- Publicidade -

A Nightdive Studios está novamente de parabéns por mais uma remasterização de sucesso, conseguindo atualizar um jogo conhecido pelos seus problemas técnicos. Infelizmente, os restantes problemas mecânicos e de ritmo continuam bastante presentes.

Não sei porque haveria de morrer nesta colina. Na verdade, não sei sequer porque se trata de uma colina que alguém haveria de querer subir, quanto mais recusar-se a sair dela, ao ponto de morrer por isso, mas é nessa colina em que me encontro e é assim que escolho abrir este texto. Então esta é a colina: The Thing não pode ter sequelas, prequelas ou reinterpretações. O clássico de terror de John Carpenter, um dos melhores do género – e isto é objetivo, a discussão das colinas não se aplica neste caso –, é um dos exemplos máximos de um bom guião em prol de um realizador que domina completamente a sua visão. Inspirado no original The Thing from Another World, de Howard Hawks, e na novela de John W. Campbell, intitulada Who Goes There, a obra de Carpenter é visceral, absolutamente revoltante na sua abordagem ao body horror, mas também cerebral na forma como gere a relação entre personagens e desconstrói a rotina de um grupo de homens que se vê perante o desconhecido. Um ser capaz de copiar, infetar e substituir qualquer organismo vivo, ao ponto de se infiltrar no grupo sem levantar suspeitas, procurando um escape para a prisão de gelo em que se encontra, algures na Antártida. Com a revelação do ser alienígena e das suas habilidades miméticas, The Thing transforma-se num jogo de tensão, desconfiança e horror quando aqueles que consideravam amigos poderão ser afinal os verdadeiros inimigos.

O filme termina com um sacrifício. Perante a tenacidade da criatura em propagar-se, preparada para consumir a Humanidade se alcançasse uma zona com enorme densidade populacional, MacReady (Kurt Russell) e Childs (Keith David) têm de fazer uma escolha: ou fogem ou param a criatura. Para a parar, a criatura tem de ser incinerada, obrigando a dupla de sobreviventes a destruir a sua base no processo. Com a explosão, a criatura parece ter sido eliminada, mas o único resguardo e porto seguro despareceu com ela. MacReady e Childs ficam sozinhos nos destroços da base, a quilómetros da sociedade, perdidos na noite gelada e sem um resguardo para cortar o frio que os consome. Quando termina, The Thing deixa os seus protagonistas na dúvida, novamente desconfiados na natureza um do outro, presos pela possibilidade de a criatura ainda estar viva. O elo de confiança foi quebrado e é impossível voltar atrás, um reflexo claro das tensões da Guerra Fria, tão bem representados pelo guião de John Carpenter. Como continuar a história depois deste fecho? Eu reformulo a questão: para quê continuar?

Esta foi a questão que a Computer Artworks decidiu ignorar quando criou The Thing – não confundir com The Thing, o filme lançado em 1982, ou então The Thing, a prequela lançada em 2011 – para PC, PS2 e Xbox original. Um jogo de ação e terror, sem o elemento de sobrevivência que a quinta e sexta gerações de consolas haviam habituado os jogadores, mais focado no combate e em níveis curtos, mas repletos de sustos fáceis e uma tentativa em recriar a ambiência exímia do filme. Mais importante, The Thing (2002) propunha-se a continuar a história e não demorou a assumir-se como uma sequela. O cânone está longe desta adaptação ao mundo dos videojogos, mas a tentativa foi feita e continua mais viva do que nunca com a remasterização que chega agora ao PC e consolas, a cargo da Nightdive Studios.

the thing remastered echo boomer 2
The Thing Remastered (Nightdive Studios)

Como sequela, The Thing (2002, não 1982 ou 2011, para ficar claro) marca o regresso à base U.S. Outpost 31, agora destruída. J.F. Blake, capitão das forças especiais dos US, foi enviado numa missão de reconhecimento para descobrir o que se passou na base e o que levou à sua destruição. Entre o vento gélido da Antártida, que obriga à procura de abrigo, e os destroços da base destruída, onde ainda conseguimos ver resquícios do passado que ligam o videojogo ao filme, o mistério intensifica-se e as revelações amontoam-se. O que parecia ser um caso isolado, que envolvia a equipa de MacReady e o acampamento dos investigadores noruegueses, responsáveis pela descoberta do ser alienígena – preso no gelo por um tempo indeterminado -, culmina numa enorme conspiração que roça todos os clichés do género de terror e ficção científica. O segredo afinal já era conhecido e Blake depara-se não só com complexos científicos na região, dedicados à investigação e análise do ser disforme descoberto pelos pobres noruegueses, como as suas capacidades de imitação e propagação estão a ser reaproveitadas para fins militares e científicos. The Thing transforma-se em Alien e desmistifica a criatura que deveria permanecer o mais ambígua possível, um problema que nasce desta insistência em forçar uma continuação a uma história que já estava fechada.

O filme de John Carpenter subentendia a luta pela sobrevivência da Humanidade, definindo rapidamente que a criatura não poderia atingir a sociedade, senão seria imparável. No entanto, o foco mantinha-se sobre o seu elenco e na luta contra o incompreensível. Uma luta mais pessoal, centrada nas vítimas e na sobrevivência contra todas as adversidades, onde a familiaridade transformara-se no mais puro horror. O filme seguiu a desconstrução das amizades e a crescente desconfiança entre as personagens, perguntando como poderá a sobrevivência ser possível se o Homem se recusa a confiar – e em quem poderá confiar naquela situação? Na adaptação para videojogos, The Thing é mais direto na sua abordagem e traz-nos mais uma história em contra-relógio, onde o fim do mundo encobre a narrativa como uma manta pesada e tematicamente vazia para tentar criar algum suspense. Apesar das suas boas intenções, o jogo da Computer Artworks torna-se ruído branco, de twist em twist, perdendo a sua força e falhando completamente na temática que tornou o filme e a novela tão impactantes.

The Thing não é um mau jogo, mas é um produto do que seu tempo que eu não consigo apreciar na sua totalidade. Há algo inerentemente mecânico na sua estrutura e loop que não me permitem disfrutar do seu sistema de combate a 100%. As ideias estão presentes, mas há algo fundamentalmente desequilibrado neste jogo de ação e terror que não se reduz apenas aos seus problemas narrativos, más personagens e completa incompreensão dos temas do filme de John Carpenter. The Thing é um daqueles exemplos onde as ideias são boas, mas algo não faz click.

Por exemplo, a estrutura da campanha. Ao contrário de outros títulos do género, especialmente da mesma época, a campanha é repartida por níveis curtos. Com um objetivo principal, cada nível foca-se em cenários fechados e interligados (mas nem sempre) por trechos de exploração no exterior. No interior das bases e instalações que encontramos ao longo da campanha, a ação toma uma das seguintes formas: temos de encontrar um interruptor, outras vezes precisamos de um engenheiro para arranjar o interruptor que está estragado, temos de eliminar todos os monstros para chegar ao interruptor que está num ponto mais isolado do edifício, é necessário sobreviver a um ataque das criaturas ou então é obrigatório colecionar um item que está inacessível devido a um interruptor que ainda não foi ativado. A ação é rápida e o novo sistema de mira funciona muito bem, existindo até a opção de controlos por giroscópio, mas os cenários repetem-se através de level design pouco imaginativo – corredores, salas idênticas, espaços exteriores vazios – e uma paleta de cinzentos que torna tudo mais difuso e menos marcante a nível visual.

the thing remastered echo boomer 3
The Thing Remastered (Nightdive Studios)

A utilização do frio também é desapontante. A intenção é boa, mas os efeitos são muito passivos para o impacto que se procurava. Semelhante ao filme, a Computer Artworks procurou retratar o frio e o ambiente opressivo da Antártida como um inimigo omnipresente no seu jogo. Sempre que estamos no exterior, obrigados a percorrer os campos brancos em busca de resguardo – guiados por caminhos iluminados, já que sem eles não seria fácil orientar-nos nos cenários escuros e com um angulo de visão muito reduzido –, a nossa resistência ao frio cai. A barra azul surge no canto inferior esquerdo sempre que nos expomos aos elementos e a intenção da Computer Artworks é a de criar uma certa tensão quando estamos no exterior. Será que vamos encontrar o caminho certo? Existirá abrigo próximo? A resposta é simples: sim. O frio não é um problema, antes um motivo para não estarmos muito tempo no exterior, já que há tão pouco para fazer e descobrir. É muito difícil chegarmos a uma situação de perigo, ou vermos a barra azul quase vazia, porque estamos sempre próximos de uma base ou sala que nos protege automaticamente do frio. Por um lado, é sinal que o level design foi bem pensado para dar mais opções aos jogadores, mas, por outro, é uma indicação que este sistema não está devidamente implementado na jogabilidade.

A adaptação não poderia existir sem emular a tensão entre personagens e a crescente desconfiança sobre quem é a criatura. A Computer Artworks sabia disso e é por esse motivo que a gestão de equipas assume um ponto de destaque na jogabilidade. Ao longo da campanha, nós podemos recrutar soldados, médicos e engenheiros para a nossa equipa. Cada membro tem acesso a habilidades únicas e pode ser equipado com novas armas, tal como pode ser ordenado a realizar um número limitado de tarefas. Como capitão, Blake tem de cuidar da equipa porque a confiança tem de ser ganha em The Thing. O sistema de confiança está sempre presente e reflete-se na forma como jogamos, desde o número de armas que disponibilizamos aos nossos companheiros, até à realização de testes de sangue para demonstrarmos que não somos uma das criaturas. Quanto mais cuidarmos dos nossos colegas, mais eles poderão ajudar-nos ao longo dos confrontos e até dar-nos acesso a zonas anteriormente inacessíveis.

Mais uma vez, a ideia é ótima e o jogo não seria o mesmo sem esta aposta na gestão de equipas, mas tudo se torna rapidamente fútil. A presença de outras personagens facilita os confrontos e permite-nos gerir mais eficazmente as hordas de monstros, mas a má IA e a baixa resistência dos soldados é um problema constante. Até com as melhorias da nova versão, é mais fácil jogar sozinho do que acompanhado. Aliás, é tão fácil acertarmos nos nossos companheiros e até provocar a sua morte, que começamos a sentir que algo não está devidamente equilibrado na jogabilidade. Se juntarmos estes problemas ao facto de as personagens não terem personalidade, nem um pinguinho de motivações ou traços pessoais, repetindo constantemente as mesmas falas, criamos um ambiente insatisfatório para um jogo que devia prosperar nestes sistemas de gestão.

Outra incongruência na jogabilidade reside nos testes de sangue e nas transformações da nossa equipa. The Thing constrói-se em torno do receio que a nossa equipa possa estar infetada, tal como o filme, porque o que parece ser uma ajuda essencial em combate pode ser afinal um monstro disfarçado. Para termos a certeza que podemos confiar na nossa equipa, é possível fazer um teste ao sangue de cada elemento. Se alguém estiver infetado, o teste rebenta e a criatura revela-se pouco tempo depois, naquela que é uma clara adaptação de um dos momentos mais icónicos do filme de John Carpenter. Novamente, qual é o problema de The Thing? O teste é rapidamente relegado para segundo plano, ao ponto de ser descartável, porque as transformações são aleatórias – algumas acontecem quando as personagens recebem dano – e o auxílio das personagens não é assim tão essencial à progressão da campanha. Então temos um elemento interessante, basilar para a experiência da série, que é apenas uma distração e uma curiosidade.

O meu maior problema com The Thing, agora com Remastered no título, é a sua repetição e estrutura rígida em termos de objetivos e acontecimentos narrativos. Estamos constantemente a fazer o mesmo, a lidar com as mesmas criaturas e soldados, e a resolver os mesmos problemas, que nem puzzles chegam a ser. É um jogo muito passivo, monocórdico, cujos picos estão demasiado distantes entre si para serem sentidos. Um dos momentos mais únicos da campanha acontece quando Blake é capturado por Whitley e aprisionado na estação Strada. Quando desperta, Blake está sozinho e desarmado, rodeado de soldados e criaturas inimigas, sem fuga possível. Então é preciso recolher recursos, garantir a ajuda de outros sobreviventes e abrir progressivamente novos caminhos e opções até encontrarmos uma saída. É interessante ver todas as mecânicas e sistemas a funcionarem em uníssono neste momento, onde temos inclusivamente de garantir a confiança de um dos membros da equipa para que este nos siga até abrir uma porta principal. O problema é que este é o único momento que encontrei na campanha onde o jogo tentou algo diferente.

The Thing Remastered chega ao PC e consolas com uma mão cheia de novidades e melhorias, tal como a Nightdive Studios já nos habituou. Enquanto remasterização, é mais uma vitória para o estúdio, apresentando sistemas melhorados (os testes ainda estavam mais quebrados na versão original), nova iluminação, 4K e 120fps, e até conteúdo anteriormente cortado. São adições e melhorias essenciais que transformam um jogo problemático em algo mais digerível. No entanto, The Thing Remastered é para os fãs e aqui não posso sequer incluir os mais curiosos. Este é um daqueles casos em que compreendo a sua receção original, cujos problemas estão ainda mais visíveis, apesar do trabalho de remasterização. A nova visita à Antártida foi um quebrar da ilusão, de tal forma que a magia foi-se.

E é aqui que voltamos à colina onde decidi que devia afincar os pés e gritar a alto e bom para que todos pudessem ouvir, até aqueles que consideram tudo isto como desnecessário: seja filme, livro, banda desenhada ou videojogo, The Thing não pode ter uma sequela. Ponto final.

Cópia para análise (versão PlayStation) cedida pela ÜberStrategist

- Publicidade -

Deixa uma resposta

Introduz o teu comentário!
Introduz o teu nome

Relacionados