O prazer da descoberta e a descontração de uma aventura de verão são os motes para um dos indies mais interessantes e coloridos de 2024.
O ato de contar uma história, seja num romance, peça de teatro ou através da câmara do cinema, é motivado pela possibilidade de vivermos dentro de um mundo que não é (quase sempre) o nosso. Através das descrições que acompanham os retratos de salas e planícies fantasiosas ou então os movimentos de câmara e filmografias que pintam castelos, fortalezas e aldeias através das suas histórias e personagens, podemos habitar estes mundos e ir além do papel, do palco ou do ecrã da televisão. A arte analógica mune-se da imaginação, mas é limitada no que toca ao contacto entre utilizador e a obra artística, que se mantém inalterada. Fora a nossa interpretação e as emoções que as artes clássicas proporcionam, a relação é unilateral. Mas com o advento dos videojogos, a barreira é quebrada e não lemos ou imaginamos os mundos que dão vida a aventuras como Starfield ou Elden Ring: nós somos transportados para o interior destas realidades virtuais. Através das nossas decisões, nós influenciamos como a narrativa se desenvolve e como um mundo evolui ao longo de horas digitais em mundos através de linhas de programação. A experiência de pertencer e estar dentro de um mundo que podemos impactar é um dos maiores trunfos dos videojogos enquanto experiências interativas e narrativas.
Entrar no mundo de Flock é um reflexo da magia que só os videojogos conseguem proporcionar. Entre regiões coloridas, dividas por biomas que transbordam personalidade, onde voamos por pântanos, florestas de enormes cogumelos, praias que brilham com a luz do pôr-do-sol e colinas verdejantes que se expandem até ao horizonte vertical; há um mundo que ganha forma e que se molda à medida que ganhamos, enquanto jogadores, agência sobre os seus vários elementos. É mundo que se introduz mergulhado em nuvens espessas que escondem as suas várias regiões, mas cuja vida é descoberta à medida que catalogamos novas espécies de animais e desvendamos os mistérios em torno da sua história.
A exploração está sempre associada à nossa curiosidade, à forma como analisamos e abordamos as pistas que nos levarão ao próximo grande acontecimento, onde todos os sons e efeitos visuais escondem algo mais sobre a realidade que nos rodeia. Desta forma, o mundo de Flock torna-se familiar ao ponto de não necessitarmos do seu mapa e conseguimos reconhecer os locais através de pistas audiovisuais como se se tratasse de uma linguagem sem diálogo. E isto só é possível devido à abordagem da Hollow Ponds à exploração, onde não existe pressão de tempo – à exceção de desafios adicionais – e cuja catalogação requer mais paciência e curiosidade do que destreza ou rapidez de controlos.
O design das várias regiões é impressionante devido à quantidade de elementos decorativos que conseguem adicionar personalidade e um certo individualismo a um mundo já bastante coeso a nível visual. No entanto, a exploração é enaltecida pela presença das adoráveis criaturas que temos de catalogar. Como um invulgar pastor, nós temos a missão de ajudar a nossa tia a catalogar todas as criaturas que fazem parte da fauna local. Com a ajuda do nosso enorme pássaro, onde permanecemos ao longo da campanha – nunca abandonamos o nosso companheiro de penas -, temos de percorrer as regiões em busca das criaturas, que podem estar muito bem escondidas – algumas estão completamente camufladas e precisamos de esperar pela altura do dia ideal para finalmente as apanharmos – ou então visíveis em campo, mas sempre atentas e capazes de fugir a qualquer altura. O processo de catalogação é simples e requer apenas que consigamos encontrar os animais para ficarem registado na nossa lista de espécies. Quando encontramos uma criatura, temos a possibilidade de adivinhar o seu tipo e depois o seu nome através de descrições curtas. Através da análise da fisionomia, cores e comportamentos da criatura, conseguimos identificar qual é a sua espécie e, por fim, adicioná-la ao nosso catálogo. Como o foco está assente na descoberta, a catalogação não tem um estado de derrota. Se falharmos três vezes na identificação, Flock indica qual é a escolha certa e a aventura continua sem penalizações.
A campanha desenrola-se em volta do desbloqueio das várias regiões e da descoberta de criaturas raras que voltaram a povoar a ilha. Por vezes, o objetivo não é tão claro e somos obrigados a explorar as novas zonas em busca de algo que ative a próxima missão; quase sempre uma criatura ou então um objeto ou estrutura que revele mais sobre o mundo de Flock. O que é imprescindível à aventura é a nossa vontade em conhecer melhor o comportamento dos Bewls, Cosmets, Gleebs, entre outros, que temos de catalogar. O som é absolutamente fulcral à progressão de Flock e é necessário estarmos atento aos chamamentos e verbalizações das criaturas para descobrirmos onde se escondem. Mesmo que não tenhamos pistas suficientes para decifrarmos o tipo de criatura se esconde, por exemplo, numa pequena floresta algures na região mais a este, o som que a criatura faz é o suficiente para sabermos que algo está presente e que poderemos voltar mais tarde – talvez ao final do dia ou então durante a noite, já que algumas criaturas são noctívagas – para decifrarmos a sua identidade. É um processo de reconhecimento ponderado e com um ritmo reduzido que puxa pela nossa paciência e resiliência em descobrir tudo o que podermos sobre o mundo de Flock.
Fora a narrativa em redor da ilha e das suas criaturas míticas, Flock segue uma estrutura assente na exploração e na constante catalogação das criaturas, onde a longa lista de espaços vazios vão sendo preenchidos pelo nosso trabalho de investigação. No entanto, a catalogação não é a única forma de interação com o mundo e podemos atrair a atenção das criaturas para que se juntem a nós. Com a possibilidade de aumentarmos o tamanho do nosso rebanho, podemos ter connosco qualquer uma das criaturas que descobrimos na região. Através do uso de apitos específicos, nós podemos imitar o canto das criaturas e convencê-las a viajarem connosco. É aliciante ver o nosso pássaro a ser acompanhado por um leque colorido de criaturas de várias formas e feitios, voando ao nosso lado e até ajudando, ainda que nem sempre com grande efeito, no encantamento das restantes criaturas. Não é propriamente uma caça ativa e não existe a necessidade de encantarmos todos os animais, apenas temos de as catalogar, mas é um elemento adicional que nos aproxima mais dos pequenos monstros e cria uma maior ligação com o mundo natural de Flock.
Para além das criaturas, temos ainda a possibilidade de cuidar de ovelhas que nos ajudam a encontrar itens secretos e os apitos escondidos. Em todas as regiões podemos encontrar montes de relva que servem de esconderijo para os ladrões traquinas. Durante a introdução, estas criaturas assaltam a tia do protagonista e espalham-se pela região com os vários apitos que nos permitem comunicar com os restantes animais. Para descobrirmos estes ladrões voadores, necessitamos da ajuda das adoráveis ovelhas, que devoram os terrenos de relva até revelaram o paradeiro dos nosso alvos. As ovelhas servem também como auxilio aos colecionáveis do jogo, na forma de itens e de peças de roupa que podemos adquirir. À medida que devoram a relva, a ovelhas têm de ser tosquiadas e é com a lã que compramos novas roupas. Não é um sistema empolgante pela sua dificuldade ou profundidade, mas funciona muito bem ao estruturar a exploração em torno dos pontos de relva, recompensando-nos até quando não encontramos um dos “apitos” necessários para a progressão da campanha.
O mapa fica exponencialmente mais extenso ao longo da campanha. Uma pequena região, que podemos percorrer em poucos segundos, rapidamente transforma-se numa longa ilha que requer minutos para percorrermos todas as suas zonas. O nosso pássaro tem acesso a um boost, mas a deslocação é lenta e a velocidade nem sempre satisfatória. Quando estamos a descobrir as zonas e a pesquisar todas todos os seus recantos em busca de criaturas, a velocidade não é um problema; é suposto perdermos tempo a analisar a ilha e a conhecer melhor o espaço. Mas quando precisamos de regressar à aldeia, onde encontramos a maioria dos NPC do jogo, o trajeto prolonga-se sempre que expandimos a ilha e a deslocação perde alguma da sua magia. A Hollow Ponds procurou mitigar este problema através de monumentos que aumentam a velocidade do nosso pássaro, mas a distância continua a ser sentida.
Outro problema surge na forma como o jogo deteta a colisão do pássaro dentro dos cenários. Se aumentarmos muito a sua velocidade, ou se passarmos pelas zonas ainda nubladas e por desbloquear, a aceleração é tão acentuada que o pássaro dispara contra os elementos decorativos, o que obriga o modelo a tentar evitar a colisão e a mudar constantemente de direção até que perdemos o impulso. Não são problemas maiores, especialmente se abordarem a exploração a um ritmo mais lento, mas podem agravar a experiência dos jogadores mais impacientes e daqueles que tentarão completar a catalogação das criaturas a 100%.
Flock é uma lufada de ar fresco. Não porque nos propõe uma experiência nova, mas porque traz-nos uma campanha focada e mergulhada na mais deliciosa tranquilidade. Sinto que não sou o público-alvo para o que muito intitulam de “jogos zen”, mas se podemos considerar Flock como uma ferramenta de relaxamento e tranquilidade, eu teria de concordar. A exploração é lenta, mas ponderada, alicerçada na descoberta de criaturas e no reconhecimento do mapa extenso. Sobrevoar a ilha enquanto ouvimos os sons da fauna à nossa volta e tentamos compreender como cada animal se comporta e o que temos de fazer para finalmente conseguirmos catalogá-los é um momento que ficará como um dos melhores que tive em 2024. Apesar dos seus problemas mecânicos, nomeadamente no controlo do pássaro em velocidade, nada consegue estragar os momentos em que estive sozinho a sobrevoar por cogumelos gigantescos enquanto via criaturas místicas, tão coloridas, como bizarras, a tornarem-se familiares ao meu olhar. E sabem qual é a melhor parte? Flock pode ser jogado online na companhia de outros jogadores, onde todos trabalham para o meu fim de catalogarem todos os animais em jogo.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela fortyseven.