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Um interessante jogo de puzzles narrativos onde assumimos o papel de narrador improvável.

Em Storyteller, Daniel Benmergui decidiu inverter os papéis. Em vez de sermos os protagonistas das suas histórias, que se inspiram em contos e lendas clássicas, Benmergui dá-nos o poder de montar e construir as pequenas narrativas que constituem estas narrativas intemporais. Como um papel vazio, Storyteller nasce da combinação entre cenários, personagens e ações, que podemos agarrar e posicionar num dos seus quadrados para darmos vida a múltiplas versões da mesma história. A imaginação é nossa, as combinações são surpreendentes e os limites só surgem pelo tema e objetivo de cada episódio.

Apesar não ser tão abrangente e variado como se propunha, Storyteller é uma aposta interessante para aqueles que adoram contar histórias e brincar com as várias ferramentas narrativas. Esse é o objetivo de Storyteller, criar histórias, pegar nas suas personagens e situações para desenvolver algo novo. Cada nível tem apenas uma indicação do que devemos alcançar, como “o príncipe matou o barão”, juntamente com as peças que temos à nossa disposição. Como chegamos a este final? Imaginem que Storyteller disponibiliza o cavaleiro, o barão e a rainha, mas no que toca a cenários, apresenta uma sala de trono, outra de tortura e, por fim, um penhasco. Cada história pode ter entre três a seis quadrados narrativos, ainda que possamos terminar certos episódios sem ocupar todos os espaços vazios, e é através do seu número que necessitamos de fazer contas. Como contar esta história de morte e vingança em seis quadrados? O que é necessário fazer?

Storyteller nunca nos dá mais indicações para além do objetivo e das peças que apresenta. Somos nós que temos de encontrar a solução. Para tal, é preciso experimentar. Vamos dar continuidade ao exemplo que apresentei em cima. Como fazemos para que o barão mate a rainha? Se adicionarmos uma paixão não-correspondida e um barão que ambiciona o trono, talvez a história se construa mais facilmente. O barão tenta a sua sorte com a rainha; consegue e decide aprisioná-la; o cavaleiro encontra a rainha aprisionada; e o cavaleiro mata o barão ao atirá-lo de um penhasco. Esta seria apenas uma de várias soluções. Imaginem que é a rainha a apaixonar-se pelo barão e que teríamos também a possibilidade de adicionar o rei na equação? São vocês que decidem.

Acho fascinante a forma como Daniel Benmergui decidiu tratar a narrativa como um longo puzzle. As personagens, cenários e momentos narrativos são peças que podemos pegar e posicionar à nossa vontade até encontrarmos uma solução. Somo arquitetos e escritores no nosso próprio livro. O que diferencia Storyteller de outros títulos de puzzles é a sua aproximação ao ato de contar uma história, onde podemos acrescentar a nossa própria versão, brincar com os acontecimentos e moldar a progressão da narrativa até concluirmos o objetivo apresentado. Não existe propriamente uma única solução porque nunca existe apenas uma forma de contar uma história. O final pode ser semelhante, mas a minha versão poderá não ser idêntica à vossa Se calhar eu utilizei uma personagem para se vingar quando vocês optaram por colocar o pobre do criado como o eterno assassino.

A aposta numa jogabilidade pick-and-drop torna o processo muito mais intuitivo, rápido e imediato. Uma escolha perfeita para jogarmos com rato, na versão PC, ou através do ecrã tátil da Nintendo Switch, onde basta pegar nos cenários e nas personagens para darmos vida à nossa história. Para apagarmos o processo, basta pegarmos num quadrado e atirá-lo para o canto, com o progresso a dissipar-se no ecrã. Não necessitamos de mais nada e é assim que Storyteller constrói-se como um delicioso short game, cuja longevidade – penso que terminei em pouco menos de duas horas – serve o propósito de dar aos jogadores uma experiência imersiva e personalizável, mas também suficientemente profunda para aqueles que quiserem explorar as suas variantes. São 51 níveis, dividido por 13 capítulos, com a dificuldade de cada conto a aumentar progressivamente à medida que mais personagens, cenários e possibilidades são adicionadas.

Apesar da sua aparente simplicidade, Storyteller apresenta uma rede de variantes e estados narrativos que revelam como o seu design pode ser a base para algo ainda mais ambicioso. Como numa história, nós não temos apenas de dizer que algo aconteceu e que o conto terminou, mas sim construir a ação de momento em momento. Se um pai matou a própria filha, então temos de definir o porquê e até o grau de parentesco entre ambos. Se não o fizermos, as personagens vão pensar que são apenas dois estranhos colocados num cenário peculiar. O mesmo acontece com a aparição do lobisomem. Sem a lua, não há transformação. É preciso determinar que estamos numa noite de lua cheia para o nosso pobre lobisomem transformar-se e aterrorizar as suas vítimas. Quem, o quê, onde, como, quando, porquê – com a lógica a ditar a ordem.

Outro exemplo interessante, e que surge várias vezes ao longo dos capítulos de Storyteller, é a criação de impressões digitais. Voltemos à história do criado assassino. Imaginem que o nosso criado matou o seu patrão. Agarrou na arma que estava em exposição e matou o pobre do patrão que nunca pensou ser traído pelo seu ajudante. Depois do assassinato, o criado volta a colocar a arma no local certo, convencido que ninguém sabe que ele é o culpado. Agora adicionamos duas novas variantes. A primeira é a testemunha. Através dos olhos de uma gravura, a esposa do patrão vê o criado a matar o seu marido. Agora determinámos que alguém sabe a identidade do assassino. A segunda variante é a chegada de um detetive e o início da investigação. É necessário plantar a ideia que o criado é um dos suspeitos, com a esposa a indicar ao detetive que viu o ajudante a matar o seu marido. E como ligamos os dois momentos? Se sabemos que o criado matou o seu patrão com a pistola e esta foi devolvida, só temos de colocar o detetive no mesmo local para este reparar nas impressões digitais. Tem de existir uma progressão lógica entre os vários quadrados, como se estivéssemos a ler uma banda desenhada, onde cada pergunta levantada tem direito a uma resposta. O porquê é explicado. “Isto aconteceu, logo, deu origem àquilo”.

Claro que Storyteller depreende muitas das ações que tomamos e automatiza os momentos que podemos colocar em marcha, com os cenários a serem representativos de acontecimentos-chave que não podem ser alterados. O cenário do veneno, onde temos acesso a um frasco com o líquido mortífero, só pode ser utilizado para uma personagem ter acesso ao veneno para matar ou suicidar-se e o mesmo acontece com o penhasco – alguém vai cair ou então não tem propósito. Estas limitações são necessárias, pelo menos neste primeiro contacto com o formato, e revelam que Benmergui tem um conhecimento notório e forte sobre narrativa, ao ponto de criar uma rede de regras micro e macro para as várias histórias do jogo, mas também para os pontos narrativos individuais para cada capítulo que podemos criar.

O problema de Storyteller nasce, no entanto, no meio-termo entre um simulador narrativo e um jogo de puzzles porque a maioria das variantes mais interessantes surgem apenas numa fase final da campanha. A progressão mecânica faz sentido, mas as limitações narrativas neste espaçamento entre a introdução de novos elementos prejudica a imaginação e a criação de desafios ainda mais arrojados. Durante vários capítulos sentimos que estamos sempre a trabalhar com os mesmos elementos, cenários e personagens para encontrarmos, na reta final, uma variedade mais palpável e que nos motiva a experimentar ainda mais com as suas peças – mas a campanha termina pouco depois. Apesar de respeitar a sua curta duração, sinto que Benmergui não atingiu o pico da sua criatividade ao deixar tanto novo conteúdo para o final.

Se adoram contar histórias ou se são apenas entusiastas por bons puzzles, Storyteller é o melhor de dois mundos e um dos indies mais curiosos desta primeira metade de 2023. O seu foco em short stories, onde podemos escolher os seus protagonistas e ações, tudo em prol de um desfecho que devemos alcançar, dá um enorme charme a este peculiar jogo de Daniel Benmergui. Sinto que Storyteller também é o início de algo maior, mais arrojado e variado, e espero que Benmergui consiga chegar aos jogadores para justificar uma sequela que expanda a base que é aqui criada. Apesar dos seus defeitos, vencem as virtudes neste descontraído, ponderado e invulgar jogo de puzzles narrativos.

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Cópia para análise (versão Nintendo Switch) cedida pela FortySeven.

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