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Uma piada sobre flatulência que ganhou a forma de um jogo de plataformas competente e ocasionalmente muito divertido, ainda que pouco original.

Há muito tempo que não sentia a minha idade como a jogar Hell Pie. Senti-me de tal maneira velho e com vontade de gritar para os jovens “não pisarem a relva” que tive de parar e respirar fundo. Afinal, estarei assim tão fora do público-alvo da Sluggerfly para me sentir assim? Ainda me recordo de achar imensa piada a jogos como Hell Pie, que abraçavam o humor absurdista e repugnante que tanto marcou a nossa geração, tal e qual como em 2004/2005, ainda na era da PlayStation 2, GameCube e Xbox. Mas cresci, estou mais velho e já só renovo o Cartão de Cidadão de 10 em 10 anos – estou noutro patamar. Hell Pie faz-me sentir assim, como uma pessoa que já não compreende o “humor dos miúdos” e não lhe perdoo isso.

Mas não se enganem, não escrevo com tristeza. Não desejo achar piada a Hell Pie e disfarçar que ainda sou um adolescente algures no início do Século XXI, antes pelo contrário, sinto-me confortável no seu cinismo. Hell Pie quer ser o mais nojento, abjeto e desconfortável possível, retratando um Inferno estilizado e absurdista onde no papel de Nate, um demónio assalariado, temos de criar a tarte perfeita para Satanás. Que aleatório, tão cómico! Esta premissa seria muito mais interessante se não fosse tão limitada, pouco imaginativa ou divertida como é, caindo nos clichés do género, desprovido de crítica ou de uma voz sonante capaz de criar situações desconfortáveis, mas igualmente desafiantes e humorísticas. Para Hell Pie, o humor fica-se pela flatulência, pelos cenários repletos de fezes, pelo puns, pelas personagens disformes e monstruosas, pelos diálogos aleatórios e sem qualquer peso na narrativa, cujo tom é tão diversificado como a mente de um adolescente.

Como podem depreender, Hell Pie não me conquistou pelo seu humor e muito menos pela sua representação visual deste mundo que procura ser um espelho para a sociedade atual. A imaginação da Sluggerfly é tão limitada que parece termos voltado 20 anos atrás no tempo, ao ponto de hipsters serem novamente uma punchline proeminente na campanha. Até a utilização de Nugget, o querubim que nos acompanha ao longo da campanha, é tão previsível que reviramos os olhos assim que o vemos. Podemos também apontar o dedo à forma como o jogo utiliza o imaginário de H.P. Lovecraft na sua história ou o retrato de regimes fascistas, claramente influenciados pela Alemanha Nazi, aqui personificados por fezes – e a piada é essa, mais nada. Pouco acontece em Hell Pie que seja memorável ou criativo.

Mas esqueçamos, por momentos, o humor infantil de Hell Pie. Como jogo de ação e plataformas, o título da Sluggerfly é muito mais interessante do que a narrativa e estilo visual levam a crer. Inspirado por alguns dos melhores do género, Hell Pie é um best-of, conciliando elementos de vários jogos clássicos, desde os inúmeros colecionáveis dos Collectathon até à estrutura mais aberta e exploratória de títulos como Jak & Daxter e Haven. O mundo divide-se por vários HUB, desde o inferno, onde começamos a nossa aventura, até a ilhas paradisíacas ou fábricas de enlatados. Nestes cenários, temos várias missões à nossa disponibilidade, tal como os já mencionados colecionáveis – como chifres de carneiros, latas de comida ou miniaturas de gatos -, onde podemos explorar à vontade sem quaisquer obrigatoriedades temporais. Cada HUB esconde não só os ingredientes da famigerada tarte, que determina a progressão do jogo, mas também níveis temáticos, que abandonam a liberdade dos cenários mais extensos e focam a jogabilidade na experiência mais tradicional dos títulos de plataformas.

Cresci, estou mais velho e já só renovo o Cartão de Cidadão de 10 em 10 anos – estou noutro patamar. Hell Pie faz-me sentir assim, como uma pessoa que já não compreende o “humor dos miúdos” e não lhe perdoo isso.

Hell Pie é divertido e é empolgante explorar os HUB sem preocupações enquanto encontramos todos os seus segredos. Esta liberdade de movimento cria a falsa sensação de descoberta que nos motiva a explorar todos os recantos dos cenários. Como não existem pontos de interesse sempre presentes no mapa, apenas acessíveis através de uma das habilidades de Nate, temos vontade em conhecer as ilhas ao nosso ritmo, sentimento que é complementado pelo próprio design das zonas. Cada HUB tem locais distintos, facilmente identificáveis ao longe e sentimos que existe sempre algo novo para descobrir, sempre presente no horizonte. Não é uma reinvenção do género, mas sim a apropriação da alma clássica dos jogos de plataformas em 3D que funciona muito bem devido aos controlos quase sempre limados e equilibrados de Nate.

Arrisco-me a dizer que os níveis, que funcionam como biomas distintos, são a parte menos interessante de Hell Pie porque nos roubam a sensação de liberdade que encontramos nos HUB, mas servem para quebrar a rotina e adicionar alguma estrutura às zonas. Estes níveis, que podem surgir da exploração ou enquanto missão dada por um NPC, focam-se quase sempre num objetivo distinto – como eliminar um inimigo ou libertar outros NPC – e apostam mais nos momentos de plataformas e combate. Os confrontos são fracos, demasiado fáceis e sem grandes opções de ataque, mas são funcionais e pouco irritantes. Existe, no entanto, uma ligeira progressão no seu ritmo, porque Nate tem acesso a uma árvore de habilidades que melhora não só as suas possibilidade de movimentação, como os seus ataques, que poderá utilizar em colaboração com Nugget. Fora os combates, os níveis são muito mais lineares, ainda que exista espaço para encontrarem colecionáveis, como as latas de comida de cão – porque o humor é infantil até nestas pequenas coisas -, que servem para melhorarem as habilidades de Nate.

Até a nível mecânico Hell Pie vai beber da fonte do género, com os seus saltos e combate a relembrarem Whiplash, da Crystal Dynamics. Tal como no clássico da sexta geração, Hell Pie coloca dois protagonistas presos um ao outro através de uma corrente. O primeiro é Nate, um demónio do inferno, e o segundo é o já mencionado Nugget, um querubim que serve de arma e de gancho ao longo da campanha. Em Hell Pie, Nate é capaz de dar dois saltos, ressaltar ao embater no chão e até desviar-se rapidamente, com mais habilidades que poderão desbloquear ao longo da campanha. No entanto, existe uma mecânica que se destaca, que é o balançar de Nugget. Com a corrente, podemos baloiçar entre plataformas, ganhar inércia e manter Nate no ar durante mais tempo. É uma adição interessante que exponencia o duplo salto e restantes habilidades do nosso demónio, com o número de utilizações a ser outra das opções que podemos desbloquear com as latas de comida de cão. O que acho surpreendente é o facto da Sluggerfly não ter escolhido substituído esta mecânica pelo duplo salto, visto que servem objetivos semelhantes, mas sim combiná-los para dar aos jogadores mais opções. O que acho mais estranho é que os níveis nem sempre procuram exponenciar estas habilidades, existindo sempre uma forma de chegar às plataformas mais longínquas sem apostar nas várias utilizações de Nugget.

O desempenho é sólido, mas os bugs são demasiado constantes em Hell Pie, como personagens sem textura ou colisão, presas nos cenários, muitas vezes presas entre carregamentos e com um frame rate inferior, como se fossem autómatos, entre outras. Apesar de exibir alguma personalidade no retrato deste inferno infantil, muito colorido e com modelos percetíveis, Hell Pie não surpreende a nível visual e a sua direção de arte é tudo menos o foco deste jogo. É funcional, mas sentimos que estamos a jogar algo produzido por uma equipa pequena, um sentimento que fica mais presente à medida que avançamos na campanha e os níveis ficam mais extensos. Resumindo, não esperem ser surpreendidos por Hell Pie e esperem apenas um jogo muito funcional e sólido na jogabilidade.

Hell Pie é um jogo pensado para os fãs do género, mas penso que o humor será um verdadeiro teste para os menos pacientes. É um jogo tão infantil, tão forçosamente nojento e sujo que não chega sequer a ser irónico na forma como utiliza o seu humor – é apenas rude sem qualquer profundidade. Felizmente, a jogabilidade tem muito mais sumo e é divertido explorar os vários HUB do jogo, tal como descobrir os colecionáveis, os fatos e chifres de Nate – que adicionam habilidades como a possibilidade de vermos os pontos de interesse, a força para destruirmos objetos anteriormente inquebráveis e aumentar a sua velocidade. É um jogo sólido, mas igualmente enervante por perder tempo com o que não sabe fazer: humor.

Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Plan of Attack.

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