Uma viagem emocionante pela fé e a condição humana num dos títulos mais peculiares e marcantes de 2021.
Escrevo esta análise horas antes do lançamento de Jett: The Far Shore. Não conheço a opinião dos meus colegas, nacionais ou internacionais, não pesquisei as reações do público aos últimos trailers e desconheço se existe uma expetativa associada a este título de exploração espacial, que chegará a 5 de outubro ao PC, PlayStation 4 e PlayStation 5. O novo título da Superbrothers vive, neste preciso momento, na ambiguidade. Este é um dos últimos momentos em que Jett: The Far Shore é o melhor e o pior videojogo deste ano e sinto que o deveria saborear. Hoje é um novo dia, de revelações e descobertas, que colocarão esta aventura pessoal sobre uma nova luz. Interpretações irão surgir aos poucos, análises à sua representação de lendas, mitos e de fé numa era de tecnologia. A esperança poderá dar origem à deceção, quem sabe. Mas neste momento, nestas últimas horas, Jett: The Far Shore é tudo, é nada, mas é, acima de tudo, uma experiência única.
A minha relação com Jett: The Far Shore foi atribulada. As primeiras horas obrigaram-me a retrabalhar as minhas expetativas e a redefinir o que considero ser importante e incontornável num título de exploração espacial. Pelos trailers, a minha mente divagou entre a possibilidade de caminharmos por mundos alienígenas enquanto cartografávamos novas terras, de ilhas a arquipélagos, e catalogávamos a fauna e flora com as quais teríamos de conviver nesta nova realidade. E Jett: The Far Shore é exatamente isto. É certo que não podemos parar a nave em qualquer parte do planeta e caminhar livremente, mas é um jogo de exploração, de reconhecimento e de uma busca por uma segunda vida algures no espaço, representando um equilíbrio sincero entre o realismo de uma situação de terraformação – de uma progressão lógica que nos leva a conhecer, a adaptar e a viver neste terreno inóspito –, enquanto se mantém mergulhado na simplicidade das suas ações e na necessidade primal do ser-humano em partir à descoberta.
Mas foi necessário trabalhar as expetativas que, inconscientemente, depositei em Jett: The Far Shore. Não é apenas a exploração, que está meticulosamente delineada ao longo da campanha, que move esta peça sentimental, mas sim a união entre os vários exploradores e a sua relação com as lendas e religiões que lhes foram ensinadas no seu planeta natal, agora a anos de luz. Apesar de seguir a estrutura tradicional do seu género, o novo título da Superbrothers é uma experiência mais ponderada, mergulhada numa calma reconfortante, onde a maioria dos objetivos podem ser terminados na tranquilidade da nossa nave. É um jogo muito mais narrativo e focado nas suas personagens do que esperava. Defendo que até certo ponto não é a exploração, em si, que interessa. Não é a sensação de solidão, que tanto procuro neste género de jogos, que deve ser enaltecida em The Far Shore. Antes pelo contrário, é a união. E a Superbrothers conseguiu recriar em mundo de desafios e de magia ao focar-se numa narrativa que se mantém intrigante do princípio ao fim, que move Mei, a nossa personagem, por desafios de fé e de destino, e se mune de cenários surrealistas, espirituais e focados em diálogos, especialmente com Isao – com quem partilha o controlo da sua nave –, que constroem esta exploração física, mas também pessoal.
A gestão de expetativas foi dura, mas progressivamente recompensadora. É indescritível sentirmos o abandono da nossa terra natal para partirmos em direção ao desconhecido, e é aqui que The Far Shore inicia a sua campanha. Vemos a realidade de Mei, onde cresceu e viveu, num retrato fugaz, mas tão vivido e real como qualquer outra civilização que descobrimos nesta área. As tribos, as cabanas de palha e madeira, a progressão de uma civilização que lenta, mas seguramente caminhou em direção às estrelas, em busca da Hymnwave e dos seus mistérios – com a Superbrothers a apostar novamente num foco musical. Tudo isto retratado em poucos minutos, mas cujo peso emocional é incontornável. Sentimos que abandonámos o berço para viajar pelas estrelas. Quando voltamos a acordar, sabemos que as personagens que vimos minutos anos faleceram. Não passaram minutos, mas anos, talvez décadas. Assim se sente o peso da perda, mas o novo planeta apresenta desafios e atribulações inesperadas. Não há tempo para continuar a pensar no passado. A sobrevivência e a descoberta toldam a visão e a esperança desta pequena equipa, agora sozinha num planeta alienígena.
A campanha de Jett: The Far Shore está dividida por vários capítulos. Outro afastamento deliberado ao género em que se insere. Existe uma gestão de tempo curiosa, com o jogo a indicar-nos a duração de cada capítulo, pedindo-nos, inclusivamente, a nossa atenção e tempo: se possível. Não é uma exigência, mas sim uma sugestão. Esta divisão por capítulos constrói-se quase como as faixas de um álbum, com cada música a iterar sobre a anterior, expandindo o universo de The Far Shore e demonstrando eficazmente como a equipa se instala, vive e explora o seu novo planeta. É uma escolha estranha, mas que revela o quanto a Superbrothers estava focada no design particular de The Far Shore e na história que queria contar. Não há espaço ou tempo para mais: esta é a experiência que a equipa queria partilhar connosco.
O foco na narrativa levou a Superbrothers a tomar várias decisões que podem parecer peculiares a quem vê a experiência de fora, como a aposta exclusiva na viagem e no controlo da nossa nave através de um planeta inóspito. É certo que existem momentos em que saímos e vemos o mundo pelos olhos de Mei, mas são muito espaçados e quase sempre motivados pela narrativa. É uma experiência que é tão espiritual como mecânica, onde temos de controlar a nave, dominar as suas funcionalidades e evitar a fauna mortífera que nos tenta parar. Mas a aventura é esta, é a exploração através da nave, à distância – numa perspetiva que podemos controlar, mas que nunca se aproxima o suficiente –, que está no cerne de The Far Shore. É a descoberta de monumentos, movidos por objetivos nem sempre claros, que constituem a experiência deste jogo tão peculiar como a história que procura retratar.
O controlo da nave é suficientemente fluído e intuitivo para não se tornar problemático, mas esta não será a vossa primeira impressão. Não foi a minha, posso dizer-vos com toda a sinceridade. Apesar da simplicidade dos seus controlos, que não exigem um mapeamento complexo de comandos, existe um período de habituação que poderá testar a vossa paciência. Existe uma aposta no realismo que é de louvar, mas que pode levar a alguma confusão durante as primeiras horas. É preciso, por exemplo, ligar o motor da nave antes de arrancarmos e é necessário compreender que esta encontra-se sempre em movimento assim que ligamos a ignição. É preciso também controlar o motor e não deixar que sobreaqueça, tal como é necessário saber quando travar e manusear as curvas suaves da nave enquanto evitamos colinas irregulares. Também é preciso ter alguma paciência durante estas primeiras horas e não desistir quando a nossa nave embate constantemente contra as montanhas ou as ribanceiras das ilhas e aprendemos a utilizar a sua velocidade de marcha. Faz tudo parte do processo.
A frustração dissipa-se à medida que desbloqueamos novas funcionalidades para a nossa nave. Tal como uma personagem, o nosso veículo cresce ao longo da campanha e desenvolve novas habilidades que tornam a jogabilidade não só mais compreensível, como entusiasmante e divertida. Abandonamos a rigidez das primeiras horas e das primeiras impressões para considerarmos a nave como nossa, tal como Mei, e desbravamos novos territórios com a possibilidade de utilizar vapores para arrefecermos o motor e libertarmos a sua acumulação para afastarmos algumas das criaturas que nos perseguem. A sensação de velocidade é uma constante e é um processo recompensador que surge através desta evolução controlada da nossa nave, mas também das nossas habilidades enquanto navegadores. Aprendemos a saber quando realizar um salto, ou Hop, para evitar obstáculos e aumentar a nossa velocidade, ou quando devemos parar para recolher algo com o nosso gancho e utilizá-lo como arma. Com o tempo, começamos a saber quando parar, quando realizar uma curva e qual funcionalidade a utilizar para inspecionarmos a fauna e flora que devemos registar e catalogar nas nossas viagens. Sentimos a nave em movimento graças às funcionalidades do DualSense, desde a pressão do motor, até à vibração do terreno por onde viajamos.
O mundo de The Far Shore não é munido de uma paleta de cores marcante ou de vistas mais impressionantes, especialmente para um título que se foca tanto na exploração e na descoberta de um mundo alienígena, mas há uma estranheza e um mistério associados ao seu design que invocam uma familiaridade e uma curiosidade em conhecer melhor esta nova realidade. A simplicidade das ilhas, das suas criaturas e plantas, combinam perfeitamente com o UI minimalista e criam uma experiência limpa, de fácil leitura, onde existem constantemente monumentos visuais que nos guiam. É um mundo que aprendemos a conhecer mesmo com a sua paleta monocromática, auxiliada por uma excelente banda sonora, a cargo de scntfc (Oxenfree, Afterparty), que enaltece a inocência da descoberta e a combina com o medo do desconhecido. Alguns crescendos musicais são arrepiantes, de uma tonalidade quente, reforçando a esperança da missão e a expansividade do mundo que exploramos. E não apenas através das suas composições musicais, mas também pelo desenho de som. As ondas do mar infinito, os sons das criaturas, o motor da nave, a fonética da linguagem criada para The Far Shore: é um poderio audiovisual.
Mas esta beleza é prejudicada por aquele que é o grande problema de Jett: The Far Shore: o seu desempenho. Não nos podemos esquecer que The Far Shore é um projeto independente e sinto que a Superbrothers foi destemida na criação destes ambientes tão expansivos. Foram necessários alguns sacríficos que poderão prejudicar a receção do título por parte dos críticos e dos jogadores, e é frustrante sentir o jogo a esforçar-se para manter um framerate consistente, a suar por todos os poros à medida que viajamos a alta velocidade ou quando saímos da nave e exploramos a base de Mei a pé. Existiram soluços constantes que foram agravados por bugs que me obrigaram a recomeçar sequências de ação porque não me deixaram regressar ao cockpit da nave e terminar a tarefa que estava a fazer. Uma pena.
A escrita desta análise ocupou-me durante várias horas. Não interessam quantas. Quando olho para o relógio, apercebo-me que o embargo está quase a terminar. É o momento da verdade. Pela minha previsão, Jett: The Far Shore vai ser um dos lançamentos mais divisórios do ano, um título que irá fascinar um grupo específico de críticos e jogadores, mas frustrar tremendamente quem não faça parte dele. Ambos os grupos estão corretos, ainda mais neste momento, nestes últimos minutos antes do final do embargo, onde tudo é possível. Se tivesse analisado The Far Shore há dias atrás, a minha análise seria movida por uma frustração e incompreensão tremendas, mas posso dizer agora que compreendo o que a Superbrothers quis fazer com este simples, calmo e ponderado jogo de exploração. Independentemente das reações ao seu lançamento, sinto que ficará comigo. Talvez não seja necessário existir um consenso. É a beleza do caos.
Cópia para análise (versão PlayStation) cedida pela Popagenda.