato de “romance visual”, já a jogabilidade desdobra-se em múltiplas partes, todas elas equilibradas e bem implementadas numa campanha muito mais longa e satisfatória do que podia antever. Isto porque Neon White é tão complexo, como simples, intuitivo, mas também desafiante, tal como é focado e bem estruturado no que toca às suas mecânicas, mas também à forma como comunica essas mecânicas com o jogador e as progride durante a campanha. Parte jogo de ação e parte jogo de cartas, Neon White constrói este mundo de anjos e demónios, de assassinos amnésicos através de níveis curtos, divididos entre 12 capítulos e uma área principal onde podem interagir com as restantes personagens, participar em missões adicionais e descobrir mais sobre este mundo ausente de um Deus.
Os níveis são maioritariamente curtos – à exceção dos combates contra bosses, que se desenrolam ao longo de várias fases e de cenários mais extensos -, mas é isso que os torna tão empolgantes. Neon White é uma corrida constante contra o relógio, um speedrun em ponto grande, onde o nosso objetivo passa pela eliminação dos vários demónios em campo, mas também à descoberta do caminho mais rápido para atingirmos a melhor classificação. Em Neon White, a classificação mais alta é Ace, e é através deste sistema de pontuação que sentimos a progressão de White e da própria campanha, ao sermos recompensados com pontos de Insight no final de cada nível. O Insight e o Ranking de White, que vai de 99 a 1, limitam a progressão, determinando se estamos preparados para a próxima vaga de níveis. Mas não se assustem. Se alcançarem regularmente as melhores classificações e se encontrarem todos os presentes escondidos – mais um elementos que aprofunda a vertente Visual Novel do jogo, permitindo-nos oferecer brindes às personagens para que possamos desbloquear diálogos, missões e até memórias perdidas de White -, raramente vão sentir que a progressão está num constante “pára-arranca”. Neon White é muito mais acessível do que aparenta ser e não é tão intimidante como possam pensar.
A sua acessibilidade é evidente pelo seu estilo visual, de contrastes entre branco e cor – que combinam para criar um jogo onde tudo é claro e nunca confuso a nível visual -, mas também pelos objetivos imutáveis – eliminem os demónios e cheguem ao final, dê por onde der – e as ajudas que surgem após o final de cada nível, como dicas e o fantasma do vosso melhor tempo. Esta acessibilidade é transportada para a jogabilidade e o seu sistema de cartas, que funcionam como armas em Neon White. Desde pistolas a espingardas, metralhadoras, lança-rockets, entre outras, White tem tudo o que precisa para eliminar as criaturas que se colocam no seu caminho. A campanha apresenta deliciosamente cada um destes elementos e consegue, dentro da sua simplicidade mecânica, tornar o já familiar em surpresas constantes. Isto porque as cartas não servem apenas o propósito de eliminar demónios, mas também de deslocação, com cada uma delas a apresentar uma habilidade única. Ao sacrificarmos as cartas, podemos ativar um duplo salto, um boost, um gancho ou uma queda destrutiva para quebrarmos qualquer barreira.
Neon White nem sempre é fácil, mas é justo. Com três vidas à nossa disposição, e a possibilidade de curarmos os pontos perdidos ao longo dos níveis – ainda que esta opção nem sempre esteja disponível -, a campanha constrói-se entre a velocidade, os disparos rápidos, mas também a nossa destreza, pedindo-nos para dominar as suas mecânicas simples e procurarmos os melhores momentos para as utilizarmos. O sacrifício das cartas é uma funcionalidade tão simples, mas tão importante que nos leva a pensar muito bem na forma como as podemos utilizar. Uma vez sacrificada, já não poderemos reutilizar aquela carta até encontrarmos uma semelhante e uma carta mal utilizada pode condicionar o nosso progresso ou o nosso melhor tempo.
As habilidades das cartas são fenomenais, não porque são tratadas de uma forma nunca antes vista, mas porque são familiares e sempre intuitivas. Ao apostar na simplicidade, Ben Esposito criou os alicerces para uma maior experimentação dentro da jogabilidade, com os jogadores a procurarem caminhos alternativos ou métodos mais velozes para conseguirem chegar ao fim, com cada carta a seguir mais do que um propósito em jogo. Acredito que muitos dos caminhos descobertos pela comunidade não tenham sido previstos pela equipa, o que demonstra que Neon White é uma experiência emergente e muito diferente de jogador para jogador. Iremos contar histórias diferentes sobre os seus níveis e isso é fascinante para mim, como algo tão direto, tão supostamente tradicional e pouco inovador consegue ser das experiências mais empolgantes que tive em 2022, onde uma simples carta, salto ou desvio podem mudar por completo a progressão de um nível.
Neon White é uma experiência emergente e muito diferente de jogador para jogador.
O design dos níveis complementa eficazmente as mecânicas do jogo e sinto que foram construídos até ao milímetro, sem deixar nada ao acaso. Neon White é um jogo que jorra amor e basta olhar para as estrutura verticais, para a expansividade dos panos de fundo, para as cores, modelos e pormenores para compreendermos como Ben e a sua equipa adoram o universo que criaram. Os níveis exponenciam as vertentes de jogo de plataforma, mas também de ritmo que senti em Neon White ao apresentarem obstáculos, plataformas e inimigos que nos obrigam a estar constantemente em movimento. Sentimos que estamos a seguir um ritmo pré-definido, a saltar entre inimigos e plataformas enquanto absorvemos a ambiência e as mecânicas do jogo, onde algo tão banal como uma corrente de água é capaz de mudar o fluxo da nível.
A água é um tema constante em Neon White, seja pelo seu azul espelhado nos cenários, seja pela forma como aumenta a velocidade de White e nos dá a oportunidade de manter a inércia da personagem. Com as habilidades das armas e com o design dos níveis, começamos a absorver as nuances da jogabilidade, a ver novos atalhos, a utilizar um salto estratégico para evitar grandes trechos dos cenários para uma melhor pontuação. Uma bomba posicionada no local certo quebra por completo a suposta linearidade destes níveis curtos e expande a imaginação dos jogadores. Resumindo, senti que não existe um único elemento a mais em Neon White, tudo faz sentido e serve um propósito muito específico. É um jogo de betão.
Tinha as minhas dúvidas em relação à narrativa e às personagens de Neon White, mas fui conquistado ao longo da campanha. Não estamos perante uma história surpreendente ou muito arrojada a nível temático, mas é sólida e muito segura do que quer ser: uma banda desenhada animada, um anime ocidental, quase um Isekai para pervertidos. A narrativa não será universalmente apreciada da mesma forma e muitos passarão à frente em prol da jogabilidade frenética dos mais de 90 níveis disponíveis, mas é um complemento importante à visão de Neon White. E esta ambiência seria impossível sem a banda sonora de Machine Girl, naquela que é capaz de ser a colaboração mais importante e criativamente deliciosa que presenciei desde Max Payne 3 e do trabalho intemporal dos HEALTH. A energia da banda sonora é contagiante, divertida, quente, até misteriosa e assustadora quando tem de o ser, mas é sempre perfeitamente composta para cada um dos capítulos ou situações narrativas. E tal como Max Payne 3, arrisco-me a dizer que a banda sonora sobrevive fora do jogo e por si mesma, ainda que chegue ao seu exponente máximo quando combinada com a ação tresloucada e igualmente milimétrica de Neon White.
Para aqueles que duvidaram da minha frontalidade no início desta análise, aqui estamos nós, no famoso parágrafo de conclusão e com o selo de “Recomendado” à vista. Agora já não existem dúvidas: Neon White é, na minha opinião, um dos melhores jogos de 2022. Sinto que podia ficar horas a falar e a identificar mais situações, mais funcionalidades, mecânicas, pormenores de design, mas não vale a pena cansar-vos. Mantenhamos a mesma falta de rodeios com que começámos. É verdade que escrevo de coração cheio, completamente rendido a Neon White, mas vejamos esta paixão como um sinal de que existe vida, excitação e emoção no coração de um crítico com mais de 10 anos de carreira.
É um jogo de betão.
No final do dia, é isso que importa: sermos surpreendidos, sentirmos gosto pelos videojogos, querer falar sobre eles com o mesmo sorriso infantil com que começámos a escrever. Que os videojogos sejam sempre assim, capazes das maiores alegrias, já que a comunidade e fãs da indústria não valem a ponta de um corno.
Cópia para análise (versão PC) cedida pela FortySeven.