O regresso da The Chinese Room é também a recuperação do percurso iniciado com Amnesia: A Machine for Pigs e Everbody’s Gone to the Rapture, com a mesma atenção aos detalhes, mas muito mais ambicioso a nível mecânico.
Still Wakes the Deep é uma viagem nostálgica para todos os fãs da The Chinese Room. Não porque se trata de uma história que se passa, efetivamente, no passado, mas porque se assume como uma continuação à distância daquilo que a produtora parecia almejar através dos seus jogos narrativos. Se Dear Esther foi a fórmula destilada do que é um jogo de exploração e narração, Everybody’s Gone to the Rapture foi o aperfeiçoar da experiência narrativa, mais assente nos diálogos e no papel do jogador enquanto espetador do passado, onde o mistério sobre o desaparecimento dos habitantes de Yaughton construía-se através das suas personagens e nem tanto de enormes puzzles ou reviravoltas improváveis. A narrativa ocupava-se com o mundano e banal, mas desconstruindo a sua realidade aos poucos até revelar as suas entranhas apocalíticas à medida que explorávamos a aldeia mergulhada num interregno de anomalias. Mas agora, nove anos depois, Still Wakes the Deep é a evolução lógica da The Chinese Room, o próximo passo e uma cápsula para tudo o que caraterizou os títulos anteriores do seu catálogo, o que é também uma tragédia, visto que é o último título produzido por Dan Pinchbeck na produtora.
Cameron “Caz” McLeary é um homem em fuga, incapaz de enfrentar os seus problemas e resolver a sua vida familiar. Ele é acusado de ter atacado outro homem, a sua esposa quer estar do seu lado, mas as divergências amontoam-se e o divórcio parece ser a única solução. Perante a pressão da vida, Caz fugiu para o mar, numa tentativa de evitar a prisão, mas também para se afastar da vida que parecia desintegrar-se nas suas mãos. Com a ajuda de Ron, o melhor amigo, Caz conseguiu trabalho na plataforma petrolífera Beira D, localizada no mar do norte, próximo à Escócia. Um trabalho que o colocou a quilómetros de distância de todos aquele que diz amar, agora praticamente sozinho, à espera que o tempo passe. Mas o passado apanha-nos sempre e Caz sabia que era apenas uma questão de tempo até a polícia localizá-lo. Obrigado a regressar a casa, Caz quase entra no helicóptero para abandonar a realidade fria e metálica da petrolífera, mas as operações de perfuração encontraram algo. Uma enorme explosão deixou Caz preso na plataforma, sem saída aparente e obrigado a sobreviver. Talvez tudo tenha sido um acidente, um contratempo, mas cedo percebemos a realidade em que Caz agora se encontra quando nos deparamos com o que estava preso no fundo do mar.
Com a plataforma petrolífera danificada, as comunicações cortadas e alguns trabalhadores desaparecidos, Caz tem de lutar pela sua sobrevivência. Mas antes do caos, temos tempo para conhecer os colegas de Caz e conviver com os homens que dedicaram a sua vida à exploração petrolífera, entre conversas de circunstância que revelam tudo o que precisamos saber sobre a ilha metálica no alto mar. A plataforma está em problemas, envelhecida e sem manutenção à altura, com a empresa presa em processos sindicalistas e greves que revelam o descontentamento dos seus trabalhadores. O ânimo foi-se, mas sentimos a camaradagem entre a equipa à medida que conhecemos o elenco de Still Wakes the Deep, com especial destaque para as prestações dos atores. As falas são rápidas, incisivas e recheadas de pormenores e personalidade que injetam uma enorme naturalidade às interações. Caz é o destaque, como seria de esperar, mas todos os atores merecem uma menção honrosa por conseguirem tornar um jogo tão melancólico e perturbador numa experiência maioritariamente humana. Apesar das curtas interações, nós queremos proteger os colegas de Caz e isso é uma vitória para a The Chinese Room – mas não propriamente uma surpresa para os fãs de Everybody’s Gone to the Rapture.
A narrativa constrói-se através de um foco na sobrevivência, onde Caz e os restantes colegas procuram não só uma forma de escapar à plataforma petrolífera, mas também a urgência em resolver problemas que afetam a estrutura. É uma corrida contra o tempo, onde a vontade de fugir é intercalada com a resolução de problemas que levam Caz a explorar todas as secções da plataforma; desde o exterior com o heliporto até às entranhas das estações de reabastecimento, escoamento e energia. A forma como a história se desenrola não será uma surpresa para os fãs de género, mas este foco em tarefas restritas e muito mais mundanas injeta algum realismo ao terror cósmico que acompanha Still Wakes the Deep. O que se esconde nas sombras e a massa que se propaga pelas estruturas não será certamente uma surpresa, mas o mistério e a falta de uma maior exposição narrativa sobre as suas origens é uma mais valia para a abordagem clássica do jogo. No fundo, Still Wakes the Deep não é apenas um jogo de terror, antes de sobrevivência, com as suas personagens a serem o centro da demanda contra todas as adversidades que encontramos ao longo da campanha – e isso é o forte da The Chinese Room.
O que achei interessante, ainda dentro da narrativa, foi a aposta nos diálogos, em pessoa ou através de intercomunicadores, e a parca presença de diários, ficheiros e áudios que costumam sobrelotar títulos do género. Temos acesso a alguns documentos sobre o funcionamento da plataforma e acontecimentos passados, mas a narrativa mantém-se quase sempre centrada em Caz e nos seus colegas. O que importa é o que estamos a ver e a fazer, algo que contrasta com a abordagem que tantos outros títulos narrativos acabam por depender. É fácil compreender que a The Chinese Room procurou um equilíbrio entre a narrativa tradicional e um foco mais visual sobre os acontecimentos na plataforma petrolífera, e apesar de nem sempre acertar em cheio – Caz ainda sofre de falas a mais, algumas completamente descartáveis que servem apenas para cortar o silêncio da ação –, existe impacto na forma como vemos a plataforma a transformar-se ao longo da campanha. Os corredores e salas que percorremos horas antes terminam mergulhados em caos, descaraterizados, repletos de marcas e sinais que sugerem a tragédia da sua tripulação. São esses momentos que reforçam a narrativa de Still Wakes the Deep e que nos mantêm investidos, sempre aliados à forte performance das personagens.
Se Everbody’s Gone to the Rapture recusou a ação e centrou a sua jogabilidade em escassos momentos de interação e numa mobilidade lenta, reforçando o seu foco na narrativa e na reflexão quase filosófica sobre os acontecimentos na vila de Yaughton, Still Wakes the Deep é o seu oposto. Apesar da narrativa continuar a ser a força motora para o jogo e não existirem momentos de combate, a jogabilidade é mais dinâmica e variada. Caz é um protagonista mais atlético, por assim dizer, e é constantemente atirado para situações de vida ou morte e obrigado a navegar através dos corredores e secções danificadas da plataforma petrolífera. Caz é capaz de nadar, agarrar-se às bermas, subir escadas ou suportes improvisados e até saltar em corrida para alcançar plataformas distantes. A escala destes desafios não é megalómana, mas é suficientemente tensa para temermos certos saltos e sentirmos o desespero de Caz quando se apercebe que tem de navegar pelos cenários destruídos. Não é um salto mecânico revolucionário quando comparado a outros jogos de ação, mas para o catálogo da The Chinese Room, é interessante ver este dinamismo na sua abordagem à tensão e sobrevivência através da navegação e resolução de problemas com fisicalidade.
Semelhante a Amnesia: A Machine for Pigs, Still Wakes the Deep troca a sequências de ação por momentos de furtividade. Não existem mecânicas de ação e Caz só consegue esconder-se ou então atirar objetos para afastar a atenção daqueles que nos perseguem. Estas sequências não são constantes e pontuam apenas a campanha com uma injeção de terror sempre que é necessário. Como existem sequências de plataformas e navegação através de destroços e perigos semelhantes, a The Chinese Room teve de equilibrar a aposta numa jogabilidade minimamente mais dinâmica com a furtividade e o resultado foi satisfatório para mim. A ausência de combate em jogos do género já não me atrai tanto como há 10 anos e sinto que Still Wakes the Deep seguiu na direção correta ao não depender dos inimigos indestrutíveis e das sequências cansativas de “esconde e foge”. Desta forma, quando temos de evitar inimigos, estes momentos são muito mais aterradores e até perturbantes quando finalmente percebemos que estamos fechados com um dos antagonistas à nossa procura ou que um objetivo só é alcançável se conseguirmos fintar aqueles que nos querem matar.
Existe algo tátil, físico e pesado na jogabilidade de Still Wakes the Deep devido aos controlos escolhidos, que exigem sempre que tenhamos de pressionar um botão para interagir com todos os objetos em campo, como rodar uma válvula ou subir um lance de escadas. O jogo quer emular o esforço que Caz faz ao longo da campanha, onde uma simples ação, como subir uma plataforma ou acionar uma alavanca, pode ter um peso físico e emocional tremendos devido à tensão das situações em que Caz está constantemente. Não é, mais uma vez, uma escolha revolucionária, mas gosto da ideia e existiram momentos em que senti mais receio devido aos tempos de espera destas ações supostamente banais. Seria isto que Caz sentiria na realidade, esta combinação entre esforço, medo e raiva enquanto uma válvula gira. É aqui que sentimos como a The Chinese Room procurou elevar a fasquia dos seus jogos narrativos, esta preocupação crescente com a jogabilidade, apesar de não ser um salto mecânico acima da média ou capaz de rivalizar com títulos mais ambiciosos do mesmo género.
No entanto, a jogabilidade ainda tem de equilibrar melhor esta dependência por ações repetitivas e com tempos de espera. Não é grave, mas torna-se normal sentir algum cansaço ao abrirmos a décima conduta ou quando quebramos o quinto cadeado seguido para termos acesso a uma nova zona; ou então quando somos obrigados a navegar por espaços apertados, às vezes na berma das plataformas, onde sabemos que algo acontecerá para nos obrigar a pressionar os botões corretos, de modo a evitarmos que Caz caia. Esta repetição podia ser menos sentida se existissem desafios mais empolgantes, algo que fosse alguém das sequências de navegação e que pudessem dar origem a puzzles simples, mas eficazes na forma como quebrariam o ritmo estagnado de certos momentos da campanha. Mas Still Wakes the Deep é um jogo linear, onde não existe tempo para parar, e isso acarreta um número de virtudes, mas também de problemas. A sensação que fica é que a The Chinese Room perdeu a oportunidade para experimentar ainda mais com a fórmula e até para deixar respirar mecânicas que mal são utilizadas em ação: como a presença de aquecedores que servem para cortar o frio da água gelada do mar do norte.
Still Wakes the Deep é o regresso da The Chinese Room ao género que a popularizou, mas com uma postura muito mais ambiciosa. O foco nas personagens e nos diálogos continua a ser um dos pontos fortes da campanha, mas as aflições de Caz e dos seus colegas é muito mais dinâmica, tensa e mecanicamente variada do que os títulos anteriores da produtora. A campanha mantém-se linear, às vezes demasiado fechada na repetição de ações sem uma evolução mecânica mais palpável – o que fazemos na primeira hora será o que faremos na sua reta final –, mas os momentos de navegação e passagem de obstáculos adicionam maior profundidade à experiência do jogo. Apesar dos seus problemas, como o desempenho nem sempre sólido – e alguns bugs mais chatos, como um momento em que não consegui subir por umas escadas por mais que tentasse –, é um jogo que sabe agarrar o jogador e levá-lo ao longo de uma história pessoal sobre um homem que sempre fugiu ao longo da sua vida. Agora não há saída ou fuga possível senão lutar e Still Wakes the Deep, mesmo com os seus exageros, conseguiu captar esse desespero e determinação que tanto representam a viagem emocional de Caz. Agora resta saber qual será o futuro da The Chinese Room após este regresso ao passado, já que Pinchbeck não continuará a fazer parte da sua história.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Secret Mode.