Contra todas as expectativas, a Bloober Team traz-nos um remake de Silent Hill 2 imperdível, que consegue fazer o impossível: não só rivalizar com o original, como ultrapassá-lo em momentos específicos.
1999: Enquanto procura por Cheryl na Midwich Elementary School, Harry Mason é apanhado de surpresa por um som metálico. Um bater constante, como se algo estivesse em luta, um ataque longe da vista e um sinal de vida numa escola que aparentava estar vazia. O som vem dos balneários da escola, uma sala com vários cacifos, com uma ilha central, que vive o espaço em dois corredores. Quando Harry entra nos balneários, o som torna-se mais estridente e presente enquanto ele caminha pela sala. Os cacifos escondem a origem do som e a tensão aumenta à medida que Harry passa a primeira fila e depara-se com o que parece ser sangue. Um dos cacifos está cheio de sangue que se alastra pelas filas inferiores. Esta é a origem do som metálico: um cacifo ensanguentado, cuja porta ainda bate constantemente como se tivesse vida própria. Contra toda a lógica ou noção de sobrevivência, Harry decide abrir o cacifo. Um gato salta do interior, assustado, deixando a sua prisão ensanguentada e um Harry perplexo para trás. Afinal era só um gato. Mas quando o animal sai do balneário, contra todas as possibilidades, um som grotesco é ouvido do exterior. Um som sujo, húmido, monstruoso; o som do gato a ser morto por algo que não conseguimos imaginar. Os balneários só têm uma saída, a mesma que Harry utilizou para entrar e a mesma que o gato utilizou para fugir: a mesma que esconde o que poderá ser um monstro.
Ainda na Midwich Elementary School, Harry continua à procura de pistas que revelem o paradeiro da sua filha, que desapareceu depois de um acidente que deixou Harry inconsciente, mesmo à entrada de Silent Hill. Agora Cheryl é quase uma sombra que Harry persegue pelo nevoeiro que cobre a cidade e as pistas levaram-no a Midwich Elementary School. Numa casa de banho, igual a tantas outras, Harry investiga o espaço. A escola está repleta de criaturas e a escuridão é sufocante. A casa de banho é um local de tranquilidade, sem perigos aparentes. As outras assim foram, tranquilas, esta será igual. Mas quando Harry entra, ele ouve o que parece ser o choro de uma mulher. Um choro que surge de uma das cabines que ele não consegue abrir. Uma mulher cujo rosto Harry nunca verá. O que sobra é o sufoco e o suplício de uma pessoa ou entidade que se esconde em Silent Hill. Mais nenhuma casa de banho será segura. Nada é seguro em Silent Hill.
Do outro lado da televisão, daquelas de caixa grande, sentada num móvel igualmente largo e pesado para aguentar o seu peso, encontravam-se três rapazes entre os 10 e os 12 anos. Todos eles fãs de Resident Evil e amantes de cinema de terror, apesar da idade. Na verdade, Harry não entrou nos balneários ou na casa de banho sozinho, antes pelo contrário. Ele foi acompanhado pelos três rapazes. Foi um dos rapazes que seguiu o som e decidiu abrir o cacifo há mais de 20 anos atrás. E foi esse rapaz que ficou ainda mais petrificado com medo quando ouviu o som monstruoso que levou para sempre o gato e a única réstia de vida na escola de Silent Hill. Dois momentos tão microscópicos no grande panorama da indústria dos videojogos e quase tão insignificantes na narrativa surreal e nem sempre coesa de Silent Hill, mas que transformaram um dos rapazes num fã para a vida. Não é uma surpresa revelar que estas são as minhas experiências com o primeiro Silent Hill.
2001-2012: E não é também uma surpresa revelar que sou e serei sempre um fã de Silent Hill. Talvez não seja o melhor fã, já que discordo com uma grande parte da comunidade e não me revejo com mais de metade dos jogos que compõem a série de terror da Konami, mas o meu respeito e carinho pelos quatro primeiros títulos é inegável e não conto esconde-los. Há um antes e um depois de Silent Hill. Se Resident Evil foi a minha porta de entrada para o género de terror nos videojogos, que só havia contactado suavemente com as vísceras e violência extrema de jogos como Splatterhouse 2 e Night Slasher, Silent Hill foi o contraste que necessitava para compreender o potencial do género num ambiente interativo. A banda sonora desconcertante, os cenários enferrujados e repletos de sangue, a narrativa desconexa que se construía em torno de cultos e personagens tão humanas como peculiares, eram um portal para outra dimensão que desconhecia. Uma aproximação forte ao cinema como não tinha visto até ali, só que interativo, naquela que foi uma das experiências mais marcantes que tive com o meio.
Se Silent Hill foi a realização, a sequela foi revelação. Silent Hill 2 chegou até mim quase como o primeiro: sem aviso prévio. Num momento, Silent Hill 2 não existia e no outro já estava nas minhas mãos. Há 20 anos, não existia o contacto permanente e quase exaustivo que existe hoje com os meios de comunicação. Não seguíamos religiosamente as datas de lançamento, só tínhamos acesso às previsões e antevisões se comprássemos as revistas e a chegada dos videojogos às lojas acontecia quando menos esperávamos, quase como se fosse magia. Assim foi com Silent Hill 2. Um dia não existia e no outro estava na prateleira de uma loja de videojogos, mesmo no topo, como se estivesse a evitar os olhares dos meros mortais. Umas trocas depois e Silent Hill 2 era meu. Dias depois, talvez até semanas, o final viria a marcar-me de tal maneira que se juntaria aos outros dois momentos que descrevia cinema, ainda que muito mais subtil, psicológico e emocional em comparação. O gosto transformara-se em amor e o amor não demoraria a ser solidificado pelas duas sequelas seguintes: Silent Hill 3 e Silent Hill 4: The Room.
Apesar de traçar um cenário idílico enquanto fã de Silent Hill, a história da série está envolta em tragédia, cujo legado e popularidade nunca mais conseguiu recuperar após sequelas menos conceituadas. A passagem para os estúdios ocidentais foi marcada por um conjunto de vitórias, derrotas e títulos descartáveis que raramente conseguiram rivalizar com a ambiência inóspita, melancólica, perturbadora e até cruel dos primeiros quatro títulos. Em 2012, depois de Downpour ficar aquém das expectativas da Konami, tal como o lançamento desastroso e polémico de Silent Hill HD Collection e Book of Memories – este último um dungeon crawler inspirado no universo da série e um exclusivo PS Vita –, a cidade turística fechou as suas portas. Durante 10 anos, os fãs foram alimentados por rumores de um possível regresso, notícias de um remake ou até a possibilidade de uma nova adaptação chegar aos cinemas, mas tudo em vão.
2022: 19 de outubro foi o dia em que tudo mudou. A Konami reabriu as portas de Silent Hill e com a reabertura ressuscitou o corpo que se julgava morto e esquecido. Durante 40 minutos, a Konami apresentou aquele que seria o futuro da série Silent Hill, com um novo título transmídia, intitulado Silent Hill Ascension; uma nova aventura narrativa, Silent Hill: Townfall, a cargo da No Code; o misterioso e ainda por revelar Silent Hill f; a confirmação de uma nova adaptação, novamente realizada por Christophe Gans; e, por fim, o grande destaque: um remake de Silent Hill 2, desenvolvido pela Bloober Team. Os rumores estavam corretos. Uma enchente de novos títulos que trouxe a bonança aos campos que estavam já ressequidos. Uma prosperidade tão inesperada que deixou os fãs perplexos. Se Ascension, Townfall e f prometiam ser perspetivas diferentes sobre a famosa série e uma verdadeira expansão do universo Silent Hill, a revisita à história de James Sunderland dividiu os fãs. Silent Hill 2 é o título que elevou a série a um novo patamar, um jogo que ainda hoje é discutido como um dos mais profundos a nível de construção de personagem e do tratamento de temas fortes como o suicídio, abuso e depressão, algo que mais nenhum título da série almejou com tanta ferocidade. A obra de Masashi Tsuboyama e Hiroyuki Owaku, com arte de Masahiro Ito e banda sonora de Akira Yamaoka – que confirmaram o seu regresso à série durante a transmissão especial –, conquistou um legado invejável, ao ponto de ser quase unânime que um remake seria sempre redundante, fosse qual fosse a equipa que decidisse arcar com as responsabilidades de recriar um dos títulos mais icónicos da história dos videojogos.
A primeira impressão segmentou ainda mais os fãs. Silent Hill 2 goza de um legado e popularidade invejáveis, mas é igualmente vítima da sua fama. Um jogo que muitos consideram como perfeito, onde os defeitos são considerados como sendo propositados e inseparáveis da experiência de jogo. Uma experiência interativa cuja interação é quase relegada para segundo plano devido ao envelhecimento de certas mecânicas, novamente para garantir que Silent Hill 2 permanece num pedestal inalcançável. Uma obra artística que gera constantes discussões sobre os seus temas e personagens, cuja arte ainda é analisada, tal como a sua direção e a visão cinematográfica que comanda a experiência. Como pode um remake, que será sempre afetado pelas convenções atuais e que será obrigado a fazer mudanças superficiais ou mais incisivas na jogabilidade e representação dos atores, rivalizar contra tal legado? Muitos fãs colocavam as suas descrenças no remake devido ao pedigree da Bloober Team, cujas produções anteriores dependiam de sustos fáceis para criar tensão e demonstravam uma enorme inabilidade em tratar temas fortes nas suas narrativas. Como todos os fãs, eu temi o pior. Eu não queria um remake de Silent Hill 2, aquele que é, ainda hoje, o meu videojogo preferido.
2024: A minha longa introdução, já em jeito de análise, é necessária para compreenderem o que vou escrever de seguida. É importante terem em mente o quão Silent Hill significa para mim. Uma série que me acompanha desde os 12 anos, que me marcou emocionalmente como poucas outras e que me desapontou em igual medida ao longo de 25 anos. É importante ressalvar o ódio que senti quando vi o primeiro trailer de Silent Hill 2, agora a cargo da Bloober Team, naquele que parecia ser um jogo mimético sem alma daquele que era e ainda é o meu videojogo favorito. É importante interiorizar estas palavras escritas, tantos vocês, como eu em igual medida – até porque tudo ainda está fresco na minha mente –, já que nunca pensei gostar tanto de Silent Hill 2 – agora com Remake a funcionar como um sufixo –, como gostei. Na verdade, a Bloober Team conseguiu não só respeitar o legado impressionante do original, como foi capaz de o manter quase intacto, apenas adicionando de forma estratégica onde as falhas pareciam perdurar. É um remake que não é perfeito e que não ultrapassa por inteiro o original, mas que faz o aparentava ser impossível: em vários momentos, é capaz de o desafiar e até ultrapassar.
Entrar em Silent Hill 2 (SH2R), é uma experiência surreal. É um reencontro familiar, mas igualmente bizarro, onde reconhecemos a forma, mas nem sempre o rosto. James Sunderland veste as mesmas roupas que vestia em 2001, mas os detalhes dão-lhe uma maior mundividência e tornam-no mais humano. As suas mãos ficam sujas, as suas feições moldam-se aos acontecimentos e a sua voz, através da excelente interpretação de Luke Roberts, é mais calorosa, mas igualmente inconsolável quando comparada a Guy Cihi na versão original. O motivo da sua visita continua a ser o mesmo e a estrutura da campanha manteve-se inalterada, apenas foi expandida tal como mandam as normas modernas de game design, e continuamos a ajudar James a reencontrar Mary, a sua esposa, que faleceu há três anos.
O mesmo trabalho de revitalização pode ser visto nos cenários. Tal como James, os cenários banham-se num misto de surpresa e reconhecimento, ainda percetível por baixo do ultrarrealismo que a Bloober Team tão bem implementou nesta nova versão da cidade. A casa de banho, onde iniciamos a aventura, é uma recriação fiel à original, mas a longa e fria caminhada pela floresta, ligando a zona exterior da cidade ao cemitério, é muito mais longa, ponderada e meditativa. Se o original procurava marcar a estranheza e ambiência abstrata da cidade mergulhada em nevoeiro, auxiliada pela fantástica sonoplastia de Akira Yamaoka – desde a faixa “Forest Trail” aos sons monstruosos que ouvimos enquanto caminhamos pela floresta -, o remake injeta uma maior melancolia ao trajeto de James. A estranheza e peculiaridade estão igualmente presentes, mas a Bloober Team procurou definir James enquanto protagonista o quanto antes e aqui temos uma longa ponderação sobre a pergunta que assombrou todos os fãs do original: o que leva James a procurar a esposa que ele sabe ter falecido há três anos? O remake abraça esse absurdismo e transforma-o em desespero, culminando no fantástico diálogo com Angela, onde James, perante a revelação que a cidade agora é mais perigosa, responde que isso não o parará. Por mais perigosa que seja Silent Hill, James irá encontrar Mary.
Esta constante construção mútua entre personagem e ambiente não seria possível sem a expansão dos acontecimentos narrativos e um desenvolvimento profundo dos cenários de Silent Hill. A Bloober Team estudou o original até ao seu ADN e isso é percetível através da forma como contam a história visualmente e deixam a banda sonora – que conta com novas composições de Yamaoka e ainda algumas novas versões das músicas originais – trabalhar emocionalmente o design da cidade e até a jogabilidade. À semelhança do original, SH2R é um jogo de silêncios soturnos, seguidos de rasgos de violência auditiva através do excelente trabalho de Yamaoka, cuja combinação diz mais do que mil palavras. A experiência de explorar a cidade de Silent Hill torna-se surreal e o contraste entre a missão de James e os espaços vazios, onde vemos sinais do tempo e de um passado impossível de categorizar, é fascinante devido à direção de arte e à combinação entre o cinzento do nevoeiro com os apontamentos de cor – e agora com a presença forte da chuva em alguns momentos da campanha. O que temos aqui, em 2024, é a visão de Silent Hill completamente intacta, cujos excessos enaltecem a experiência e não o oposto, numa rara exceção no género, onde mais é eficazmente (quase) melhor.
Esta expansividade horizontal e vertical dos cenários poderá não ser apreciada da mesma forma por todos os jogadores. SH2R é muito mais longo do que o original, ultrapassando-o em quase 10 horas, dependendo da forma como jogarem. Isto significa que a cidade é muito mais extensa e detalhada, tal como as suas zonas distintas. Não só temos acesso a novas zonas, que introduzem puzzles únicos e trechos que aprofundam a história de fundo e de construção do mundo que não estavam presentes no original, como temos os níveis clássicos a ganharam maior relevo mecânico e narrativo. Wood Side Apartaments, por exemplo, apresentam agora novas versões dos puzzles, que obrigam a uma maior busca por itens, interligando salas através de atalhos inteligentes para mitigar a navegação desenfreada e injetar algum realismo no seu design. Se o original se banhava na imitação à distância, numa cópia da realidade ocidental, quase sempre inspirada em filmes e séries e nem tanto nos cenários reais em si, no remake, a adaptação é muito mais ponderada. Ainda sentimos a desorientação que os cenários provocam devido aos corredores e salas que se repetem, mas o design é muito mais inteligente e natural, com novas zonas exteriores que criam novos acessos e tornam os vários edifícios num enorme labirinto que aprendemos a reconhecer mais facilmente.
A mesma lógica de design foi aplicada a Brookhaven Hospital, que apresenta a mesma estrutura – três andares, o telhado e ainda cave -, agora muito mais expansivo na sua abordagem, mas apresentando áreas centrais que tornam a navegação menos claustrofóbica. Uma alteração que poderá chocar alguns fãs, já que a versão original do hospital dependia muito dos ambientes fechados e mais lineares dos corredores e salas transformadas, mas a Bloober Team conseguiu encontrar um meio termo que considerei eficaz. Onde os excessos retiraram-me um pouco da experiência foram na prisão e nas zonas seguintes até chegarmos ao Lakeview Hotel. Estas zonas, que marcam uma literal descida aos infernos para o jogador e para James, são visualmente marcantes e apresentam novos elementos mecânicos que procuram exponenciar a presença da escuridão em prol dos puzzles que necessitamos de resolver – como a possibilidade de acionarmos as luzes por tempo limitado na prisão e o famoso puzzle do cubo, que aqui ganha um maior destaque e dimensão na estrutura –, mas são tão extensos que senti que se perderam no seu próprio design. Assim é SH2R: por vezes melhor que o original, por outras, demonstrando a mestria e controlo que equipa da Konami aplicou ao design e jogabilidade.
O que é muito mais eficaz e uma tremenda escolha da Bloober Team, não só jogando com o legado de Silent Hill 2, mas de toda a imagética da série, encontra-se na forma como adaptaram a realidade alternativa da cidade, que podemos apelidar de Otherworld. Em Silent Hill 2, a representação desta realidade alternativa foi uma quebra premeditada com o primeiro jogo. Se Silent Hill apresentava cenários enferrujado, marcados pela presença constante de sangue e ambientes metálicos descaraterizados, naquela que é uma das representações mais memoráveis de uma realidade demoníaca e igualmente deificada, Silent Hill 2 abraçou a melancolia através do minimalismo. A cidade também sofre uma transformação, semelhante ao primeiro jogo, mas não é tão visualmente visceral, ficando mais vazia e mergulhada na escuridão, sem nunca se aproximar do inferno metálico e enferrujado do jogo anterior. Desta forma, Silent Hill 2 surge quase como um episódio separado, uma experiência solitária, que tanto bebe da mitologia da série, como a molda à sua vontade. O que a Bloober Team fez com SH2R foi a decisão arrojada de aproximar a sua versão da cidade com o Otherworld de Silent Hill e Silent Hill 3, criando uma realidade ainda mais mórbida, decadente e nojenta que os originais. Nesta nova versão, o Otherworld volta a ser tátil, quase como se fosse possível cheirar os corredores manchados e os padrões em pele que somos obrigados a interagir.
Esta escolha nem sempre funciona porque SH2R é um jogo de excessos e a Bloober Team nem sempre sabe quando parar. Se o novo Otherworld funciona nos espaços fechados, como o hospital e os apartamentos, a sua aplicação à cidade não é tão satisfatória e torna-se cansativa. São nestes momentos, que não são únicos ou apenas cosméticos – os atores estão excelentes, mas algumas sequências pecam para a crueza e falta de experiência dos atores originais, que conseguem, com menos treino e experiência, alcançarem mais eficazmente o realismo em determinados momentos –, que SH2R se perde e sentimos as sensibilidades da Bloober Team a lutarem contra o que é Silent Hill enquanto franquia. Mas o oposto também acontece. Depois de vermos a cidade ficar transformada pela presença do Otherworld, nós vemos o processo inverso a acontecer e a normalidade surge entre as zonas de Silent Hill. Quanto mais nos aproximamos da Silent Hill Historical Society, mais Silent Hill regressa ao normal, mas é uma normalização falsa. É aqui que voltamos à melancolia de James e a temática volta a funcionar tão bem. A caminhada até aos limites da cidade é um dos momentos mais memoráveis do jogo para mim e encontra-se num meio termo entre a cidade mergulhada na escuridão do original e esta nova versão que se assume mais como uma representação física do estado mental de James. Se o remake dá um passo atrás, não demora até dar outro em frente com uma segurança reconfortante.
A mudança de câmara é um ponto de contingência para os fãs, mas que revela a modernização necessária de um clássico da era 128 bits. O processo foi semelhante ao que a Capcom aplicou a Resident Evil 2 Remake, abandonando os ângulos pré-definidos em prol de uma câmara over the shoulder, semelhante a Resident Evil 4 e a tantos outros jogos de ação na terceira pessoa. SH2R sofre o mesmo processo de modernização e a câmara ligeiramente maleável, e pouco consistente do original, foi abandonada por completo. Agora o jogador tem total controlo sobre a câmara, o que nos dá uma perspetiva nunca antes vista no título original. O que se perde é a cinematografia cuidada e premeditada de Masashi Tsuboyama, cujo controlo permitia a construção de sequências definidas ao longo da campanha, direcionando a atenção e olhar do jogador para os pontos de destaque. Um dos exemplos mais utilizados para demonstrar as diferenças estilísticas entre o original e o remake encontra-se no caminho da floresta, onde o original colocava a câmara atrás das árvores, eliminando a perspetiva traseira e picada para criar a sensação de perigo no jogador. Algo na floresta está a observar-nos. É difícil contra-argumentar a eficácia destes momentos e a sua ausência é sentida.
No entanto, a perspetiva over the shoulder traz uma intimidade que era impossível, ou improvável, no original. A câmara mantinha-se afastada, quase sempre picada, mais preocupada em demonstrar como James era pequeno em comparação à cidade que o engolia, perdida entre a necessidade de dar visibilidade aos jogadores e o medo de quebrar por completo devido a problemas de colisão. O remake depende demasiado da agência dos jogadores ao colocar-lhes o controlo da câmara nas mãos, mas dá-nos uma nova perspetiva sobre a cidade. James continua a ser engolido pela cidade silenciosa, mas agora sentimos essa opressão através de um POV terreno. Somos nós contra a cidade e não James contra a cidade. Os espaços são ainda mais claustrofóbicos porque a câmara parece recair sobre as paredes e deslizar languidamente pelos espaços. A nova perspetiva também nos permite ver e analisar melhor os vários cenários do jogo, e há uma certa satisfação em encontrar o ângulo correto para absorvermos alguns dos momentos mais visualmente poderosos da cidade.
O sistema de iluminação também sobressai com a nova perspetiva e a Bloober Team é capaz de manipular melhor as várias mudanças de tonalidade do jogo devido a esta escolha mecânica. As sombras ganham uma maior tridimensionalidade e expandem-se pelos cenários mais realisticamente, criando uma nova textura sobre os cenários que pensávamos conhecer. A escuridão não desapareceu, a perspetiva over the shoulder não eliminou a tensão e a visão aproximada trouxe uma densidade emocional à exploração devido à aproximação dos objetos e edifícios. Não foi uma escolha estilística, antes uma necessidade moderna e não posso desconsiderar que a Bloober Team não procurou uma nova perspetiva apenas porque achava que a história e a visão de SH2R funcionaria melhor com uma câmara traseira e 3D. No entanto, esta escolha funciona e ajuda o remake ganha mais personalidade com ela, afastando-se o suficiente do original para tentar os sustos, tensão e melancolia à sua maneira.
A nova perspetiva é o primeiro sinal de uma jogabilidade revitalizada. O que vemos em SH2R é a modernização constante de um clássico, nem sempre pelos melhores motivos. A Bloober Team não deve ser criticada pela câmara 3D e controlável, mas é difícil justificar algumas das convenções que forçou na jogabilidade do remake, aproximando-o mais de um jogo de ação e aventura do que o original. A navegação é constantemente interrompida por clichés mecânicos que procuram criar obstáculos ao progresso de James, mas também um certo realismo à forma como ele aborda os cenários físicos de Silent Hill. Então encontramos momentos em que James tem de quebrar paredes pré-definidas para encontrar um caminho alternativo, vários pontos de salto para chegar a outras salas – estes pontos são identificados por tecidos brancos, facilmente reconhecíveis no escuro) e ainda a movimentação de caixas para criar plataformas que lhe permitam alcançar zonas anteriormente inalcançáveis. Estas são adições modernas que procuram criar alguma tatilidade na jogabilidade, mas que se repetem com demasiada regularidade e que revelam mais os pontos fracos da jogabilidade, como a ausência de melhores mecânicas de navegação, do que criam uma sensação de realismo na forma como James navega e interage com os cenários. Um elemento que foi certamente forçado pelas tendências modernas, mas que revela o quão o original era forte nesse sentido ao não necessitar de artificialidades que já eram cansativas em The Last of Us.
As convenções mecânicas são ainda mais sentidas no sistema de combate. Uma nova perspetiva requer uma nova abordagem ao combate e foi isso que a Bloober Team implementou em SH2R. Um sistema que é simultaneamente o melhor que a série já viu e também o seu maior calcanhar de Aquiles, uma contradição que é muito mais compreensível para aqueles que já jogaram SH2R. Ao contrário do original, o remake aposta num combate de proximidade, mais assente nos ataques físicos e nos controlos responsivos e rápidos. James não só é capaz de aplicar combinações simples com o pau e ferro, como é capaz de realizar um desvio rápido, cuja ação pode até ser cancelada em prol de um contra-ataque. Se no original o combate era pesado e pouco funcional, assumindo-se mais como um meio para um fim, no remake sentimos o peso dos confrontos e os inimigos são muito mais agressivos, ao ponto de serem um problema se surgirem em grupos. O feedback é impressionante, muito graças à vibração e sensores hápticos do DualSense – que também pode ser sentido em ambientes naturais, como a chuva e o vento, adicionando uma textura tátil ao universo Silent Hill –, cujos sons de impacto são pesados, carnais e húmidos devido à composição das criaturas. As armas de fogo seguem um molde mais familiar, com uma mira influenciada por magnetismo, que procura centrar-se no corpo dos monstros, e um disparo responsivo, novamente enaltecido pelos gatilhos adaptativos do DualSense.
O problema do sistema de combate não é mecânico, mas antes os seus excessos. Mais uma vez, a Bloober Team não soube quando parar e decidiu colocar as suas mecânicas à prova através de hordas constantes de inimigos. O original não estava desprovido de combate e era normal encontrarmos monstros com alguma regularidade, mas SH2R torna os confrontos excessivos. Os inimigos demoram mais tempo a morrer, são mais agressivos e inteligentes, e isso contrasta muito com os seus números. Quando queremos explorar e investigar os cenários, os inimigos sufocam a ação e obrigam-nos constantemente a parar o que estamos a fazer para lidar com um Mannequin ou Lying Figure. Os números de inimigos são tão exagerados que eu comecei a dsejar para não encontrar mais combates pela frente. Os cenários e a direção de arte são tão bons, e nós temos tanta vontade em explorar as várias zonas da cidade, que o combate surge quase como uma barreira anti diversão quando é utilizado em excesso. No entanto, o remake volta a superar o original onde menos esperava, nas batalhas contra os bosses, justificando mais uma vez a sua dinâmica e mecânicas, em especial contra o Abstract Daddy e Flesh Lips (e outros que serão spoilers).
Silent Hill 2 é o meu jogo favorito. A banda sonora, as cinemáticas, a viagem pessoal de James, os cenários, o estilo visual e temas compõem um cocktail que é impossível de reproduzir na perfeição. Não sei se veremos outro Silent Hill 2, outro videojogo original envolvido no mesmo legado e intemporalidade que a equipa da Konami conseguiu tecer em 2001 perante várias limitações de hardware. Como fã de Silent Hill 2, a minha crítica ao remake da Bloober Team podia ter sido muito diferente, mais negativa e depreciativa, mas é o oposto. Não só a Bloober Team conseguiu modernizar Silent Hill 2 e introduzi-lo a um novo público, como foi capaz de suplantar o que seria impossível de suplantar. Mas aqui estamos. A jogabilidade é melhor, a representação dos atores é superior, o desenvolvimento de James é ainda mais eficaz e as novas composições de Akira Yamaoka voltam a emocionar-me e a aterrorizar-me em igual medida (ainda que não adore as novas versões das músicas clássicas). Podemos argumentar que a Bloober Team só conseguiu chegar a este ponto porque já tinha Silent Hill 2 como base, e isso é verdade, mas o resultado podia ser desastroso e não o é. Antes pelo contrário, SH2R é um excelente jogo de terror, seja ou não remake. E é isso que reforço agora: é um bom jogo, com ou sem conhecimento do original. O impossível tornou-se possível, mesmo que com algumas dificuldades – o remake ainda é menos subtil que o original, algo que nem sempre funciona bem devido à frontalidade de certos momentos sobre a culpa e castigo de James –, mas a alma está intacta.
Silent Hill está de volta. Agora resta saber como será o futuro e o que escreverei nos próximos anos sobre a minha série favorita.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Konami.