She Rides Shotgun não reinventa o género, nem pretende fazê-lo. Em vez disso, oferece-nos algo cada vez mais raro: uma obra sobre pessoas quebradas que tentam, contra todas as probabilidades, curar-se mutuamente.
Baseado no romance homónimo de Jordan Harper, She Rides Shotgun acompanha Nate McClusky (protagonizado por Taron Egerton), um ex-presidiário que se vê forçado a raptar a sua filha de 11 anos, Polly (protagonizado por Ana Sophia Heger), para a proteger de uma ordem de execução imposta por um gangue neonazi, após Nate ter assassinado o seu líder. A narrativa segue pai e filha numa fuga frenética entre motéis decadentes, carros roubados e encontros violentos que os forçam a uma intimidade emocional até então inexistente.
Alguns dos filmes mais marcantes do ano não são aqueles que encabeçam festivais prestigiados ou dominam campanhas de marketing multimilionárias, mas sim obras modestas que chegam sem fazer muito barulho. She Rides Shotgun é um desses tesouros escondidos. Num panorama saturado de thrillers e dramas familiares, esta obra realizada por Nick Rowland (Calm with Horses) e escrita pelo próprio Harper, Ben Collins e Luke Piotrowski (The Night House), surpreende pela honestidade emocional e uma execução sólida que merece mais atenção do que provavelmente terá. É o tipo de filme que muitos críticos ignoram por entre centenas de screeners oferecidos – e é uma pena.
Egerton entrega aqui uma das performances mais versáteis da sua carreira. Visivelmente em excelente forma física, o ator galês incorpora Nate com uma combinação de brutalidade contida e ternura surpreendente. Quando precisa de ser intenso, fá-lo com uma autenticidade quase aterradora; mas é nos momentos de vulnerabilidade, especialmente nas interações mais próximas com Polly – como quando lhe corta e pinta o cabelo para escapar à deteção – que Egerton realmente brilha. É mais um lembrete de que continua a ser um dos atores mais subestimados da sua geração, mesmo depois do reconhecimento por Rocketman ou pela saga Kingsman.
Mas se o ator é o pilar que sustenta o lado mais visceral da história, Heger é o coração, alma e motor emocional de She Rides Shotgun. A jovem atriz, com apenas 11 anos, oferece uma interpretação que desafia qualquer expetativa. A complexidade emocional exigida pelo papel – luto, medo, raiva, amor, confusão moral – seria desafiante até para uma atriz adulta. E, no entanto, Heger encara cada cena com uma maturidade desconcertante, desde os olhares silenciosos carregados de peso até à fisicalidade pura, como na impressionante sequência final em Slabtown, onde corre em pânico enquanto tiroteios e explosões acontecem à sua volta. Trata-se, sem qualquer exagero, de uma das melhores interpretações infantis do século XXI.
Rowland demonstra o seu talento para captar a vulnerabilidade humana em ambientes opressivos, revelando uma sensibilidade rara para a relação pai-filha. A sua visão aposta numa estética naturalista e numa câmara próxima que permite aos atores respirar. A paisagem árida e melancólica do filme ecoa a solidão interna das personagens, que atravessam arcos verdadeiramente humanos.
Dito isto, o argumento não escapa a certos tropeços estruturais. O ritmo, por vezes, perde o fôlego no segundo ato e algumas linhas narrativas sentem-se desnecessárias, em particular uma sequência com um polícia corrupto introduzido já perto do final – previsível desde o início e sem o impacto dramático desejado. Esta adição acaba por atrasar o clímax emocional entre Nate e Polly, enfraquecendo ligeiramente o poder da resolução.
A música composta por Blanck Mass é outro dos destaques técnicos. Compostas por melodias eletrónicas melancólicas, as faixas não se sobrepõem à narrativa, mas acentuam os seus momentos mais emotivos. A cena em que Polly cuida da ferida da perna do pai numa capela abandonada de camionistas, ao som de uma melodia subtil e comovente, encapsula a capacidade de She Rides Shotgun de equilibrar violência e ternura com notável delicadeza.
She Rides Shotgun é, acima de tudo, uma meditação sobre a herança da violência e a possibilidade de rutura com ciclos destrutivos. O filme explora a ideia de que o amor parental, mesmo quando tardio ou imperfeito, pode funcionar como uma força redentora capaz de contrariar uma trajetória aparentemente inevitável. Nate, um homem moldado por anos de brutalidade e erros, vê em Polly não apenas a necessidade de redenção, mas a oportunidade de ensinar, ou talvez implorar, que a sua filha escolha outro caminho. Até que ponto os filhos estão condenados a repetir os erros dos pais? É possível ensinar empatia num mundo que recompensa a brutalidade? Existe um momento em que Polly tenta disparar contra um dos perseguidores, e a reação de Nate resume todo o dilema moral do filme: a tentativa desesperada de proteger a inocência de uma criança num mundo onde esta é constantemente violada.
A obra revela ainda como a violência estrutural – seja através de gangues, polícias corruptos ou a ausência de estruturas de apoio – empurra famílias inteiras para margens existenciais, forçando decisões impensáveis. O gesto de Nate ao ensinar Polly a usar um bastão para se defender é simultaneamente um ato de amor e um símbolo devastador daquilo que o mundo exige dela. E, no entanto, por entre todo o caos e destruição, há momentos de ternura, empatia e reconexão emocional que sugerem que, talvez, ainda haja tempo para reescrever o destino.
VEREDITO
She Rides Shotgun é uma história relativamente simples, até mesmo formulaica – um homem em fuga, uma redenção procurada, uma relação familiar curada sob fogo cruzado. Mas é na forma como conta essa história, com honestidade emocional, prestações de altíssimo nível e uma realização intimista e inspirada, que encontra a sua força única. Não reinventa o género, nem pretende fazê-lo. Em vez disso, oferece-nos algo cada vez mais raro: uma obra sobre pessoas quebradas que tentam, contra todas as probabilidades, curar-se mutuamente. E se Taron Egerton reafirma o seu valor enquanto ator versátil e comprometido, é Ana Sophia Heger quem verdadeiramente se impõe – uma revelação absoluta, que não só carrega o peso emocional da obra como a eleva com uma profundidade rara. A sua prestação não é apenas notável “para a idade”. É notável, ponto final. Uma estrela nasce aqui… e o cinema não a pode ignorar.