Uma viagem no tempo até aos tempos áureos da dupla Sam e Max, e à vida da Telltale Games antes da série The Walking Dead
Numa tarde perdida em frente à televisão, com os canais a passarem rapidamente num zapping frenético, a minha atenção foi aliciada pelo o genérico de uma nova série de animação. Talvez nova não seja o adjetivo correto, já que o desenho e tipo de animação não escondiam a sua idade, mas era certamente uma entrada recente no catálogo no Canal Panda. O genérico era caótico. Os dois protagonistas, um cão vestido de detetive privado e um coelho de dentes afiados, saltitavam entre situações absurdas, sem contexto capaz de explicar o que estava a ver. Apesar da confusão e caos, fui incapaz de mudar de canal. Eu queria saber quem eram aquelas personagens e o que raio fazia um polícia freelancer. A música gritava “Sam & Max” ao longo dos 30 segundos de genérico e o logotipo confirmou que esse era o nome dos protagonistas. 20 minutos depois, tornei-me fã de Sam & Max.
Na verdade, eu tornei-me num péssimo fã de Sam & Max. Talvez tenha sido um fã tão despreocupado e negligente que os próprios Sam e Max respeitariam no final do dia. Enquanto Sam & Max: Freelance Police passou no Canal Panda, eu absorvi todos os episódios dobrados em português. O cão e coelho polícias levaram-me em aventuras absurdas e cheias de humor que raramente encontrava nos desenhos animados. Infelizmente, a vida levou-me por outros caminhos, talvez pela idade, já que descobri a série tão tarde, talvez porque não sabia sequer por onde começar. Para mim, Sam & Max era uma série de desenhos animados e não podia imaginar as suas origens na banda desenhada e muito menos conhecia a adaptação para o mundo dos videojogos, com Hit the Road (1993). Durante anos, Sam & Max permaneceram num baú fechado na minha mente, categorizados como “aquela série que eu gostava e que os meus amigos não conheciam”. Isso só mudou quando a Telltale Games lançou a sua trilogia de jogos protagonizados pela dupla.
Lembram-se quando disse que era um péssimo fã de Sam & Max? Bom, eu estava a ser sincero. Lançada entre 2006 e 2010, a trilogia da Telltale Games passou-me completamente ao lado. Save the World, Beyond Time and Space e The Devil’s Playhouse caíram como pedregulhos no charco quase seco dos jogos point and click e serviram como reintrodução do género a uma nova geração de jogadores, conseguindo, inclusivamente, cimentar a popularidade e génio da Telltale Games junto da comunidade. Com um sentido de humor irreverente e uma aposta saudável na resolução de puzzles, as novas aventuras de Sam & Max mantinham a alma da sua primeira incursão pelos videojogos e apostava numa vertente mais cinematográfica com cenários exploráveis, cinemáticas e uma narrativa vocalizada por um elenco de peso. Dentro do catálogo da Telltale Games, a trilogia ocupa um lugar de destaque e não é estranhar que esteja agora de regresso com versões remasterizadas.
The Devil’s Playhouse fecha assim a modernização da trilogia e junta-se a Save the World e Beyond Time And Space na atual geração de consolas. Agora sem o apoio da Telltales Games, as remasterizações estão a cargo da Skunkape Games – que é composta por antigos membros da Telltales – e apresentam gráficos melhorados – com cenários mais detalhados, cores mais vibrantes e animações menos robóticas (ainda que seja possível identificar os modelos e rigs das personagens que associamos às produções da Telltale Games) – e ainda opções de acessibilidade que não estavam presentes nas versões originais. Para todos os efeitos, as novas versões são uma excelente porta de entrada para os mais curiosos ou então para os fãs – e os maus fãs, como eu – que nunca tiveram a oportunidade de jogar os três jogos durante os seus lançamentos originais.
A minha estreia na saga Sam & Max levou-me a redescobrir o humor e irreverência das criações de Steve Purcell, como se estivesse a reencontrar-me com amigos que não via há anos. As piadas surgem a alta velocidade e existe sempre um comentário humorístico ou então uma situação inesperada associada a todas as ações presentes no jogo. The Devil’s Playhouse é o tipo de experiência onde uma simples ida à cabine telefónica pode despoletar um diálogo inesquecível entre Sam e Max, ainda que a escrita já não consiga esconder a sua idade devido ao timing da entrega. Mas enquanto experiência interativa, dentro do género point and click, é capaz de recompensar a nossa curiosidade se explorarmos os cenários em busca dos pontos de interação ou todas as combinações entre os itens encontrados e as personagens e objetos em campo.
Se olharmos para o catálogo da Telltale Games e analisarmos o seu percurso até ao seu final prematuro, tal como o seu regresso improvável e o anúncio de The Wolf Among Us 2, podemos considerar The Devil’s Playhouse como um ponto de viragem para o seu estilo. Dois anos depois, veríamos a estreia de The Walking Dead – Season 1, um título que viria a ganhar múltiplos prémios e que ainda hoje é considerado como um dos melhores jogos do género, mas que simboliza também uma mudança de foco. Se a Telltale Games ajudou o género point and click a recuperar a sua popularidade, ainda que nunca tenha desaparecido por completo – apenas foi mais ignorado e resignado ao PC enquanto plataforma principal –, com séries como Syberia, Machinarium e a trilogia Sam & Max, a adaptação de The Walking Dead apresentou uma jogabilidade mais simplificada e assente nas escolhas narrativas. Os puzzles transformaram-se em desafios temporários ou então pequenas barreiras de progresso que podiam ser facilmente ultrapassadas com ingenuidade, sem acrescentarem um enorme desafio. As personagens e as suas reações aos acontecimentos da campanha, aliadas às escolhas do jogador e a sua capacidade para influenciar o desenvolvimento da história, tornaram-se padrões dentro da produção da Telltale Games; talvez até tenham sido o seu fim, juntamente com o formato episódico.
Reencontrar The Devil’s Playhouse é voltar atrás no tempo, muito além de 2012 e daquilo que hoje associamos aos videojogos da Telltale Games. Nesta aventura de Sam & Max, que coloca a dupla contra o temível Skunk’ape e que introduz novos poderes telepáticos do coelho tresloucado, os puzzles voltam a ser as estrelas. A narrativa e a interação entre personagens continuam a marcar uma presença forte na campanha, e demonstram perfeitamente como a Telltale Games viria a debruçar-se mais sobre elas nas suas próximas produções, mas os desafios lógicos surgem rapidamente e requerem mais do que intuição para serem resolvidos. Aqui regressamos à tentativa e erro do género point and click, à análise minuciosa dos cenários e personagens, tal como a busca por todas as pistas que nos possam ajudar. A única diferença, quando comparado aos clássicos do género, é que The Devil’s Playhouse identifica todos os pontos de interação, restando-nos compreender por nós o que significam e para o que servirão no grande esquema dos cinco episódios.
Os puzzles são, na sua grande maioria, acessíveis e criativos em boa medida. Temos um inventário onde podemos selecionar os itens que queremos utilizar e os objetivos são sempre claros, desde que estejamos com atenção. No primeiro episódio, temos a missão de despertar um cérebro dentro de um jarro – podia dar-vos mais contexto, mas acredito que não vos ajudasse muito – e sabemos que precisamos de dois itens específicos: a “devil brew”, do avô Stinky e uma “power core”, criada por Momma Bosco. Então começa a procura pelas pontas soltas que podemos puxar para dar origem à solução que procuramos. É um point and click talvez mais acessível, mas mantém a alma do género e é refrescante redescobrir esta era de uma produtora que normalizou demasiado o seu catálogo.
Existe, no entanto, um elemento adicional que complementa a estrutura de The Devil’s Playhouse e exponencia os puzzles através do humor: os poderes de Max. Uma das novidades do terceiro título é a capacidade de Max em desbloquear novas facetas da sua psique problemática. Através da recolha de brinquedos supostamente mundanos, como um telefone para crianças, Max tem acesso a habilidades que são indispensáveis para a progressão da campanha, como a possibilidade de ver no futuro. Quando selecionamos Max podemos escolher o poder que queremos utilizar e passamos para uma visão na primeira pessoa. Com os poderes de predominação, só temos de apontar para o objeto ou personagem que queremos e temos acesso a um curto trecho que demonstra um acontecimento futuro. Desta forma, a resolução começa a ganhar forma. Regressando ao exemplo do cérebro no jarro, podemos utilizar o poder de premonição no velho Stinky para descobrir que ele ganhará a lotaria no futuro próximo. Será que temos um bilhete para a lotaria connosco? Se tivermos, já sabemos o que fazer.
Sam & Max: The Devil’s Playhouse é uma lufada de ar estagnado que cheira a novo em 2024. Com a trilogia completa, a dupla de polícias freelancers está novamente disponível em todas as plataformas e serve de exemplo para o trabalho da Telltale Games dentro do género, mas também para o humor e criatividade de Steve Purcell. Se nunca viram a série animada, leram as bandas desenhadas ou jogaram um dos jogos, não percam a oportunidade porque Sam e Max merecem a vossa atenção. Talvez não sejam os melhores exemplos de point and clicks para os fãs hardcore do género, mas são um excelente meio termo para os mais curiosos e menos experientes. Depois de tantos anos, sinto que me redimi como fã de Sam & Max: seja lá o que isso significar.
Cópia para análise (versão PlayStation 5) cedida pela Skunk Ape Games.