Promising Young Woman guarda uma das melhores estreias na cadeira de realização de sempre. Emerald Fennell entrega uma história fascinante e imprevisível que subverte impressionantemente o subgénero de vingança.
Sinopse: “Nada na vida da Cassie (Carey Mulligan) é o que parece: perversamente inteligente, tentadoramente astuta e assume uma vida noturna secreta. Agora, um encontro inesperado está prestes a dar-lhe a oportunidade de vingar o passado.”
Desde o festival Sundance 2020 que quem viu Promising Young Woman nunca parou de falar sobre o mesmo. Desde previsões bem antecipadas para Óscares até um lugar garantido em inúmeras listas de Top 10, a estreia de Emerald Fennell como realizadora de uma longa-metragem impactou inquestionavelmente todos os espectadores.
Como já é habitual, consegui evitar spoilers e escapar a imagens, clips e trailers. Pouco antes do filme começar, o único componente narrativo que conhecia era que possuía um arco de vingança. Desconhecia o que leva a protagonista a seguir esse caminho ou que tipo de vingança ia testemunhar. Portanto, fiquei perplexo com a quantidade absurda de sinopses supostamente spoiler-free em portais online conhecidos que referem imenso sobre as motivações da personagem e a narrativa geral. Não vou fazer o mesmo, mas, se ainda não viram o filme, cuidado com essas premissas.
Precisei de uma boa noite de sono para processar este filme. O argumento de Fennell carrega muitos momentos inegavelmente impactantes que me deixaram confuso sobre o que adorava e o que não apreciava tanto, por isso, esperei que os meus pensamentos assentassem antes de começar a escrever esta crítica. Felizmente, estou do lado positivo na maioria dos casos, sendo que grande parte está relacionada com a personagem de Carey Mulligan, Cassie.
Várias comparações foram feitas com a versão mais recente de Arthur Fleck em Joker. Embora perceba a origem destas, as duas personagens não podiam ser mais diferentes. Ambos os arcos de personagem são desencadeados pelos comportamentos desprezíveis da nossa sociedade, mas os protagonistas seguem um caminho tremendamente distinto.
Um dos melhores exemplos é a representação de violência nos filmes. Os espectadores ficarão surpreendidos com o desenvolvimento deste tema ao longo de Promising Young Woman, ao contrário dos assassinatos esperados e explícitos no filme adaptado de banda desenhada. A obra de Fennell transmite uma mensagem persuasiva e de fazer abrir os olhos sobre a visão da sociedade sobre acusações de violação e a capacidade dos homens em escapar, de alguma forma, destas situações problemáticas parcialmente devido à conformidade “inocente” do nosso mundo. Desde “a mulher não devia ter bebido” a “eram miúdos e ingénuos”, estas desculpas ridículas – e inúmeras mais – estão inseridas bem fundo na mentalidade da nossa sociedade.
As pessoas tendem a julgar a mesma situação de forma diferente dependendo de quem está envolvido: homens, mulheres, héteros, gays, brancos, negros, familiares, estranhos… O argumento excecionalmente inteligente de Fennell desenvolve esta ideia de uma forma brilhante que nunca deixa de ser extraordinariamente interessante. A ausência de cenas de exposição preguiçosas eleva todos os diálogos, dando-lhes um cenário autêntico e realista. Qualquer informação sobre o passado de uma determinada personagem ou uma revelação associada ao enredo nunca é filmada com o objetivo de explicar em detalhe ao público, mas sim como uma progressão natural da história. Este método de contar histórias mostra-se efetivamente intrigante durante todo o tempo de execução, culminando num terceiro ato chocantemente impactante.
Mais uma vez, sem quaisquer spoilers, Promising Young Woman é um dos filmes mais imprevisíveis que vi nos últimos anos. Atinge-me com uma reviravolta drástica sempre que acreditava finalmente ter descoberto para onde a narrativa se dirigia. Cassie é uma protagonista totalmente desenvolvida que passa por uma jornada de herói, mas não tem as caraterísticas que os espetadores geralmente associam a esse tipo de personagem. Como mencionei acima, necessitei de mais de 24 horas para interpretar e decidir quais ações de personagem realmente defendo e quais ultrapassam o limite da razão. Apesar de Cassie possuir motivos emocionalmente convincentes, algumas das suas ações não devem ser lidas como algo que as mulheres devem fazer.
Fennell tem um cuidado tremendo com as mensagens que tenta espalhar, mas o equilíbrio inconsistente do tom prejudica esta tarefa específica. Para evitar um eventual mal entendido, este filme é genuinamente hilariante em certas alturas, mas as transições entre as cenas mais leves, humorísticas e até mesmo românticas e momentos dramáticos e emocionalmente pesados estão longe de serem perfeitas. Juntamente com os últimos 10 minutos extremamente divisivos do filme, estes são os meus problemas principais. Algumas sequências em relação à vingança de Cassie podiam ser alvo de nitpick, mas honestamente, são tão insignificantes e irrelevantes que não quero nem preciso de o fazer. No entanto, gostava de ter visto uma cena onde as coisas não saíssem como planeado pela protagonista durante o seu ato introdutório.
Desde o uso de cores brilhantes e de arco-íris – estas saltam do ecrã – às variações interessantemente estranhas de canções pop populares, o arco de Cassie é acompanhado por uma produção artística excecional (Michael Perry), edição requintada (Frédéric Thoraval) e uma banda sonora nada subtil (Anthony Willis). Todos os aspeto técnicos desempenham um papel vital, incluindo os excelentes figurinos (Nancy Steiner) e trabalho de maquilhagem. Até as escolhas dos atores que geralmente retratam “nice guys” possuem o propósito significativo de alertar o público de que as pessoas perigosas nem sempre se parecem como tal. No entanto, Fennell e Benjamin Kračun (cinematógrafo) guardam o melhor para o fim.
Um take brutalmente chocante e inesquecível de dois minutos e meio deixará todos os espectadores atordoados e em postura de admiração por uma cena tão desafiadora de se filmar. Não consigo expressar por palavras o quanto este momento impactou a minha visualização do tempo restante desta obra cinematográfica. É um filme lindamente filmado, sem dúvida alguma. Todos os ângulos de câmara têm um propósito, tal como a duração de cada take. Fennell entrega uma das estreias de realização mais tecnicamente impressionantes que alguma vez experienciei. O seu storytelling fascinante e visão clara são qualidades que espero que nunca perca. É uma história extremamente arriscada da qual Fennell nunca desistiu, algo que merece ser reconhecido e elogiado.
Podia continuar a abordar tudo e todos, mas, no final, Carey Mulligan é o elemento não-técnico mais crucial de todo o projeto. Não existem muitas atrizes capazes de fazer este papel como ela faz. Na verdade, é bem provável que seja a única atriz capaz de levar Cassie para onde Fennell realmente desejava. Desde as suas expressões faciais divertidas e one-liners engraçados até às cenas emocionalmente desgastantes e devastadoras com as quais Cassie sofre, Mulligan mostra um compromisso alucinante com uma das melhores, se não mesmo a melhor performance da sua carreira. Se alguns espectadores não consideram a prestação especial, recordam-se da tal cena de dois minutos e meio em que toco acima? Fez a cena completa por ela própria, mas esta é apenas uma das várias razões pelas quais será nomeada em todas as cerimónias.
Promising Young Woman guarda uma das melhores estreias na cadeira de realização de sempre. Emerald Fennell entrega uma história fascinante e imprevisível que subverte impressionantemente o subgénero de vingança (de violação) ao abordar brilhantemente o comportamento tendencioso e de conformidade da nossa sociedade nestas situações sensíveis.
Apesar de algumas inconsistências ao nível do tom, a narrativa incrivelmente cativante não deixa ninguém indiferente, especialmente durante o terceiro ato impiedosamente chocante. Desde as escolhas de músicas pop estranhamente únicas ao aspeto colorido do filme, passando por uma edição impecável e uma cinematografia poderosa, todos os elementos técnicos possuem um impacto inquestionável no sucesso do filme, incluindo as escolhas inteligentes referentes ao elenco.
Carey Mulligan tanto consegue ser extremamente ameaçadora como muito engraçada, oferecendo a melhor prestação da sua carreira de uma protagonista totalmente desenvolvida com motivações emocionalmente ressoantes, mas também com um arco perigosamente elaborado que pode transmitir a mensagem errada para alguns espetadores.
Os últimos 10 minutos são… bem, terão de ver com os vossos próprios olhos. Um lugar bem merecido no meu Top10.
Promising Young Woman deverá chegar aos cinemas portugueses em breve.